Mouraria

Filipa Bolotinha: Os trabalhadores migrantes sustentam a economia de Lisboa — e vivem em condições miseráveis

A Mouraria, em Lisboa, sempre foi um bairro de migrantes e marginalizados. A situação estava a melhorar, mas a pandemia piorou tudo: os pedidos de ajuda tornaram-se mais extremos, sobretudo de emprego, comida e casa. São os imigrantes que sustentam a economia lisboeta, mas não usufruem dos direitos que lhes são devidos numa sociedade democrática.

Entrevista
27 Abril 2023

Quem passa no Poço do Borratém, entre a rua da Madalena e a praça de Martim Moniz, em Lisboa, talvez ignore as escadinhas sombrias e delgadas que sobem até ao beco do Rosendo. Não é difícil: quase não se dá por elas. Subindo-as, vamos dar a um pequeníssimo largo, este sim luminoso e colorido. Em poucos passos estamos dentro da Mouraria, rodeados por ela, e chegamos às portas de um edifício reabilitado que, apesar da qualidade dos acabamentos e do brilho do verniz, não tem um “AL” estampado à porta. Entre os que hoje não estão devolutos, degradados ou emparedados, é invulgar.

É o edifício Manifesto, sede da Associação Renovar a Mouraria (ARM), arrendado à Câmara Municipal de Lisboa (CML) e estreado em 2012 como um manifesto (está no nome) pela reabilitação urbana. “Naquela altura não se falava nisso, só em deitar abaixo e construir de novo”, explica em entrevista ao Setenta e Quatro Filipa Bolotinha, coordenadora geral da Associação. A ideia era mostrar que era possível reabilitar um edifício abandonado e degradado, naquela altura sem grande valor patrimonial, com técnicas tradicionais e sustentáveis. Para a dirigente associativa, a abertura daquele espaço foi fundamental para “abrir o bairro à cidade”.

A Mouraria nunca escapou do destino que lhe foi imposto quando lhe deram esse nome, algures no final do século XII. Gueto dos muçulmanos após a conquista de Lisboa por Afonso I e os seus mercenários da Ordem do Templo, em 1147, a Mouraria atravessou os séculos como local de passagem e paragem de migrantes de todas as origens, do Minho a Timor. Berço do fado, local de práticas “desviantes” e pagãs, era onde galegos, beirões, algarvios, nómadas romani ou forros afrobrasileiros se instalavam procurando trabalho na grande cidade. Tirando alguns locais de origem, acrescentando outros, pouco mudou.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

“Quem chegou aqui no final dos anos 1990”, explica Filipa Bolotinha, “encontrou um gueto dentro da cidade”. Os problemas eram vários e agudos: a pobreza, o isolamento dos idosos, o abandono escolar, o consumo e o tráfico de droga, a prostituição e a exclusão de várias comunidades. “Incluindo os migrantes”, acrescenta a também economista, “o que sempre caracterizou este território”. Os primeiros anos foram marcados por uma intensa atividade cultural e artística, com visitas guiadas, música ao vivo, rondas pelas tascas do bairro: “mostrar que a Mouraria não é um sítio perigoso”.

Nos últimos anos, tanto por força das circunstâncias como pela perspicácia e vontade das 17 pessoas que compõem a equipa da ARM, aprofundou-se o trabalho de intervenção social e de apoio à integração comunitária. Para Filipa Bolotinha, era preciso “responder a necessidades concretas” mais do que ter um bar que, diz, “já começava a ser um bocadinho um agente gentrificador”. 

Assim, a ARM desdobra-se, hoje em dia, nas mais variadas formas de “transformação diária concreta e direta”, especialmente junto das comunidades estrangeiras: apoio jurídico para obtenção de documentação e benefícios sociais; apoio à empregabilidade, apoio pós-curricular ao estudo e apoio ao ensino de português como língua não-materna. Para trabalhar “de dentro para dentro” e reforçar um tipo de “solidariedade que não se baseie em dar comida”, a ARM tem a ajuda de três mediadoras comunitárias (uma portuguesa, uma moçambicana e uma bengalesa) que fazem as pontes entre as diversas comunidades do bairro e as mais de 50 nacionalidades aí presentes.

A ARM celebrou 15 anos de existência no passado mês de março, mas a situação está hoje mais difícil do que em 2008. “Os pedidos de ajuda tornaram-se mais extremos e mais graves”, explica Filipa Bolotinha. Se, antes da pandemia, a Associação ajudava a população migrante com “burocracia e documentação”, neste momento é com “emprego, comida e casa”. Os vários casos de apartamentos sobrelotados na Mouraria, onde vão vivendo centenas de migrantes, sobretudo asiáticos, tornaram-se uma questão política depois do trágico incêndio na rua do Terreirinho, na Mouraria, em fevereiro deste ano, que matou duas pessoas. Mas o desemprego e o subemprego, o consumo de drogas e a falta de casas também contribuem para o agudizar das vulnerabilidades das populações migrantes. Uma realidade ignorada, quando “são estas pessoas que sustentam o modelo de desenvolvimento da cidade”.

A ARM cobre as lacunas deixadas pelo poder público? 

Sim, claramente. E ainda é mais que isso. É mais confortável, hoje em dia, 15 anos depois, dizer que as organizações não têm de inventar meios para ganhar dinheiro e ser autossuficientes, porque isso é incompatível com a carga de trabalho que implica ser, assumidamente, uma extensão do poder público. Todos estes serviços de apoio à integração fazem parte do CLAIM [Centro Local de Atendimento ao Imigrante], geridos pelo GAPLIM [Gabinete de Apoio às Políticas Locais de Integração de Migrantes], que pertence ao ACM [Alto-Comissariado para as Migrações]. Esses serviços fazem parte da estratégia pública de apoio à integração, porque é necessária uma estrutura de base, de proximidade, a fazer este trabalho.

"Temos a ideia de apartamentos com beliches onde vive imensa gente. Mas também há caves, garagens, edifícios abandonados e emparedados. Há proprietários de alojamentos locais a transformar as suas casas em alojamento deste tipo para imigrantes."

Mas o financiamento que recebemos não é, por esse motivo, direto. O que nós fazemos é, claramente, política pública — e faz sentido que não seja o Estado a fazer este trabalho e que ele esteja disperso pelos territórios. Mas o mecanismo de financiamento não é algo automatizado. Acabamos por ter financiamento também através do ACM. Um CLAIM recebe, todos os anos, um valor para fazer um trabalho, subordinado a uma estratégia política. Recebemos dinheiros europeus para financiar a integração de migrantes, negociados a nível nacional. Em anos em que acaba o programa, como este em que estamos, um ano de charneira, arriscamo-nos a estar um ano inteiro sem financiamento.

É claramente uma estratégia municipal, pública, de concretização de um trabalho que as estruturas maiores não conseguem fazer, com esta grande falha que é a parte que vem depois do financiamento não estar pensada com essa consistência. É duro manter vivo um projeto como a ARM e todas as organizações do mesmo tipo, coletivos, muitos deles inteiramente voluntários. Aguentarmos esta casa, estarmos vivos ao fim de 15 anos, com 17 pessoas a trabalhar, é obra. Temos tido muitos apoios, mas há um grande desfasamento entre o que é o discurso institucional e do poder público (que assume que o nosso trabalho é importante) e o retorno financeiro. Não temos a mesma estabilidade de uma estrutura pública.

Em fevereiro, depois do incêndio trágico que matou duas pessoas na Rua do Terreirinho, o antigo presidente da Assembleia da República afirmou que tinha sido descoberto um problema de sobrelotação na Mouraria. Como alguém que aqui está há 15 anos, como reagiu a afirmações como esta e à atenção dada a essa tragédia?

Na pandemia, algumas peças jornalísticas levantaram a ideia de que na Mouraria acontecia, com a população migrante, mais ou menos a mesma coisa que nos campos agrícolas do Alentejo. E diria que não foi uma surpresa total, pelo menos para quem está aqui. Os políticos estão muito distantes do mundo real. Vivem numa bolha. 

Estando aqui no território, sei que sempre houve este tipo de dinâmica — várias pessoas a dividir uma casa sobrelotada. Haverá em todas as cidades que recebem migrantes e pode ser uma prática normal à chegada, mas normalmente é (ou quer-se) transitória. Não é normal isso acontecer em condições subhumanas como esta, que se percebeu existir depois do incêndio.

Sabendo que isso existia, não tinha, mesmo assim, noção de que o fenómeno era tão grande. E continua a aumentar. Temos a ideia de apartamentos com beliches onde vive imensa gente. Mas também há caves, garagens, edifícios abandonados e emparedados. Ninguém tinha noção da dimensão real deste problema. Há proprietários de alojamentos locais a transformar as suas casas em alojamento deste tipo, para imigrantes. 

É algo recente e há várias dimensões do mesmo fenómeno. O que está a acontecer agora é especialmente preocupante pela sua dimensão e pela desumanização que implica. Colocam as pessoas numa vulnerabilidade ainda maior, e exploram-nas. Piorou nos últimos anos.

Na sua origem medieval, a Mouraria era um gueto. Nunca deixou de ser assim visto pelo Estado. Há uma certa continuidade histórica nas populações do bairro: assumem os trabalhos que sustentam a cidade, mas não é suposto serem visíveis. A Mouraria vai continuar a ser esse espaço ou a gentrificação e a especulação imobiliária acabarão por fazer o seu trabalho como noutros bairros?

A câmara já teve, em 2012, um plano para a Mouraria. Dando um passo atrás, e antes de 2012, houve um conjunto de esforços das várias organizações que trabalhavam aqui e ficou claro que era preciso dar atenção ao bairro. O executivo camarário deu atenção a isso. Houve intervenção no espaço público, um plano de desenvolvimento comunitário (financiado pela câmara municipal) com respostas sociais e culturais, que criou ou reforçou algumas organizações, como a ARM. Tentou-se tornar o território "apetecível", para depois vir a iniciativa privada e investir na reabilitação. 

A CML é proprietária de muitos destes edifícios (e já foi de muitos mais). Sendo o território atrativo, as pessoas quereriam viver aqui. O processo dava-se. E aconteceu. Até 2014, muita gente veio viver para a Mouraria, para casas reabilitadas. Muitos jovens, alguns estudantes europeus, gente associada às artes. O bairro ganhou uma dinâmica que não tinha e tornou-se em algo melhor.

A questão do consumo de droga, sem ter sido varrida, foi melhorada com a intervenção de mais equipas de rua e do GAT [Grupo de Ativistas em Tratamentos]. A situação das pessoas em situação de sem-abrigo também melhorou com a introdução do Housing First. As coisas estavam a melhorar. A crise financeira conseguiu atrasar esse plano de vir a iniciativa privada reabilitar o edificado. Depois disso, aliado à mudança na lei da habitação e das obras urbanas, a indústria da construção entendeu que o lucro estava na reabilitação e não na construção.

"A Mouraria tem tudo: pessoas a viver em prédios degradados, algum turismo, e prédios de luxo. A maior parte dos edifícios que foram reabilitados, principalmente na parte alta da Mouraria, são agora habitações de médio-luxo. E estão vazios."

Quando se descobriu que o turismo iria "salvar" Lisboa, a CML vendeu muitos imóveis num programa de "compra agora, reabilita depois". Isso seria uma resposta interessante, se o uso desses edifícios não fosse todo destinado a hostels e alojamentos locais.

A Mouraria tem tudo: pessoas a viver em prédios degradados, algum turismo, e prédios de luxo. A maior parte dos edifícios que foram reabilitados, principalmente na parte alta da Mouraria, são agora habitações de médio-luxo. E estão vazios.

Em 2011, 2012, tínhamos um bairro vazio e cheio de problemas, que precisava de uma vida nova. O processo de revitalização aconteceu, mas agora temos, de novo, um bairro vazio, porque as pessoas que vieram para cá viver em 2013 ou 2014 deixaram de conseguir pagar as rendas. Quem ocupa o vazio fá-lo temporariamente: são turistas ou "nómadas". 

O crescimento exponencial do turismo também acentua o problema da acumulação de lixo, do tráfico de droga e da prostituição, porque há mais procura. De repente, 15 anos depois, estamos a braços com os mesmos problemas, mas com outras camadas por cima, mais difíceis de resolver.

Não sei se há um plano municipal para a Mouraria. Não sei sequer se há uma compreensão realista da situação específica deste bairro. A junta de freguesia tem-na, de certeza, mas a Mouraria está incluída na maior freguesia de Lisboa, Santa Maria Maior. Estão reunidas as condições para haver um plano específico de intervenção. Há aqui uma série de fenómenos de confluência. 

Estamos muito empenhados em transmitir essa mensagem. Neste momento, estamos a estruturar-nos de maneira a fazer um ativismo mais responsável e mais enérgico, que possa, realmente, encontrar soluções e não somente fazer barulho. Embora o barulho seja sempre importante.

Não sei se há consciência do que já foi a história deste bairro. O eixo Arroios - Anjos - Mouraria é onde vive a esmagadora mão-de-obra que sustenta o modelo de negócio desta cidade: restaurantes, cafés, estafetas, condutores de TVDE, hotéis, tuk-tuks. Todas estas pessoas que fazem os portugueses dizer que "Lisboa está muito melhor e mais bonita" vivem aqui, nestas condições. 

O presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, sustentou que há um problema gravíssimo de sobrelotação desse tal eixo Praça do Chile - Martim Moniz - Mouraria, atribuindo a responsabilidade às políticas de imigração. Declarações perigosas, que podem alimentar sentimentos xenófobos latentes. O que pensa disso?

É uma questão delicada. Em primeiro lugar, a ARM defende que ser imigrante não é um crime. Visto de cima, o mundo não tem fronteiras. Depois, é importante que se perceba que estes casos de sobrelotação não nascem de problemas com as políticas de imigiração, mas de problemas com as políticas de habitação. Os números que a câmara possa apresentar sobre fogos disponíveis para habitação não têm em conta que, julgo eu, qualquer habitante de Lisboa com menos de 40 anos não vive sozinho. Ou já tem família e há dois ordenados a sustentar a casa ou então vive com amigos. Há casais que vivem com casais amigos. 

A sobrelotação das casas, maior ou menor, não é um problema exclusivo da comunidade imigrante. É claro que as fatias mais vulneráveis da população, que se sujeitam mais facilmente a piores condições, sofrem ainda mais com essa situação. Pessoas que estão no limbo da legalidade por ineficiência do sistema.

Desde a pandemia que o SEF está quase inoperacional. Há pessoas há três anos à espera de regularizar a sua situação em Portugal. A política de imigração não está errada. Precisamos de pessoas. A situação de vulnerabilidade - social, laboral, habitacional - em que colocamos essas pessoas, por não terem documentação, existe por ineficiência do sistema. E isso é que está errado. A lei estabelece todas as condições para que uma pessoa imigrante viva e trabalhe legalmente no nosso país. Os processos é que não saem do SEF. Uma pessoa não está "ilegal" por não reunir as condições para a regularização da sua presença em território nacional, mas porque não é dado seguimento administrativo aos processos.

Gostaria que a população imigrante — cujo trabalho sustenta o negócio do turismo e da hotelaria - fizesse greve durante uma semana, para ver o que aconteceria à cidade de Lisboa. A realidade destas pessoas parece invisível para o comum lisboeta. É invisível para muitas pessoas porque não têm como saber. Eu sei porque vivo aqui, é a minha realidade. Tem de haver um plano para mudar isto. E não pode passar por atribuir culpas: "não temos os números"; "é a imigração". Tem de haver uma solução. Estas pessoas estão cá e são necessárias. 

Se não promovemos a devida integração destas pessoas, promovemos diretamente a sua exploração como mão-de-obra barata e desumanizada e isso não pode ter espaço na nossa democracia. Quando a vulnerabilidade é generalizada, acabamos por ter economias paralelas, documentos que se compram e vendem, trabalhos mais que precários. É o que acontece em tempos de crise. As pessoas que vivem nestas casas são vítimas de uma situação da qual não têm capacidade de sair.

Temos de perceber que quem imigra para Portugal não quer voltar para trás. Foge de uma situação pior que aquela que encontra cá e sujeita-se a esta por ver uma luz ao fundo do túnel. Crê que é temporária, que as coisas vão mudar. Nos seus países de origem talvez não haja essa possibilidade de ter esperança, principalmente se pensarmos nas mulheres e nas limitações às suas liberdades. 

A maioria da população asiática imigrante da Mouraria tem educação superior: médicos e médicas, professores. Pessoas que, apesar disso, estão dispostas a fazer qualquer trabalho. Os nossos representantes políticos não sabem isso. A Mouraria precisa de uma intervenção política para que estas pessoas possam viver em condições justas de segurança, integração, trabalho, saúde e educação. Todos queremos isso, independentemente da comunidade onde nos inserimos.

A ARM tem um projeto de mediação comunitária que integra representantes de várias comunidades e nacionalidades. Há umas semanas, o líder do partido de extrema-direita foi à rua do Benformoso e disse que Portugal deveria procurar "culturas que se coadunem com a nossa" e puxou o "perigo do extremismo islâmico". Como alguém que está a par da vida quotidiana do bairro, o que pensou destas declarações?

O perigo do extremismo islâmico é um mito. Começou a ouvir-se isso por causa do projeto de construção da nova mesquita. Entretanto, parece que esse projeto está parado e não se sabe muito bem porquê. Há quinze anos que estou na Mouraria e nunca vi nenhum "perigo islâmico". 

As pessoas que acompanhamos vêm dispostas a trabalhar no que for preciso. Acompanham com cuidado e atenção a educação dos seus filhos, apesar da barreira linguística. Não sei que outras culturas serão essas com quem nos entenderemos melhor. O que falta, por exemplo, é um plano nacional de ensino da língua portuguesa para migrantes, sejam crianças ou adultos. Não é parar a imigração, não é colocar cada vez mais controlos e barreiras à entrada em Portugal.  

Essa visita à rua do Benformoso fez parte da concretização de uma agenda política. É importante que quem defende os valores da democracia perceba que, se não promovermos uma integração justa dessas pessoas que já cá estão e já cá trabalham, as forças políticas populistas irão aproveitar-se dessas narrativas xenófobas e racistas.

"Gostaria que a população imigrante — cujo trabalho sustenta o negócio do turismo e da hotelaria - fizesse greve durante uma semana, para ver o que aconteceria à cidade de Lisboa. A realidade destas pessoas parece invisível para o comum lisboeta."

Nós, ativistas, também temos uma agenda. Quando falamos, não podemos falar só para aqueles que já pensam como nós. Então, tentamos promover o entendimento daquilo que se passa aqui. É preciso olhar de forma muito responsável para a questão da imigração e defender os migrantes como pessoas vulneráveis e à margem do sistema. Temos de fazê-lo de forma a não ficarmos suscetíveis a ataques populistas. Nesse sentido, a comunicação social também tem muita responsabilidade na maneira como trata este assunto.

No caso do incêndio de fevereiro, na rua do Terreirinho, tive algum medo, mas a cobertura noticiosa foi responsável. Não houve somente uma exploração do dramatismo da situação, não foram só dois ou três dias de atenção e acabou. Senti que houve uma tentativa de entender o que se passa aqui no bairro. A resposta da Câmara — creio que, em parte, pelo choque — também foi célere e muito responsável. Simbolicamente, as famílias que ficaram desalojadas estão a ser bem acompanhadas por várias instituições.

Têm sido recorrentes as operações policiais contra o tráfico de droga aqui no bairro. Além de rusgas e detenções, foi visível o sobrepoliciamento da zona quando um influxo repentino de cidadãos timorenses transformou a praça do Martim Moniz num dormitório a céu aberto. Também há relatos de abordagens hostis e detenções arbitrárias. As autoridades encaram a Mouraria e os seus habitantes de forma preconceituosa? 

Há, visivelmente, mais presença policial no bairro. É claro que nas polícias há falta de empatia, de capacidade de olhar para uma pessoa vulnerável — que pode estar envolvida no pequeno tráfico ou em pequenos delitos — e ver, não um automático culpado que não merece respeito, mas alguém que também é vítima de toda uma estrutura, de uma situação maior que ela. Sabemos que a polícia discrimina e que há essa postura perante a Mouraria e o tráfico de droga no bairro. Não há a preocupação de olhar para isso como um problema social que nos afeta a todos, mas como um conjunto de delinquentes que não adiantam nada à sociedade. É o que eu vejo, deste lado da "barricada".

A questão dos cidadãos timorenses foi anómala. O fluxo de chegadas parou, entretanto, mas a situação estava a acontecer à nossa porta de forma impressionante. Conseguiu-se dar resposta, na medida do possível, e ativar muitas redes de apoio. Conseguimos dar comida e angariar donativos, houve pessoas que se voluntariaram para traduzir e distribuir comida. Os serviços públicos, mais uma vez, não se articularam tão bem quanto poderiam. Houve um desencontro que depois se resolveu.

"Se não promovemos a devida integração destas pessoas, promovemos diretamente a sua exploração como mão-de-obra barata e desumanizada e isso não pode ter espaço na nossa democracia."

No final, fica a impressão que não se quer que todos estes problemas sejam visíveis numa zona turística. Todos os dias, às 20h, a polícia vinha dispersar essas pessoas para que não dormissem ali, porque não podiam, ordenando que fossem para outro sítio. Não havia outro sítio, então dormiam à beira do rio, ao relento. Deveria ter havido — e defendemos isso — uma resposta de emergência com alojamento temporário, alimentação e apoio médico, e não agir como se não estivesse a acontecer.

Ainda assim, a operação foi bem sucedida, tal como quando recebemos refugiados ucranianos. Talvez porque os ucranianos fazem parte dessas tais culturas com as quais nos "entendemos melhor". Para quem trabalha com imigrantes de todo o lado, é frustrante sentir que, quando é preciso, o aparelho funciona. Fica sempre alguma mágoa quando vemos pessoas há mais de dois anos, com toda a documentação em ordem, à espera para poder trazer os filhos para Portugal. Mas o SEF não abre o agendamento para o reagrupamento familiar. De repente — e muito bem — o SEF fez horas extra para garantir que refugiados ucranianos conseguissem reunir as suas famílias. Está tudo certo com isso, mas há gente deixada para trás. Gostaria de saber porquê.

Voltando ao projeto de mediação comunitária. Qual é a importância dessa iniciativa para o trabalho da Associação?

Temos três mediadoras — uma bengalesa, uma portuguesa e uma moçambicana. Percebemos através da Farhana, a mediadora natural do Bangladesh, que há trabalho que jamais conseguiríamos fazer se ela não estivesse connosco. Por mais que falemos inglês, há sempre uma barreira. Com ela há uma confiança imediata e isso ajuda à comunicação e à sinceridade, até dentro das próprias comunidades. Qualquer pessoa tem medo do desconhecido e alguém sem documentos terá sempre receio de que um português lhe possa dificultar a vida.

Queremos fortalecer a mediação comunitária com mais mediadores de outras nacionalidades. A Farhana também trabalha com pessoas do Paquistão, da Índia ou do Nepal. As línguas não são as mesmas, mas o facto de o migrante ver ali, a ajudá-lo, alguém que também é migrante, ajuda a ir mais longe na integração e na construção de uma relação de confiança. Todos os serviços públicos deveriam ter mediação. É quase impossível um imigrante do Bangladesh tratar de um assunto nas Finanças. Se queremos ser um país de acolhimento, se grande parte da nossa força de trabalho é composta por migrantes, temos de adaptar os nossos serviços públicos a essa realidade.

Um fenómeno relativamente visível, por acontecer na rua — algo que também terá a ver com os problemas habitacionais — é o consumo de drogas por parte de jovens migrantes asiáticos. É algo sinalizado?

É um fenómeno recente, pós-pandemia, e, como disse, visível. Por si só, requer uma intervenção específica. O GAT também já identificou essa situação. Para mim, a principal causa foi precisamente a crise provocada pela pandemia de covid-19. A maioria dessas pessoas tinha a vida organizada: um quarto arrendado, um emprego. Mas esse emprego era informal — num restaurante, por exemplo — e, de um dia para o outro, ficou sem ele e não teve direito a qualquer subsídio. Mesmo quem tinha contrato pode ter ficado sem saber que tipo de apoios poderia receber. Os seus empregadores também não tiveram essa preocupação. Muita gente ficou sem dinheiro e perdeu o quarto.

"Temos de perceber que quem imigra para Portugal não quer voltar para trás. Foge de uma situação pior que aquela que encontra cá e sujeita-se por ver luz ao fundo do túnel. A maioria da população asiática imigrante da Mouraria tem educação superior: médicos e médicas, professores. Pessoas que estão dispostas a fazer qualquer trabalho."

Os pedidos de ajuda tornaram-se mais extremos e mais graves. As pessoas começaram a pedir comida e casa. Não era assim. Nós ajudávamos com burocracia e documentação, sobretudo. Neste momento é emprego, comida e casa. Muitos desses jovens, apanhados em trânsito, não conseguindo sair de Portugal para outros países europeus e encontrando-se sem trabalho, acabaram por começar a consumir droga. Por outro lado, o tráfico de droga, como economia paralela, poderá ter-se intensificado pelas mesmas razões, tudo potenciado pela crise instalada pela pandemia.

Com o acumular de todos estes problemas sociais — o tráfico e o consumo de drogas, a sobrelotação habitacional, o aumento da população em situação sem-abrigo, a especulação imobiliária e a arquitetura hostil —, a Associação terá muito trabalho nos próximos tempos?

Sim. Há uns tempos dei uma entrevista sobre os 15 anos da Associação a uma pessoa que conheço há muito tempo e ela no fim comentou que me sentia muito negativa. E sim, estou. Já houve uma altura em que achámos que o nosso trabalho aqui estava quase feito. Brincávamos que já nem fazia sentido o nome ser "Renovar", que tínhamos gentrificado o bairro. Agora olho à minha volta e não, não foi isso que aconteceu. Estamos no meio de uma conjunção de problemas. A nossa forma de reagir a isso é reestruturar a nossa capacidade de ativismo e lobbying e ajudar a mudar políticas de habitação e imigração. 

Não podemos perder a esperança, mas antes da situação melhorar ainda vamos passar por tempos complicados. É uma frustração do nosso trabalho quotidiano. Se não há casas, se não há empregos (ou os que há são informais e super precários), por que ponta é que se pega nisto e se dá a volta? Tenho esperança que a planeada revisão do SEF ajude a resolver alguns problemas administrativos. Isso poderia ajudar a minorar a situação. Mas, se não houver mudanças profundas em relação à habitação, não sei qual será o futuro da Mouraria — e da própria cidade de Lisboa. 

Só sei que teremos muito trabalho e que são precisas respostas profundas e graves. A situação está mais difícil que há 15 anos. Há mais pessoas, mais interesses económicos. Em 2008, o bairro era um território esquecido e isso até tinha um lado bom. Hoje, a força da especulação imobiliária faz com que o caminho seja outro e mais difícil. E os problemas que temos aqui há-os por toda a cidade, por toda a área metropolitana de Lisboa, porque nascem do mesmo modelo de desenvolvimento. O poder municipal deveria encarar esses problemas de forma estrutural e não como um qualquer fator externo como "leis da imigração". Ou esse próprio modelo de desenvolvimento da cidade acabará por ruir.