Domingos Abrantes

Domingos Abrantes foi torturado pela PIDE e passou 11 anos em prisões do Estado Novo | Foto de Rafael Medeiros

Domingos Abrantes: "Os resistentes são uma camada em vias de extinção, esperamos que não sejam precisos novos resistentes"

O histórico dirigente comunista juntou-se ao PCP pouco depois de fazer 18 anos. Lutou na clandestinidade contra o Estado Novo, foi torturado e passou 11 anos em prisões fascistas. Participou na fuga de Caxias, a mais espetacular no regime de Salazar, e viveu a Revolução de Abril. E hoje alerta para os perigos antidemocráticos que estão à espreita.

Entrevista
12 Outubro 2021

Domingos Abrantes nasceu em Vila Franca de Xira a 19 de janeiro de 1936 e passado pouco tempo mudou-se com a família para Lisboa, para o bairro do Poço do Bispo. Aos 11 anos, já trabalhava numa fábrica. Foi aí, no meio operário, que começou a ganhar consciência política.

Aos 17 anos entrou no MUD juvenil e um ano depois, em 1954, aderiu ao PCP. Em 1956 passou à clandestinidade e um ano depois foi preso pela primeira vez. Foi torturado na sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, e encurralado na prisão do Aljube, hoje tornado museu, local onde o Setenta e Quatro o entrevistou. Esteve também em Caxias e em Peniche. Ao todo, foram 11 anos de prisão.

As memórias mais dolorosas são ultrapassadas pelo sentido do dever. Domingos Abrantes não perde uma oportunidade para transmitir a várias gerações o que viveu na ditadura e a brutalidade a que ele e a mulher, Conceição Matos, foram sujeitos. Estão ligados desde 1963. Casaram na prisão de Peniche em 1969 para que Conceição o pudesse visitar – depois de estarem cinco anos sem se verem. Nunca saíram do PCP, e Domingos Abrantes diz nunca ter perdido o ânimo na luta por um mundo mais igualitário, sem a ameaça do fascismo.

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Domingos Abrantes
Domingos Abrantes já revisitou várias vezes as prisões onde esteve preso durante a ditadura | Foto de Rafael Medeiros

O histórico dirigente comunista de 85 anos mantém o bom humor e não se cansa de contar uma das mais emblemáticas fugas da história do país, quando saiu com um grupo de camaradas do forte de Caxias num carro blindado de Salazar. Esse é um dos assuntos desta conversa, que deixa no ar uma vontade de manter viva a memória destes combatentes. É preciso não esquecer, e é preciso ouvir as pessoas que viveram o fascismo.

Gostava de começar por falar deste local onde estamos, o Aljube. Esteve aqui preso em 1959 e depois levado para a António Maria Cardoso. O que sente quando passa por estes lugares?

Ora bem, estive duas vezes em Caxias, até estive três vezes... A primeira vez vim para aqui, depois para Caxias, depois para Peniche, depois outra vez para Caxias, depois fugi. Já visitei as três cadeias com alguma frequência. Peniche mais por causa do trabalho relacionado com o museu, Caxias fui duas ou três vezes. Fui aos 50 anos da fuga e fui agora falar com o diretor por questões de investigação. Ninguém esquece, mas cada um de nós é diferente.

Sinceramente, entro neste espaço sem ligar ao passado. Não me sinto constrangido porque subi aquelas escadas, ou porque estive nos curros. Já tenho passado pelo Forte de Caxias e nem sequer me lembro... A Peniche também vou, mas conheço camaradas que ainda não vão. Acho que é bom este distanciamento em relação a uma realidade que é penosa, e que se não for distanciada continua a ser penosa. Eu tenho memória, tenho o sentido do que isto representou para mim, mas do ponto de vista psicológico e emocional não me pesa.

Mas acha importante deixar o testemunho.

Evidente! O tempo vai passando, e isto são realidades completamente diferentes. Felizmente. Costumo dizer que os resistentes são uma camada em via de extinção, por razões óbvias, e esperamos que essa seja a realidade, que não seja preciso de novo novos resistentes. Já estive mais otimista em relação a isso do que estou atualmente, mas acho que é bom, porque há uma geração que está a chegar ao fim, sobretudo a geração dos clandestinos, que é um pouco diferente. Por muito novos que fossemos, passaram 47 anos. É uma geração com uma idade muito avançada.

É bom no não sentido que significa que ainda vivemos em liberdade. Quando digo que está em extinção, é porque não é preciso uma nova geração de resistentes. Mas o problema é: para a gente continuar a viver em liberdade, é preciso que as pessoas saibam o quanto custou. E esse é o grande problema do nosso tempo.

Ontem estive aqui com mulheres da Marinha Grande, a falar de uma realidade... Toda a dureza que é uma criança trabalhar aos seis anos; eu tive mais sorte comecei aos 11. Essas realidades são inimagináveis. Os jovens, e menos jovens, de hoje, não conheceram os efeitos da ditadura. A não ser que os pais fossem pessoas paupérrimas. Houve muitas pessoas que não sofreram. Do ponto de vista da ditadura, eu podia não ter sido preso, mas só comi manteiga e bebi leite em adulto.

Com que idade?

Lembro-me que comi manteiga já bastante adulto. Quando estava na escola, com cerca de oito anos, o meu pai comprava um quarto de litro de leite para três crianças. E no dia em que apareceu o leite foi uma festa. Era para descolorir o café.

Quer dizer que bebiam café.

Café de chicória queimada. E essa beberagem era para pôr com banha, e às vezes não havia banha, era só pão. Em minha casa não entrava fruta. Portanto, são as consequências da ditadura, do ponto de vista da vida das pessoas e sobretudo dos jovens... ia para a escola descalço. Tenho uma fotografia de uma escola, de uns 40 miúdos, só há o professor e um miúdo calçados. Isso não acontece hoje. Mesmo nos bairros mais pobres, às vezes vou às escolas e brinco com os miúdos, se eu tivesse tido uns ténis daqueles...

"Para a gente continuar a viver em liberdade, é preciso que as pessoas saibam o quanto custou. E esse é o grande problema do nosso tempo."

Quando Salazar proibiu o andar descalço, os pais tiveram que comprar umas sandálias, umas alpargatas, que era uma coisa de pano com borracha por baixo, e eram uns tamancos como com napa, que eu costumava dizer que pareciam quase uns sapatos italianos. Era um luxo! Entre andar descalço e andar com tamancos, aquilo era um luxo.

Ainda em criança, quando começou a trabalhar, como é que ia para o trabalho? Era distante? Vivia no Poço do Bispo, não é?

Sim. Ia a pé e vinha a pé. A primeira fábrica para onde fui era relativamente perto do bairro, a um quilómetro. Fui trabalhar como aprendiz de fundidor, ganhava vinte escudos por semana.

E o trabalho era difícil?

Não, não era difícil. Até gostava. Mexer na terra, fazer moldes. Depois fui trabalhar para uma fábrica seis meses à borla, sem ganhar um tostão, para aprendiz de torneiro. Aí estive vários anos, três ou quatro. O salário máximo eram seis escudos e sessenta centavos por dia. Ganhava tanto como a minha mãe.

O que ela fazia?

Era costureira, na mesma fábrica. Mas eu era do setor de operário especializado.

Não era também por ser mulher?

Sim, era por ser mulher, mas também porque a profissão era muito desvalorizada. Nunca saímos da fábrica com dinheiro. Como a fábrica tinha cantina, a minha mãe aviava-se na cantina, uma mercearia, e acabava por ser uma desgraça. Era fiado e descontado no salário. Na véspera do salário, a empresa informava quanto é que tinha de se repor, e não dava para aquilo que se comia. Era um problema sério, não se podia chegar à fábrica e não pagar. Eram discussões em casa para arranjar dinheiro. A minha mãe não só não recebia um tostão como tinha de levar. Era uma casa onde não havia dinheiro. Muitas vezes as pessoas iam empenhar coisas. Todos os bairros tinham casas de penhora.

O que punham em penhora?

Tudo o que havia. Mas havia uma coisa mais perversa, porque as pessoas compravam a prestações, às vezes alianças, anéis, ou até uma máquina de costura, e depois iam empenhar, sempre na esperança de ir buscar, e depois tinham ficado sem o dinheiro, sem os objetos e com a prestação. É como aqueles cartões de salário adiantado. Era um sistema muito perverso.

E pagavam renda de casa. Era com o ordenado do seu pai?

Exatamente. O meu ordenado e da minha mãe não davam para a renda da casa.

E os seus irmãos?

A minha irmã era costureira, ganhava 25 tostões por dia ou coisa assim. Ainda por cima tinha de pagar o elétrico para a Baixa. O meu irmão era o único filho que estudava, nas férias ia para as fábricas de cortiça. A outra irmã trabalhava na fábrica da Pólvora, casou muito jovenzita... Iam-se acumulando dívidas. Nem era possível viver sem dívidas.

Foi o seu irmão que que entrou na vida política mais cedo?

Sim, o meu irmão era mais velho do que eu nove ou dez anos. Vivíamos num bairro de influência partidária, de atividade democrática. O meu irmão esteve nas campanhas do Norton de Matos [em 1949], e até foi aí que conheci muita malta do bairro. Ele entrou para o Partido, mas seguimos caminhos diferentes. O meu irmão casou, eu segui o meu caminho autónomo.

Mas acha que foi um pouco influenciado por ele?  

Influência porque no bairro havia uma vida de oposição democrática. Havia muitos membros do partido, a 50 metros vivia o Joaquim Campino. Era um ambiente antifascista, sobretudo nas fábricas. A primeira lição que tive de política foi de um mestre da fábrica, muito humano, uma pessoa com preocupação de transmitir aos jovens os conhecimentos. Tinha uma coisa muito curiosa: punha os miúdos a pensar, estava sempre a dizer 'eu não sei nada de política, mas há uma coisa que me intriga, é que se os capitalistas não gostam de comunistas é porque não é bom para eles, se não é bom para eles, pode ser que seja bom para nós'. Tão simples como isto. É uma coisa primária, mas é um raciocínio. Porque é que não gostam? Ele suscitava esta interrogação.                                                                          

Entrou em 1954 para o Partido Comunista e em 1956 já estava na clandestinidade.

Tornei-me funcionário do MUD juvenil.

Com 17 anos.

Sim, à volta disso. Fui funcionário do MUD juvenil até princípios de 1959. O MUD juvenil acabou em 1958, ainda houve uma tentativa de criar uma outra organização. Em janeiro de 1959 passei para o Partido. Fui 'agarrar', foi-me entregue a organização aqui de Lisboa. A linguagem era 'vais agarrar a fábrica tal', 'vais agarrar a região tal'.

É uma expressão que já não se usa.

'Agarrar' é controlar. Era responsável por aquela organização, tinha que reunir com os camaradas. Mas o sentido do 'agarrar' era outro, porque havia camaradas que eram presos, ou mudavam de região, era preciso começar a tecer, à pesca de um camarada que conhecia outro... Estive aqui no comité local de Lisboa.

"Fugir, preparar uma fuga, é uma coisa que só se faz com alegria. Lutar era em si mesmo uma fonte de alegria. Fazer greve, ganhar dois tostões de aumento, tudo isso nos enchia de orgulho."

É uma longa ligação ao Partido Comunista, que fez agora cem anos. Nunca teve altos e baixos?

No sentido de ânimo?

Sim.

Sinceramente não. Para já, na juventude... o Lenine tem uma expressão muito curiosa, 'a juventude é a chama mais pura e mais ardente da revolução'. Os jovens tinham menos responsabilidades, não tinham filhos... Pertenci a uma geração em que a nossa amada era a revolução. Às vezes jovens que estavam a pensar em casar, namorar, era quase um desvio pequeno-burguês.

Disse numa entrevista à Anabela Mota Ribeiro que nesses anos havia muito sacrifício mas também alegria. Que alegrias eram essas?

Isso é referente à infância, digamos assim... Sacrifícios porque os pais iam para o trabalho e tínhamos de nos desenrascar, e passeávamos em bandos, íamos para a rua, jogar à bola para a praia – a praia era a doca. Coisas perigosíssimas. Os miúdos passavam os dias em grupo. Aquilo que se encontrasse para comer era para todos. Tudo o que havia se partilhava. Era uma alegria.

Nos bairros populares havia uma grande entreajuda. Uma mãe que tivesse um problema, qualquer vizinha deitava a mão aos filhos. Não havia outra forma, não havia creche. Sentia-se alegria no meio da miséria.

Havia solidariedade? Acha que havia mais do que agora?

Nem tem comparação. Para já, perdeu-se o hábito de bairro. Toda a gente se conhecia.

Mas esse sentimento de alegria de que eu falava era mais sobre o tempo em que foi preso e na clandestinidade.

Não era possível lutar sem alegria. Muitas vezes fala-se pelo lado do sofrimento, a pessoa que é presa, que é torturada, mas também tem um problema de realização pessoal, a pessoa que se superou a si própria, que enfrentou a polícia com coragem, mostrou ser mais forte. A polícia tinha o poder de torturar, de assassinar, mas não tinha o poder de obrigar quem não quisesse a falar. Isso enche de uma alegria fantástica, olhar para eles e pensar 'estás a bater-me, mas eu sou mais forte que tu'. Fugir, preparar uma fuga, é uma coisa que só se faz com alegria. Lutar era em si mesmo uma fonte de alegria. Fazer greve, ganhar dois tostões de aumento, tudo isso nos enchia de orgulho.

Vou ter de lhe pedir para me contar a fuga de Caxias. Já deve ter contado muitas vezes, mas não resisto. Principalmente a parte do carro.

Não consigo contar a fuga em menos de uma hora e dez.

Uma hora e dez precisamente?

Precisamente. O máximo que consegui foi uma hora e dez. Se for aqui a falar com miúdos é meia hora, vinte minutos. Mas se for ao Youtube está lá uma sessão que fiz no Caramulo – o carro está no Museu do Caramulo. Apareceram uns jovens cineastas de Vila do Conde, viram num jornal que eu ia lá e perguntaram se podiam filmar. Está no Youtube, e é o testemunho mais completo.

Então vou só perguntar um pormenor. A comunicação era feita por toques de código morse na parede?

Se o Museu de Peniche for inaugurado, vai ver o sistema. Havia vários sistemas de ligação, das cadeias para o exterior... Repare, durante toda a vida prisional li o Avante na cadeia, não é uma coisinha pequenina. E até lhe vou contar uma história. Um dia, levava para o recreio uns seis Avantes no bolso, num maço, que era para aproveitar uma oportunidade e passar para o outro piso. Não via a minha mulher, não tinha visitas, mas ela foi lá e fez barulho, fez barulho, andou ali meses, até que acabaram por lhe dar uma visita, mas não me avisaram. Quando se ia para a visita, os presos eram todos revistados, à ida e à vinda, ainda que não houvesse o mais pequeno contacto, porque havia um vidro. Era a rotina prisional.

Então, eu estava no recreio, apareceu o guarda a dizer que tinha de ir ao diretor. Ora, ir ao diretor era só para receber castigos, pus-me a pensar no que é que tinha acontecido... um guarda a dizer que eu tinha feito barulho, ou que não tinha sido correto com ele. Enfim, aquelas coisas que se inventavam para castigar os presos. Quando estava a pensar no que é que tinha feito, o guarda diz 'você vai ter uma visita de cinco minutos com a sua mulher'. Fiquei à rasca, muito atrapalhado, porque não tinha sido revistado, e ia ser revistado à saída. Já não ter sido à ida... se tivesse sido tinha arranjado um sarilho qualquer, tinha atirado aquilo para qualquer lado, estavam outros camaradas, até podia ir para o segredo [células de isolamento] ou para o castigo...

Lá fui para a visita, não via a minha mulher há uma quantidade de anos, e ainda hoje não sei do que é que a gente falou. Ela ficou aflita, pensou que já não queria nada com ela. Mesmo separado por um vidro, um casal que não se via há vários anos era natural que houvesse emoção, afetividade, mas, digo-lhe sinceramente, não sei do que é que falámos.

Lembra-se que foi comovente.

Sim, isso nunca poderia deixar de ser, ainda mais porque não lhe podia dar atenção. O pior era ela que não sabia o que se passava. Eu sabia que estava a resolver um problema, ela não. Só veio a saber anos depois.

Quando o guarda disse que a visita terminou, saí pela porta fora numa passada a alta velocidade, eram cinquenta metros para chegar ao pavilhão. O guarda era um fulano pesado, dizia-me para ir devagar, e mais eu acelerava o passo, ainda lhe ganhei uns quinze metros de avanço, e não era a correr, senão dava-me um tiro. Entrei no pavilhão, tive uma sorte, estava a porta aberta, atirei lá para dentro. O pavilhão estava na altura desativado. E lá fui revistado.

E depois, o maço não foi visto?

Depois fomos buscá-lo. Nós só limpávamos as zonas que ocupávamos. Houve uma grande guerra, lutas, castigos, porque os carcereiros queriam que nós limpássemos tudo, e nós zero. E um dia dissemos que aquilo [o pavilhão] cheirava mal e oferecemo-nos para ir limpar aquilo, e eles nem queriam acreditar.

Isso foi passado quanto tempo?

Uns dois ou três dias. Lá fomos com uns baldes e esfregonas, os carcereiros a pensarem 'finalmente regeneraram-se', e recuperámos a mercadoria. Depois não houve mais limpezas!

Mas voltando a essa questão [da comunicação], o mais primário era o morse. Cada letra é correspondente ao número de pancadas, é uma coisa morosa e tem de se ter uma memória de elefante.

"Os primeiros presos políticos eram bebés. As mães chegavam à cadeia quando só bebiam leite e os guardas davam feijão guisado, e elas tinham de estar ali, a tirar o suco do feijão..."

Porque não podiam escrever.

Nada, não se podia escrever. Tem de se fixar. E às vezes eram conversas longuíssimas. Qual era o grande inconveniente? É que aquilo era uma conversa que toda a gente ouvia, menos os guardas. Os guardas, se ouvissem, interrompiam. E que podíamos nós comunicar? 'Como é que te chamas?', 'bateram-te?'. Não podia transmitir coisas clandestinas. Fugir era completamente sigiloso. Era uma imbecilidade por morse estar a transmitir essas coisas.

Era no recreio?

As ligações internas eram por mensagem escritas em mortalhas de tabaco. E havia camaradas que eram uns autênticos artistas; conseguiam às vezes pôr numa mortalha coisas de uma densidade enorme, uma letra quase microscópica. Em Peniche está uma mortalha pendurada, ampliada cem vezes.

Como é que as passavam uns aos outros?

Na cadeia havia vários métodos. No balneário, na enfermaria.

Essas mortalhas eram destruídas como?

Queimadas, ou comidas. Houve quem tivesse que comer porque os guardas descobriram. Quando o Dias Lourenço fugiu, o guarda viu que ele estava a escrever uma mensagem, roubou, ele atirou-se ao guarda e comeu.

Um ano antes da fuga de Caxias houve uma outra, em Peniche, e que teve um repetente, o Francisco Miguel.

Teve mais que um repetente. O Francisco Miguel fugiu duas vezes de Caxias e duas vezes de Peniche. Naquela fuga estavam o Chico Miguel que fugiu quatro vezes, o Jaime Serra que fugiu três, o Joaquim Gomes que fugiu duas, o Costa Carvalho fugiu duas e o Pedro Soares que fugiu duas.

A fuga de Peniche foi inspiradora, por ser bem-sucedida?

Não há fugas iguais, e são fugas autónomas. Quando se deu a fuga de Peniche, já nós estávamos a preparar a de Caxias. Nós não sabíamos que eles a estavam a preparar, e eles não sabiam que nós [também] estávamos a preparar.

As duas são de um enorme sucesso. São as últimas fugas [coletivas], não houve mais, os carcereiros, à medida que avançaram no tempo, foram refinando as medidas de segurança, as fugas tornaram-se cada vez mais difíceis.

Essas duas fugas são únicas, porque são de número muito elevado de presos. Peniche são dez, Caxias são oito. Até ali era de dois, três, um. Exigiam um grande trabalho. São estudadas em laboratório, mas só se confirmam no momento. Há ensaios teóricos. O ensaio é o ato, corre bem ou não corre. Em Caxias tivemos que rebentar com um portão, que não havia, só houve depois da fuga de Peniche, foi umas das consequências.

Na fuga de Caxias, eles [guardas] assistiram desde o primeiro minuto. Aliás, há um relatório da GNR que é de uma exatidão matemática. Eles foram observadores, viram tudo, um problema numa valeta, tudo! É a única fuga a que os carcereiros assistem, impotentes. Deviam achar que era uma brincadeira de garotos.

Entre as prisões de Peniche, Caxias e Aljube, qual era a mais dura?

São tudo cadeias diferentes. O Aljube era das piores, era de transição para os interrogatórios. Aqui vinha-se sarar as feridas. As pessoas vinham a cambalear... Os curros é uma coisa... estamos a falar de um metro por dois, portanto sem movimentos, escuro. Sem jornais, sem revistas. Aqui o isolamento era uma coisa brutal.

Caxias tinha uma vantagem, desde que não se fosse de castigo para o segredo, porque era um regime de salas. Para pessoas que têm dificuldade em enfrentar o isolamento, as salas são o melhor. Mas cinco ou dez pessoas numa sala minúscula, em que cada gesto colide com o outro, se um ressona e o outro não, se gasta água quente... Além de cada pessoa ter os seus problemas com a família, quando um pai era preso, ou o pai e a mãe, davam-se dramas terríveis, muitas mulheres eram presas com os filhos. Primeiro que se arranjasse quem ficasse com os filhos... Houve mulheres que tiveram os filhos na cadeia. Os primeiros presos políticos eram bebés. As mães chegavam à cadeia quando só bebiam leite e os guardas davam feijão guisado, e elas tinham de estar ali, a tirar o suco do feijão... Com estes problemas todos, o estado de ânimo das pessoas vai abaixo, e isso tende a repercutir-se no coletivo. Tem de se dar uma ajuda para elevar a moral.

"O maior milagre de Fátima é que os fascistas de um dia para o outro passaram a ser democratas. Chegaram a ministros, a altas figuras de Estado, fascistas."

Peniche tinha um problema muito complicado, que era o grande isolamento entre os presos, era um regime brutal, de prepotência, de observação permanente. Tínhamos de nos pôr em sentido para falar com os guardas. E havia o isolamento celular, que eram vinte horas por dia. Para quem não tinha o hábito de trabalhar a cabeça, de escrever, de ler, quando se podia. Quando fui para lá tiraram-me os livros todos que levei de Caxias. O guarda disse 'aqui só entram gramáticas e cionários' [ipsis verbis da boca do carcereiro]. O diretor dizia que estávamos presos porque os livros deram cabo da cabeça. Para nos curar tinha de nos tirar aquilo que nos punha doentes. Era um ex-seminarista.

Engraçado chamarem segredo ao isolamento.

Os carcereiros chamavam célula disciplinar, os presos chamavam segredo, mas às vezes os carcereiros também. Aquilo é mesmo um segredo: não tem luz, não tem cama, para ir à casa-de-banho, que eram aquelas sanitas redondas no chão, tinha de ir [gesto de apalpar as paredes]. Ali não se sabe nada, se é noite, se é dia.

Quando ia a entrar para o segredo houve um guarda que disse 'não pode cantar', nem sei porquê. Sou uma cana rachada, mas comecei logo a cantar. Desde que me dissessem que não o podia fazer, eu tinha de o fazer. Arriscava-me a outros castigos, mas tinha de mostrar a ele que não aceitava. Passava o dia a cantar A Internacional porque era a única coisa que sabia.

Passando para o 25 de Abril de 1974. O Domingos e a Conceição estavam em Paris e voltaram no avião com o Álvaro Cunhal. Como é que viveram esse momento, com apreensão ou confiança na mudança?

A primeira reação, quando começámos a ver aquela Junta de Salvação Nacional, os cabelos ficaram em pé, sobretudo para quem está longe. O Spínola, que era um nazi, o Silvério Marques, o Rosa Coutinho, de quem sabíamos pouco... aquelas múmias assustavam, tinham um passado fascista. Falava-se de um golpe de direita, até as coisas ficarem claras havia contradições... Os presos continuavam presos, só saíram a 27 [de abril]. O Spínola nomeou um diretor da PIDE. O 25 de Abril esteve para ser liquidado no próprio 25 de Abril. Os militares caíram na asneira de dar o poder à Junta.

Em que altura é que o Jorge Sampaio foi seu advogado?

Em 1967 ou 1968. Foi ver-me duas vezes a Peniche. A polícia não me levou a julgamento, recebi a sentença pelo correio, em Peniche. Não fui a tribunal. Deram tudo como provado. E pôs-se o problema: os processos eram feitos pela PIDE, teoricamente ia a tribunal, voltava a ser entregue à PIDE, que ficava a acompanhar a prisão. O Jorge Sampaio foi abordado para fazer o acompanhamento do meu processo. Felizmente não foi preciso, porque em 1972 o Marcello Caetano acabou com as medidas de segurança e fiquei a saber que saía no dia 23 de Março [de 1973].

Como é que encarou os julgamentos dos pides?

Acho que é a grande pecha do 25 de Abril, e há responsáveis por isso, sobretudo no Partido Socialista. Criou-se a ideia de reconciliação. Começou logo mal por isto. Foi um compromisso com os spinolistas com certeza absoluta. O Spínola pensava manter a PIDE, nomeou um diretor da PIDE. Até houve uma coisa anedótica. Quando a equipa de militares foi a Caxias por causa da libertação dos presos, que levava indicação do Spínola para não libertar ninguém, chamaram um inspetor da PIDE, do reduto sul, para os aconselhar sobre quem podia ser ou não libertado.

No Porto, os pides foram presos, meteram-nos em camionetas, entre eles ia o Rosa Casaco [chefiou a brigada que assassinou o general Humberto Delgado a 13 de fevereiro de 1965], e, quando chegaram a Vila do Conde, pararam as camionetas e os militares disseram: 'agora fujam'. Os pides nem queriam acreditar. E está provado que a prisão dos pides foi para impedir linchamentos.

E no julgamento nenhum dos criminosos foi condenado. Eu, a Conceição e vários camaradas movemos processos a pides. No meu caso, só lá fui uma vez, porque dizia 'este senhor bateu-me' e tal, e o juiz dizia 'não pode ser'. Um juiz do antigamente, claro. O Tinoco [um dos elementos da PIDE mais implacáveis nas sessões de tortura] sentiu-se todo animado! Vim-me embora e nunca mais lá fui.

É uma lacuna.

É grave. Alguns deles foram reintegrados e até condecorados pelo Cavaco [Silva]. No entanto, no tempo do Cavaco, foram rejeitadas pensões a resistentes. A revolução de Abril cometeu várias pechas. Às vezes a brincar digo que o maior milagre de Fátima é que os fascistas de um dia para o outro passaram a ser democratas. Chegaram a ministros, a altas figuras de Estado, fascistas.

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Domingos Abrantes
O histórico dirigente comunista critica a falta de operários na composição da Assembleia da República | Foto de Rafael Medeiros

O Domingos foi deputado de 1976 a 1991. Como é que foi essa experiência? Como é que lidou com essa corte da Assembleia?

Como já lhe disse, no início, eram todos democratas. Todos queriam o socialismo. Repare que no CDS todos votaram socialismo. Com a evolução do tempo começaram a acentuar-se um bocado os reacionários. A própria composição social. Tirando nós [PCP], os operários desapareceram todos. Passámos à Assembleia dos advogados, dos economistas, foi-se alterando a composição, e até a falta de respeito pelas promessas.

Foram muitos anos.

Para ser franco, não tenho talento para deputado. Costumo dizer que os bons deputados são os que não querem ser deputados. Aqueles que gostam mesmo de ser, temos de desconfiar um bocadinho. Nós [PCP] temos a felicidade de ter poucos casos, mesmo assim temos alguns, porque temos regras. Desde logo a regra de que não é beneficiado nem prejudicado, que é uma regra que só nós temos. Quem vai para ali não recebe.

Não vi durante anos nem um centavo do meu ordenado como deputado, foi sempre para a conta do partido. Continuei sempre a receber o meu salário [do partido]. Hoje, tenho uma pensão vitalícia [como deputado], e nunca recebi desse dinheiro. Todos os meses esse dinheiro entra na caixa do partido.

Continuo a ser funcionário do partido, e espero morrer assim. A questão do dinheiro às vezes está aí. Faz jeito, e nalguns faz jeito, houve camaradas que ficaram com a pensão vitalícia. Mas nós fomos contra, fomos o único partido que votámos contra.

Lembra-se da primeira vez que votou em democracia?

Na altura era uma grande esperança. Era uma festa!

"Os bons deputados são os que não querem ser deputados. Aqueles que gostam mesmo de ser, temos de desconfiar um bocadinho."

Quando é que foi ver o seu processo à Torre do Tombo?

Fui logo... Há um processo que ainda não encontrei. Aquilo tem dois processos, os da polícia e os que iam para o tribunal. São iguais nas perguntas e nas respostas, mas os processos nos tribunais têm normalmente documentação. A minha carta de condução foi encontrada em Setúbal, por exemplo. Sabia o que tinha dito, o que me interessava era ver o que outros tinham dito.  

Vê com preocupação esta ascensão de um novo fascismo que vivemos hoje em dia? E este discurso de ódio que está a ser legitimado...

Disse fascismo e disse bem, porque não acho que se deva usar [o termo] populismo. Isso é daquelas coisas para confundir as pessoas. Um fulano que promete passes sociais grátis e acabar com os parquímetros é populismo, mas não é necessariamente fascista. Os atos eleitorais muitas vezes são populismo ao quadrado.

Os fascistas também fazem promessas que não cumprem. O Hitler teve 14 milhões de votos, o Bolsonaro teve 55 milhões. Iam acabar com a miséria, com o capitalismo, mas nunca disseram que iam matar pessoas e acabar-lhes com a liberdade. Essa é a diferença. Se não forem tomadas medidas, isto vai repetir-se de formas diferentes. O fascismo hibernou. Não é uma coisa de conjuntura, o fascismo está sempre atento.

Quando a burguesia não consegue governar pelos meios clássicos, quando a democracia se torna um obstáculo, e quando há milhões de pessoas na miséria, sem horizonte, cria-se uma massa pronta a acreditar em soluções de fé. O Salazar ia dar uma casa a cada português? Ia contar que ia pôr pessoas na cadeia? Não.

Os fascistas não chegam ao poder sozinhos. Nós hoje estamos numa União Europeia em que grande parte daqueles países são governados por fascistas. Pode-se chamar união democrática onde há políticas anti-democráticas? O Mediterrâneo é uma vala comum, isto é uma coisa aceitável? É democrático as pessoas irem aos caixotes do lixo para comer? Os que dormem na rua, podemos dizer que isso é democracia? Não é possível.