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Fado Bicha: “Confrontar e derrubar o silêncio é a única forma possível de existirmos e fazer ativismo”

Cantam e tocam para reivindicar os direitos das pessoas LGBTI e fazem-no desconstruindo o fado tradicional. Cinco anos depois, Ocupação é o nome do primeiro álbum de Fado Bicha que denuncia o silenciamento a que as pessoas LGBTI estão submetidas, empurradas para uma sexualidade marginal. 

Entrevista
23 Junho 2022

Cinco anos depois e com muitas canções à mistura, Lila Tiago/Lila Fadista e João Caçador rompem tradicionalismos e cantam as histórias de amor e do dia-a-dia, de uma comunidade que parece não ter existência poética nas casas de Fado. Entram neste lugar sem bater à porta e sentam-se à mesa, numa cadeira que tende a não estar por lá. Ocupam-no considerando ser seu, ainda que tenham estado de costas voltadas para ele na sua primeira década de vida

A este lugar também se chama Fado e a ele acrescentaram o adjetivo Bicha. Lila Tiago tem-na tatuada nos dedos da sua mão direita, mas também a traz “cravada” na memória como uma representação de luta, orgulho e resistência. Silêncio. Ouvem-se os primeiros acordes na guitarra elétrica de João Caçador. “Nunca fui o que quiseste, fui sempre o que não gostavas, deitei fora o que me deste, pedi-te o que não me davas”, canta Lila Fadista, num dos seus primeiros concertos.

É desta forma que se introduzem. “Temos tido um feedback incrível, mas parece que não temos lugar nos cartazes dos programadores nacionais", contam ao Setenta e Quatro. Falam-nos do seu primeiro fado, do primeiro encontro com os pais enquanto banda ativista e da primeira vez que saíram do armário e definiram o seu género publicamente. 

Seguiu-se uma ocupação histórica, de um património musical e estético com que cresceram, mas que continua preso “a uma rigidez cisheteronormativa que invisibiliza os corpos, as histórias, as dores e as cores das pessoas LGBTI e queer”. É a partir desta realidade que transportam a indústria musical para uma sociedade “comprometida”, que não pode estar "de costas voltadas".  

Quando é que deixaram de estar de costas voltadas para o Fado? 

Lila Tiago: Curiosamente, eu e o João temos histórias diferentes no que toca à nossa relação com o Fado. No meu caso, surge de uma forma meio inesperada, porque a minha família não tem ligação absolutamente nenhuma com este registo. Não são de bairros históricos de Lisboa, onde isso pudesse ser mais natural. Por volta dos 13 anos, comecei a interessar-me pelo registo, diria por maturidade emocional. Na altura, teve que ver também com características da minha vida que estavam ligadas a uma certa solidão e sofrimento. 

Tenho memórias de achar o Fado uma seca, aquela rejeição típica dos valores e dos elementos culturais da geração anterior. A Amália foi o primeiro elo de ligação. Lembro-me de O Medo, Da estranha forma de vida, mas nunca me aproximei muito da comunidade do fado. Ia a casas de fado esporadicamente, mas fui sempre uma ouvinte constante, não só da Amália, mas depois de outras fadistas, sempre mulheres, que fui conhecendo, como é o caso Carminho e, a certa altura, da Gisela João. 

João Caçador: Comigo foi diferente. A minha mãe ouvia Fado, mas não muito. Tínhamos a cassete da Amália Rodrigues, mas não era algo que me motivasse a ouvi-la [Amália]. Só na faculdade, quando entrei para a Tuna, é que comecei a ouvir e a tocar, porque o repertório da Tuna do Técnico era na sua maioria só músicas de fado. 

Em 2011, quando entrei num musical como ator, deparei-me com muitos atores e atrizes fadistas e comecei a ir a casas de fado e, depois disso, veio o canto, a viola e um curso de Música. Esta relação começou com uma estranheza na adolescência e, depois, no início da fase adulta, abracei o repertório, o registo e as casas de fado.

Lembro-me de ler numa entrevista sobre o vosso primeiro concerto, que foi também a primeira vez que os vossos pais vos viram enquanto Fado Bicha. Cinco anos depois, como é que vos encaram em palco?

L.T: Esse momento foi muito significativo e até agora quase irrepetível. Até hoje, os meus pais foram ver peças que fizemos, eram tudo participações com outras bandas. Mas concertos de Fado Bicha viram o primeiro e um outro no Ribatejo. O nosso projeto iniciou-se na primeira metade de 2017. Já demos milhares de concertos, como deves calcular, ainda assim, aquele momento tornou-se simbólico, porque eu só disse aos meus pais no final desse ano que integrava o Fado Bicha. E mais do que isso, saí do armário. 

E porque só lhes disse isso naquele momento?

L.T.: Achei que antes não faria sentido e, ao mesmo tempo, não sabia muito bem como o projeto evoluiria. Foi o momento em que reuni alguma coragem e força para partilhar, tendo sempre a expectativa de a aceitação de eu estar neste projeto não ia ser muito fácil. 

No entanto, tornou-se uma surpresa, porque a aceitação não foi assim tão dura ou tão difícil quanto temia. Claro que foi mais difícil para os elementos masculinos da minha família do que para as mulheres, principalmente para o meu pai e para o meu tio, por razões que são relativamente óbvias para quem conheça ou pense um bocadinho sobre as dinâmicas da homofobia e do patriarcado. 

A verdade é que tem sido um caminho interessante. Principalmente com o meu pai, a minha pessoa mais próxima. Acredito que para ele também foi, embora não falemos muito sobre emoções e o meu trabalho. 

"Sentimo-nos fora do armário e mostramo-nos revolucionárias, mas depois chegamos a casa dos nossos pais, sentamo-nos à mesa e parece que está tudo por fazer."

Apesar disso, já faz questões, maioritariamente práticas, como saber onde são os concertos, quando e onde é que são, envia-me sempre mensagem a desejar 'bom concerto' e pergunta-me sempre como correu. Já é muito diferente do que era há três anos. Sinto que foi um percurso que fez de certa forma sozinho, puxando ainda da sua matriz socialista. Sempre foi, e é, difícil falar destes temas de uma forma aberta.

É engraçado pensar nesse primeiro concerto, até porque falei sobre a presença dele lá e foi onde assumi ser homossexual. Foi algo difícil tanto para os meus pais como para os dele [João]. Eles ainda estavam num momento inicial de aceitação das nossas identidades. Imagino que tenha sido relativamente chocante para eles ouvir isto com centenas de pessoas. Confrontar e derrubar o silêncio é a única forma possível de existirmos enquanto seres plenos e fazer ativismo. O ativismo faz-se de muitas formas. Com um megafone na mão, mas também no sentar à mesa com a família, e, por vezes, é até mais difícil. Para mim é. 

J.C.: Como a Lila retratou, é muito significativo e simbólico imaginar duas pessoas como nós, com a visibilidade que temos a nível profissional, mediático e social, continuarem a ter o mínimo olímpico em casa. Não conseguimos falar sobre isto. As nossas famílias sabem quem somos, porque nos veem nas entrevistas e nos concertos. 

No meu caso, o primeiro concerto a que foram foi o único. A minha irmã nunca assistiu a um concerto meu. Se nós fizéssemos outra coisa qualquer que não fosse esta, fado tradicional, por exemplo, muito provavelmente a história seria bastante diferente. O interesse dos nossos pais sobre qual o concerto que íamos ter era o mínimo dos mínimos olímpicos. 

Desta forma, fica muito clara a forma como as pessoas LGBTI ainda vivem dentro do seio das famílias e como se relacionam com elas. Está cheia de silêncios e de buracos. Nós andamos sempre pelos pingos da chuva, a contrariar e a dizer meias palavras, meias frases, meias coisas e a mostrar meios sentimentos. 

O nosso caso é um exemplo de que, por mais que tentes romper com essas barreiras e silêncios, se torna uma teia tão grande e complexa assente em tantos anos, com tantas histórias e tantos sistemas relacionais familiares. Acredito que a nossa geração nunca terá uma relação plena em 360 graus na sua vida, isto é, profissional, familiar, social, no geral.

É um sintoma da vossa geração? Não se perpetua nas que se seguiram? 

J.C.: Existe outra perceção, mas ainda não é suficiente, nem está perto de o ser. Nas escolas, na medicina... diria que é algo indiscutível. 

É sempre um processo evolutivo? 

J.C.: Claro, acredito que até o simples facto de nós existirmos enquanto banda já é um reflexo disso. Há 30 anos não seria possível termos esta linguagem, acedermos à rádio, fazermos um disco, darmos concertos. 

L.T.: Sim e é também significativo isso só estar a acontecer agora. 

J.C.: É exemplificativo de que as coisas estão a mudar. No entanto, é muito diferente de já serem suficientes e estarem bem. Sentimo-nos fora do armário e mostramo-nos revolucionárias, mas depois chegamos a casa dos nossos pais, sentamo-nos à mesa e parece que está tudo por fazer. Isto revela que damos um passo em frente e numa situação socialmente concreta voltamos atrás. É muito difícil este processo. As pessoas que criticam ou que acham que os direitos estão todos conquistados na luta LGBTI não têm uma visão ou um enquadramento mais geral e mais concreto do que é a vida de uma pessoa LGBTI.

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Foto: Daryan Dornelles

L.T.: Ou então é porque enterram a cabeça na areia enquanto pessoas LGBTI. 

J.C.: A própria incapacidade individual, isto é, como é que tu lidas ou deves lidar com a tua família? Nós começamos a criar alguma expectativa sobre a nossa família no que toca ao nosso trabalho, pela forma como somos empoderadas. Falamos sobre conseguir desbloquear algumas situações e criar um diálogo e, por isso, criamos expectativas. Mas imagina outras pessoas que já nem sequer chegam à possibilidade de criar expectativas familiares ou sociais. 

 

 

Voltemos ao Fado. Este registo musical advém também de uma vontade de olhar para o passado e compreender o presente? 

 L.T.: Não acho que isso tenha uma expressão muito grande no seio de todas as pessoas que ouvem Fado. Ao longo do nosso trajeto houve quem nos dissesse, por diversas vezes, que não ouviam fado e que passaram a ouvi-lo. Começaram a ouvir-nos, e de certa forma ligaram-se a esse património. Mas há também quem nunca tenha ouvido fado, nem gostado, e que agora nos ouve.

É curioso como tanta gente gosta do que nós fazemos, isto porque eu sinto que nós, teoricamente, estaríamos a trabalhar para um nicho. Por um lado, vemos pessoas que gostam de Fado, ou pelo menos que se identificam minimamente com a estética musical do Fado. Depois pessoas que se identificam com a estética queer e que não têm de ser necessariamente queer, mas que se identificam com a sua estética e com a linguagem. E, por fim, pessoas que se identificam com temáticas de intervenção e com música de intervenção. 

J.C.: E depois a terceira camada é as que gostam das “três frentes”...

L.T.: É a interseção dos três círculos. Falando de uma forma mais ampla - e não sou historiadora de Fado – na minha visão de como as coisas aconteceram depois do 25 de Abril, houve ali um período em que o fado tradicional e as casas de fado se mantiveram. No entanto, a sua aceitação pública foi muito comprometida, por causa dessa apropriação do fado enquanto instrumento do regime. 

Partindo do que fui lendo e estudando nos últimos anos, a Amália manteve-se porque era uma estrela internacional e, portanto, já estaria num outro plano. Mas só no início dos anos 1990 é que o Fado, com novos fadistas, principalmente com a Mísia e o Paulo Bragança, começou a ganhar um novo fôlego. É curioso pensar que foi com estes dois fadistas, em particular com o Paulo [Bragança], que nunca tendo feito propriamente uma reclamação queer, nem da sua pessoa nem da sua arte, tinha uma estética relativamente queer. Era lido como homem, cantava com cabelos compridos, com vestes e descalço. Trazia uma estética muito diferente da estética clássica do homem que canta fado, com a mão no bolso, o lenço e de fato. 

A Mísia também trouxe uma coisa muito intelectualizada e uma estética que bebia muito da estética francesa intelectual. Houve uma certa mudança na apreciação do Fado. Depois, mais para o final dos anos 1990, surgem a Mariza, Ana Moura e com elas uma visão que foi aproximando ao longo do tempo o fado à música mainstream. Começou com uma abordagem mais ao pop e, nos últimos anos, a uma série de outras correntes musicais como o trap.

Não cantamos fado tradicional, no sentido em que é entendido hoje em dia, com viola de fado e guitarra portuguesa. Muito menos na estética, na lírica e no conceito até. Mas trazemos, e para mim isso é inegável, essa bagagem do fado, também é importante dizê-lo. É uma bagagem mutável ao longo do tempo. 

Há pouco fiz a ressalva do fado tradicional e como é entendido hoje em dia, porque esse cânone não é a forma como o fado existe desde finais do século XVIII e princípios do século XIX, quando se coloca um início neste género musical. Passou por muitas mudanças. 

"As pessoas queer em Portugal que chegam à idade adulta são sobreviventes desse assassinato conjunto, orquestrado, histórico milenar e epistemológico que é das pessoas LGBTI."

Já houve o fado anarcossindicalista e o fado republicano na virada do século. Foi-lhe reconhecido tanto esse potencial de subversão e agregação das massas e, potencialmente, até de sublevação, o que fez com que o regime [do Estado Novo}, particularmente António Ferro, desenhasse um plano para instrumentalizar o Fado. Sentimos que a herança dessa instrumentalização nos quarenta e tal anos de ditadura ainda se sente hoje em dia. Por exemplo, em todas as atividades que foram encapsuladas na forma como o fado acontece: a normatividade de género, a normatividade de raça, a forma como é entendido, como se institucionalizou a alma portuguesa, a voz de Portugal, como todas as ideias patrióticas, nacionalistas e colonialistas se assumiram. 

O trabalho que fazemos também é remover tudo isso e jogar com o que resta dele. Pegamos no que sentimos, que faz parte de nós, que é muito importante e valioso, até porque temos toda a legitimidade. Não precisamos que ninguém a dê para trabalharmos com essa matriz.

Há uma questão de representatividade notória. Foi a primeira vez que uma banda canta, toca e pensa as questões LGBT através do Fado em Portugal? 

L.T.: Talvez sejamos a primeira a fazê-lo de uma forma mais panfletária. Queríamos fazer música com esta linguagem, é espontâneo e natural em nós. Não foi uma escolha estratégica, mas acho que nunca houve uma banda de nenhum estilo musical antes desta década. Posso estar a ser injusta, mas não que o tenha feito da forma como nós fazemos. Por isso é fácil às pessoas atribuírem-nos o epíteto de sermos a primeira banda LGBTI portuguesa.

Ainda assim, já houve muitos músicos LGBTI. Houve muitos ao longo da história do Fado. Escreveram-no, cantaram-no e a tocaram-no com essas pertenças identitárias, mas nunca lhes foi permitido que fossem inscritas na música de uma forma explícita. Nós fazemos isso de uma forma que até agora não houve na música portuguesa. 

O que interessa aqui é pensar sobre quais os processos de silenciamento e de apagamento destas pessoas ao longo do tempo, o que se fez para que nunca tenha havido representação. Nós reconhecemos a herança de António Variações enquanto pessoas que fazem música LGBTI em Portugal. É inegável, mas mesmo ele não fez nem poderia ter feito a música que fazemos hoje em dia. E é óbvio o porquê, ele viveu nos anos 1980. Isso é a questão central a pensar: porque é que as pessoas não puderam fazer isso até agora e ainda é tão difícil fazê-lo.

O Fado Bicha passou pelo Festival da Canção este ano. O público mostrou grandes disparidades nas opiniões sobre o tema e a vossa presença.

L.T.: Acho que só vamos conseguir caracterizar e perceber exatamente daqui a algum tempo, ainda não temos essa capacidade. 

J.C.: Sim. Bem, a nós interessou-nos a ideia de entrar na casa das pessoas sem ter de pedir licença. As pessoas estão a ver o Festival da Canção e, de repente, nós entramos. De repente, veem acontecer uma coisa que raramente acontece nos dias de hoje na televisão: pessoas queer entrarem pela televisão adentro. 

Mesmo na rádio ou nos meios de comunicação no geral, não vês essas pautas e essas narrativas a entrarem. Foi interessante provocar isso. A forma como nós desenhámos a nossa presença no Festival da Canção a partir até da espontaneidade - o beijo, por exemplo - para romper com essa barreira histórica. Não conseguimos aceder a esses lugares, ou pelo menos aceder de uma forma que não seja quase sempre de gozo ou de escárnio. Ali íamos concorrer... 

L.T.: E com uma linguagem definida e controlada por nós. 

Passando ao vosso mais recente projeto, Ocupação. Podemos chamar-lhe manual de sobrevivência queer?

L.T.: A ideia do que seria o álbum passou por várias fases. Primeiro, e logo em 2019, ainda antes de conhecermos o Moullinex [produtor de música], começámos a criar uma ideia de álbum. Era uma coisa que nos era pedida até. Eu vinha de um lugar de amadorismo e acho que ainda não estou ainda muito longe desse lugar, porque não tenho formação musical nenhuma. Nunca tinha cantado. 

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Capa do disco "Ocupação"

Depois, em 2019, já estávamos de certa forma mais firmadas. Já dávamos concertos que não eram só chegar à Galeria Zé dos Bois, ligar o amplificador à tomada e cantar. Nessa altura, o que fazia sentido era gravarmos todas as músicas que estávamos a cantar. Tanto músicas que nós alterámos como músicas que cantávamos como fados, como eles eram. Isto é uma coisa muito comum no Fado: cantar fados que já existem e escreveres letras novas para melodias que já existem. Este é até o processo fundamental do fado tradicional. Muitas pessoas não sabem, inclusive, que o que foi elevado a património imaterial da Humanidade não é o Fado como conceito abstrato, mas sim as 300 e poucas melodias do fado tradicional (o fado cravo, o fado bailado, etc.). Há muitas letras para cada melodia. 

Mas isto para dizer o quê? Todos esses fados estão sujeitos a direitos de autor e, na grande maioria deles, quem gere são os herdeiros das pessoas que os compuseram ou que escreveram, porque essas pessoas já morreram. Recebemos várias rejeições e ficámos sem chão, porque percebemos que não daria para fazer o álbum que queríamos fazer. Não tínhamos experiência em compor música, depois veio a pandemia, ficámos meses sem nos vermos. "Sobrevivemos" porque felizmente temos famílias que nos apoiaram, aguentamo-nos com o dinheiro que tínhamos feito do crowdfunding, que era para pagar o disco. 

Uma vez que sou eu que escrevo as letras, têm um lado do meu passado e não só um passado remoto, como na música “1997”, mas até outras. Por exemplo, no “Fado do Ciúme”, que apesar de ser uma letra que já estava escrita, eu incorporo-a. Para mim, fala de uma relação amorosa tóxica que tive. E depois tem uma certa linha temporal da minha vida, relacionada com as minhas vivências de um passado de vergonha e violência, para um presente de um certo empoderamento, do qual a violência ainda faz parte. Seja a do passado que ainda está presente no meu corpo, sejam violências que continuam diariamente. 

Nesse mesmo eixo do passado e do futuro tem também referências a pessoas queer da ancestralidade portuguesa, como Valentim de Barros, Gisberta Salce e o próprio Matthew Sheperd, um jovem adulto gay afeminado, assassinado em 1996, nos Estados Unidos. Tem uma série de referências que passam por um passado de violência e silenciamento. Todas as pessoas queer em Portugal que chegam à idade adulta são, de certa forma, sobreviventes desse assassinato conjunto, orquestrado, histórico milenar e epistemológico que é das pessoas LGBTI. 

O álbum reflete essa herança, mas depois dá uma série de pautas e sugestões de formas como podemos não apagar essa herança, mas viver com ela. Então, nesse sentido, foi a partir daí que senti que o álbum era um bocadinho uma espécie de manual de sobrevivência queer

Dizem que a Cultura é a maior arma da liberdade. Mas a Cultura tem lugar para todas as pessoas?

J.C.: Não há dúvida que não, ainda mais para pessoas racializadas. Quando misturas estas lógicas de exclusão cultural de pessoas de grupos minoritários e interseccionais com as lógicas capitalistas - no sentido em que crias centros que produzem dinheiro e o rentabilizam. Ou seja, lógicas comerciais - elas dominam-se e reforçam-se umas às outras. Obviamente que achas que passa a ser apetecível para as lógicas culturais passarem músicas LGBTI quando é rentável. Se isso não for rentável, não vai existir. São lógicas que se cruzam de preconceito e discriminação com lógicas comerciais e financeiras. 

"O Paulo [Bragança], que nunca tendo feito propriamente uma reclamação queer, nem da sua pessoa nem da sua arte, tinha uma estética relativamente queer."

É muito difícil romperes com elas, porque não basta haver uma lei que descriminalize a homossexualidade ou uma lei que criminalize a homofobia, a transfobia, entre outras discriminações, e dizer que já podem existir livremente, que não vão ser presas nem sofrer violência física. Mas depois não nos dão um lugar físico, cultural, educacional, médico, social ou laboral onde essas coisas possam existir, onde essas pessoas se vejam refletidas e as suas narrativas contadas. Enquanto isso não existir plenamente, não existirá um espaço igualitário em comparação com uma pessoa branca, heterossexual, cis e um homem.

Parece que a comunidade LGBTI se revê nesta teia. Como dizíamos há uns dias, nós somos mortas, mas vamos nascendo como ervas daninhas nos filhos daqueles que nos mataram. Por mais que nos eliminem há sempre um lado nosso que renasce. A natureza é realmente forte. Por mais que essas lógicas de mercado, de centros e periferias, sejam difíceis, vamos estar sempre a nascer e a tentar existir.

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Foto: Fado Bicha

A homossexualidade já era representada no Fado? 

J.C.: Não. Há uma falácia que às vezes é difícil de desconstruir: a ideia de que estas identidades e sexualidades são coisas modernas, como se nunca tivessem existido. À tradição junta-se muitas vezes a normatividade. A normatividade exclui ou higieniza a tradição e aquilo que faz parte da tradição e da história. As pessoas existiram, estiveram lá, só não estão retratadas. 

Esta ausência de representatividade é uma forma muito eficaz de eliminar e muito colonizadora historicamente. A linguagem, a língua, os exemplos. Tu nasceres enquanto pessoa racializada num país em que tu não te revês na televisão, por exemplo. Ou historicamente em que a tua 'linha' é apagada, as tuas fronteiras de país, de nação, de culturas sofrem essa higienização. No nosso caso, é nas escolas que acontece. A ideia de que existem crianças ou jovens LGBTI de que não se pode falar. Toda essa aniquilação de representatividade tem um papel muito forte e muito poderoso de silenciamento. 

Posso dar-te um exemplo muito específico. Fui a uma entrevista de trabalho para lecionar música numa escola profissional e o diretor descreveu todos os jovens como sendo de bairros problemáticos e muitas pessoas afrodescendentes. Perguntei se havia pessoas LGBT, jovens LGBT na escola, que tivessem conhecimento e como era a abordagem. Ele respondeu-me que não havia ninguém LGBTI numa escola com mais de 400 alunos. Essa negação da nossa existência aniquila-nos. As pessoas podem não perceber bem o que é a importância da representatividade para alguém que nasce heterossexual, cis e branco e se vê representado. Essa ideia da representatividade passa por ser uma coisa pouco sentida ou secundária. 

Ser-se “bicha orgulhosa” neste país é “veleidade” recente em Portugal?

L.T.: Acredito ter dito isso de forma irónica. É difícil ter-se em todos os momentos da vida uma perspetiva histórica sobre as coisas. A certa altura da minha vida, tive a ideia, mesmo que não fosse consciente, de que as coisas não eram perfeitas, mas se calhar há um ano eram um bocadinho piores, há dois anos piores ainda, ou seja, que as coisas evoluíam de uma forma positiva. Percebi que isso não era necessariamente assim.

Pensarmos que está sempre tudo em risco fica assoberbante, mas, de facto, está sempre tudo em risco e não há nada, nem vitórias legais, nem progressos sociais, podem ser revertidos. Há muitas pessoas da nossa geração, gerações mais novas LGBTI e pessoas queer, que provavelmente encaram o facto de poderem dizer-se "bichas orgulhosas" e escreverem nas suas redes sociais como se fosse um progresso devido, natural. Na verdade, é um direito, mas não evoluiu de forma natural, não é como uma planta que cresce desde que seja regada e tenha boas condições de solo.

Os direitos queer não aconteceram dessa forma e não caíram no nosso colo por obra e graça de Deus, o mesmo para os direitos das mulheres ou de quaisquer outros grupos sociais nos quais tenha havido um progresso positivo no último século. Não quero ter conversa de bicha antiga, mas eu e o João partilhamos de uma crítica política nas dinâmicas do ativismo e até da iconografia queer. São de certa forma representadas em Lisboa nos principais dois eventos que temos: a Marcha do Orgulho e o Arraial. 

"A violência que tu sofres também é proporcional à forma como te expões."

A Marcha tem, por um lado, uma consciência política não só do caminho que os direitos queer fizeram até hoje como do que ainda está por fazer. Depois, por outro lado, tem uma lógica e uma dinâmica muito ligadas a processos de mercado de uma celebração que, no meu entender, e não vou dizer que o arraial é um exemplo disso, é vazia. Tem esse lado de alguma representatividade e, nesse sentido, pode ser positiva, mas, da forma como vejo o ativismo, peca por não se integrar em processos [de alargamento]. Alguns deles podem estar intimamente ligados à comunidade LGBTI e, apesar das pessoas LGBTI estarem em todo o lado, no sentido conceptual, estão fora do campo LGBTI. 

No nosso entender e de muitas pessoas ativistas, não dá para ver a luta LGBTI como separada de quaisquer outras lutas na sociedade. Por isso é que tens na marcha coletivos como o SOS Racismo, associações como a APAV, porque a luta LGBTI não pode ser entendida fora da luta pelos direitos das pessoas racializadas, ou da luta contra a precariedade laboral ou contra a violência entendida de forma geral, contra a lei da habitação. Não só, mas também porque tens pessoas LGBTI racializadas, precárias, que sofrem violência doméstica, que estão na Palestina e são vítimas do apartheid e do genocídio israelita.

Olhemos para a legislação na última década… 

J.C.: Podemos sempre tentar encontrar soluções políticas e económicas, mas enquanto houver um fundo de lógicas capitalistas é impossível não taparmos um buraco de um lado e deixar outro em aberto. Este é o sistema do capital. Do patrão, do empregado, da pessoa que está no centro e na margem. E, invariavelmente, essas pessoas mais fragilizadas social e culturalmente são mais fáceis de ocupar esse lugar à margem. Isso acontece de uma forma ainda mais descarada com as pessoas racializadas. 

Por isso é que a Lila dizia não fazer sentido ter-se a meia fantasia dos direitos LGBTI, porque isto é uma coisa que, na prática, é meia virtual porque as pessoas LGBTI são pessoas racializadas, pobres, e poderia continuar nesta lista. Pensar que o direito à habitação é um problema e que depois ainda existe outra camada: as pessoas LGBTI, com uma dificuldade ainda mais acrescida ao direito à habitação. Mas não é por nós acabarmos com o problema da discriminação total das pessoas LGBTI que deixariam de ter dificuldades no acesso à habitação. Por mais que encontremos micro soluções, nunca vai haver uma igualdade de género enquanto não acabarmos com estas lógicas capitalistas. 

O Estado nunca vai deixar de ser um Estado binário ou que faz uma leitura das pessoas binárias, racializadas, porque faz parte da própria sustentabilidade das estruturas. A violência que tu sofres também é proporcional à forma como te expões, ou seja, quanto mais esconderes, menos violência sofres e quando te expões acontece o inverso... 

A pandemia provocada pela covid-19 agravou a vulnerabilidade, a discriminação e a violência contra pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo (LGBTI+). 

L.T.: Todas as pessoas, queer e não queer sofrem uma prescrição de género que é violenta, inclusive para os homens cis. Não é por acaso que os homens cis se suicidam três vezes mais do que as mulheres cis. Essa ditadura de género é especialmente violenta para as pessoas queer. Tens uma sociedade que prescreve às pessoas quando nascem, e a partir da sua configuração genital, uma lista de possibilidades com tudo o que está dentro do conceito de vida. É uma prescrição que as acompanha para o resto da vida e que, mais do que acompanhar, molda-as de uma maneira que elas nem veem. 

Muitas vezes são as famílias, infelizmente, que se tornam lugares insuportáveis de viver, porque as suas identidades não são reconhecidas, não são respeitadas. E, portanto, há um afastamento endémico das pessoas queer em relação às suas famílias. Isso causa, obviamente, o enfraquecimento não só das relações afetivas como da própria rede social e da rede de apoio, o que contribui para a precariedade. 

Nós somos mortas, mas vamos nascendo como ervas daninhas nos filhos daqueles que nos mataram.

Mas os próprios contextos laborais são, muitas vezes, difíceis para toda a gente porque o trabalho é uma merda, mas para as pessoas queer têm um certo grau adicional de dificuldade. Isto manifesta-se de uma forma tão simples quanto me chamarem senhor. Isto são micro violências, são situações pontuais. No entanto, se as multiplicares por muitas ocasiões com relações de poder, se estiveres a falar com uma pessoa tua patroa, que esteja numa posição de poder em relação a ti… Já trazemos essa história cravada na nossa pele.

Portugal foi um dos países que desceu no índice europeu sobre a situação jurídica e políticas das pessoas LGBTI? Assistimos a um retrocesso? 

L.T.: No campo social, o facto de sermos muito mais visíveis faz com que cada vez mais pessoas reclamem essa visibilidade. A violência vai inevitavelmente aumentar. Portugal é um país de silêncio e de moderação. E isso é visível de muitas formas, é muito visível na própria comunidade LGBTI . 

Quem são as pessoas LGBTI na esfera pública em Portugal, assim muito conhecidas? São homens gays e uma parte replica os discursos fóbicos dos quais foram vítimas a vida toda. Provavelmente continuam a ser vítimas nas redes sociais e replicam esses discursos em horário nobre. Pessoas queer na esfera pública são praticamente nulas, mesmo as mulheres lésbicas. Nem se fale das pessoas trans.

 

Os média podem também ser responsáveis por isso? 

L.T.: Há uma camada de pessoas que falam disso. É okay o Goucha ser homossexual? Claro que sim. De certa forma, visto com uma lente assim muito ampla, para a comunidade LGBT é fixe ter um apresentador representado e ser aceite, ter o impacto cultural que tem. Mas depois analisas o discurso e a forma como essa pessoa se apresenta e quem é que ele representa ou de que forma: os discursos que replica e os que não tem. É perfeitamente plausível para uma pessoa que veja o programa dele todas as semanas ou todos os dias não pensar uma única vez sobre o que é ser LGBTI. 

É óbvio que os direitos LGBTI e a visibilidade não se fazem só de pessoas famosas, mas é bastante notório e exemplificativo da forma como nós entendemos. Tudo está bem então não se fala do assunto. É muito esta cultura de uso doméstico, da moderação e, obviamente, quem navega muito bem e com sucesso, e não uso essa palavra em vão, são os homens, cis, heteros e brancos que dominam e que gerem a linguagem e as lógicas de poder a todos os níveis. E também na cultura. 

Se olhares para as pessoas que efetivamente gerem do ponto de vista financeiro a Cultura em Portugal, vês que são homens, cis, heteros e brancos: são quem organiza os festivais, quem faz as curadorias mais importantes no sentido artísticodefinidor do que é a cultura sustentável para as pessoas que fazem cultura em Portugal. Poucas mulheres conseguem romper. 

Lembram-se da primeira marcha LGBT em que participou? Podes descrever esse dia?

J.C.: Lembro-me da primeira marcha e, sobretudo, da sensação de lá estar pela primeira vez. Além de ser uma ocupação do espaço público e uma manifestação política, é a ideia de ser uma resposta a vivências que eu tive, que muitas outras pessoas LGBT passaram: de solidão, do armário, de culpa de vergonha de falta de representatividade, de ligação a um lugar, falta de te projetares em algum lugar. 

É importante contextualizar a importância da marcha, porque quando falamos é uma distância tão grande para as outras pessoas que não se percebe a ligação com a realidade. É um dia do ano em que tu sentes de forma pública, sentes que há uma multidão de mar à frente e atrás de ti que te sustenta e o orgulho vem como uma espécie do lado oposto ou de resposta à vergonha. Até poderia fazer sentido chamar-lhe Marcha da não vergonha, da não culpa e da negação. É uma resposta e uma negação de tudo o que simboliza ser bicha, ser gay, toda a carga insultuosa que está à volta das palavras. 

A marcha tem esse poder de trazer cartazes, de termos a possibilidade de falar para a comunicação social, de escolhermos um discurso difícil de ter o ano inteiro. É um dia em que muitas pessoas vestem a roupa que sempre quiseram vestir e que nunca tiveram coragem ou possibilidade de vestir nesse ano. Não há outra altura em que possas ir ao Cais do Sodré e dar, à luz do dia, um beijo na boca do teu namorado. 

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Foto: Fado Bicha

Lembro-me que a primeira memória [na Marcha] foi de pensar que há mais pessoas como eu, porque muitas crescem a achar que são as únicas no mundo. A primeira grande sensação que tive foi de liberdade, de ocupar espaço e de ver uma identidade, um eco em muitas pessoas. E o pânico de aparecer na televisão, que os meus pais me vissem. 

L.T.: Antes da minha primeira marcha, quando tinha 15 anos, lembro-me de a ver na televisão. Senti uma vergonha enorme e medo, que de alguma forma fosse visível o elo que eu tinha àquelas pessoas. Depois, por volta dos 19 anos, fui à primeira marcha com a minha amiga mais antiga, uma rapariga lésbica, negra e que hoje mora na Suíça com a namorada. E foi tudo isto que o João falou, essa sensação de haver uma comunidade. 

Nessa altura ainda não tinha saído do armário nem outras pessoas amigas que fossem LGBTI. Ainda por cima era a bicha da escola, tinha uma bagagem de violência durante anos. Eu sabia que não era a única. Já tinha lido todos os livros que podia 'apanhar' de cenas LGBTI, mas tinha muito essa bagagem de solidão. A marcha, talvez o primeiro impacto para quem vai pela primeira vez, dá-nos aquele sentimento de que não estamos sozinhas, é uma experiência emotivamente muito forte e potente, até do ponto de vista da superação. Lembro-me também das primeiras vezes tentar controlar as câmaras de televisão para não aparecer. E de sentir, sentir uma alegria imensa e, até hoje, a marcha para mim continua a ser muito importante. 

Nos últimos vinte anos novos temas emergiram nos ciclos de atenção noticiosa. Entre os quais destacam-se a homoparentalidade, temas transgénero e o bullying, todos eles com ligações diretas a iniciativas por parte do ativismo LGBTQ… 

J.C.: Basta ver as últimas reportagens que foram feitas na TVI até relacionadas com as entidades trans. A forma é sempre muito problemática, sempre com um psicólogo presente no debate, as formas como se repetem, mesmo nos títulos das notícias. A ideia de que alguém vem legitimar o que a pessoa está a dizer. Como se aquela pessoa fosse doente, então está a pessoa ao lado a legitimar aquilo que ela diz. 

L.T.: Obviamente que as pessoas psicólogas que estão lá não estão a achar isso e, provavelmente ninguém de lá o achará, mas simbolicamente e de uma forma prática a inclusão sempre de uma só psicóloga em contextos destes cria uma vivência para as pessoas trans e para todas as pessoas que veem que não é suficiente falar sobre si própria. O discurso daquela pessoa, não é validante por si mesmo. É necessário haver um ou uma profissional de saúde mental que faça a validação de discurso daquela pessoa. É super pernicioso. 

Este ano foi dos anos com maior número de pessoas. Acha que a cobertura jornalística também trouxe essa visibilidade?  

L.T.: Enquanto sociedade portuguesa, temos uma relação muito tensa no entendimento do público com as manifestações como ato político ou com qualquer reivindicação. Muito por culpa desta postura da modéstia e da moderação e do silêncio, temos uma relação muito difícil com quaisquer manifestações de reclamação, sejam através de manifestações propriamente ditas, demonstrações ou através de outros mecanismos. Temos muita tendência para desmerecer as causas pelas quais se luta e as pessoas que o fazem. Isso reflete-se também no desentendimento e ignorância sobre o que significam as marchas, não só historicamente, como para as pessoas que fazem as marchas que são milhares. Provavelmente encaram a marcha como um ato de capricho, ainda para mais se juntarmos a ideia de que já está tudo conquistado. 

J.C.: É este caminho de interesse generalizado, por um lado fruto das condições de que falei e por outro de um desinteresse deliberado, em não querer fortalecer este tipo de dinâmicas sociais. Há muito essa tendência e isso vê-se também nos sucessivos governos. O diálogo social que se estabelece e a forma como se comunica,ou a ausência dele.

A sociedade portuguesa é muito torcida a esse respeito, é muito difícil construir organizações sociais. Criar coletivos, mantê-los ao longo do tempo, com as pessoas motivadas e para conseguir chegar a objetivos sociopolíticos, é muito difícil. O nosso caldo cultural, ainda muito por herança do Estado Novo, é muito desencorajador e nós vemos isso até nas pessoas LGBT. Estão alienadas da necessidade LGBTI. Se for preciso, fazem escárnio do ativismo ou, mesmo que não o cheguem a fazer, estão muito alienadas da consciência histórica e da sua importância atual. 

J.C.: Passam muitas mais pessoas no arraial do que na marcha.

L.T.: Vamos ver se no sábado passam mais de 30 mil pessoas no arraial. Há muitas pessoas que conheço que não vão às marchas e vão ao arraial. Há amigos meus gays que começaram a ir à marcha porque eu insistia, e hoje adoram. Mas a marcha era algo que mostrava resistência maior. É a ideia de as pessoas encararem a marcha, muitas vezes, como um lugar de excentricidade em que as pessoas só querem ser vistas. Essa noção prende-se muito com a ideia de reclamar o teu lugar na sociedade e a tua voz. Em Portugal há muita dificuldade em conceder esse direito, a muitas pessoas.