Jornalista, escreve sobre cultura na Hedflow e Sapo Mag. Atua como correspondente no Opera Mundi, DCM e Jacobin Brasil.

Sou brasileira e todos os dias vivo a xenofobia em Portugal

“Onde já se viu uma brasileira ousar dizer que não existe liberdade no país do 25 de Abril?!”. Poderia escrever um livro narrando histórias de agressões contra brasileiros e brasileiras. É preciso reafirmar que o pensamento colonial está na estrutura da sociedade portuguesa.

Ensaio
16 Novembro 2023

Um colega jornalista me perguntou se ainda valia a pena viver em Portugal. Fiquei um dia refletindo antes de lhe enviar uma resposta. Realmente, a vida não está fácil para nós, trabalhadores. Parafraseando o compositor brasileiro Belchior: sou apenas uma garota latino-americana, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vinda do Brasil, um país colonizado.

Confesso que, quando recebi o convite para escrever no Setenta e Quatro, pensei em perguntar se teria algum problema redigir este artigo em Português do Brasil. É… Foi isso mesmo, quase que automaticamente.

O português, língua que nos foi imposta há mais de cinco séculos, possui variações de fala, pronúncia e escrita. E isso não é uma exclusividade somente entre a comunidade brasileira, mas algo que está arraigado em todos os outros povos colonizados por Portugal, incluindo os nossos irmãos africanos. Entretanto, boa parte dos veículos de comunicação ainda se mostram irredutíveis no sentido de aceitarem uma variação idiomática.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Mesmo tendo sido chamada para discorrer sobre a xenofobia contra brasileiros em Portugal, essa foi a primeira coisa que me passou pela cabeça, mesmo que apenas por alguns segundos. Porque é sob pressão constante que uma jornalista de nome Stefani - e não Estefânia - sobrevive por aqui. Pressão essa que vem das profundezas de um oceano manchado pelo sangue derramado das caravelas.

Provavelmente, se eu afirmasse isso nos tempos em que cheguei a Portugal, muitos daqui pensariam “mas o que eu tenho a ver com isso?!”. Hoje, no entanto, há uma parcela considerável de portugueses que não só pensam isso, como também falam e colocam o seu descontentamento em plena ação. Afinal, a prática é o critério da verdade.

É preciso, entretanto, reafirmar com firmeza que o pensamento colonial está na estrutura da sociedade portuguesa. Estrutura essa que não se constrange em destacar nos livros didáticos que “na África negra viviam povos muito atrasados” ou que, “no Brasil, os ameríndios [índios] eram pacíficos e de convivência fácil, desde que respeitassem a sua maneira de viver”. 

Hoje somos aproximadamente 8% da população em Portugal, país que também nos pertence, pois é impossível pagar uma dívida formada por séculos de exploração e escravidão.

No mês de setembro, estive em um festival de música a trabalho. Fui gravar uma entrevista com o Black Pantera, um trio crossover/thrash formado por três jovens negros da cidade de Uberaba, interior de Minas Gerais. Enquanto conversávamos sobre racismo e xenofobia em Portugal, uma criança brasileira era agredida por um homem branco nas dependências do evento. 

Marc Van Eyck, produtor musical belga, acusou de roubo a filha de um palestrante convidado pela organização. Ele correu atrás da garotinha e a segurou pelos braços com força. A polícia, quando acionada, registrou a queixa da mãe que estava aos prantos, mas se negou a deter o agressor com a justificativa de que não havia flagrante. Além disso, as forças de segurança prestaram escolta ao cidadão belga enquanto a família da vítima não recebeu nenhum suporte. Em entrevista, a mãe revelou que a menina a questionou sobre o que fazer quando um próximo homem branco correr atrás dela novamente.

No último dia 6 de novembro, uma mulher brasileira de 35 anos sofreu um ataque xenófobo no aeroporto do Porto enquanto regressava para Barcelona, cidade onde trabalha e reside. Além de insultá-la e xingá-la de “porca”, a agressora dizia aos berros ser “portuguesa de raça”, afirmação que caberia muito bem em discursos de líderes colonialistas e supremacistas, como Adolf Hitler ou Benjamin Netanyahu. A vítima também ouviu o famoso “volta para a sua terra” seguido por “estão invadindo Portugal, essa raça de filhos da puta”. Assustada, a brasileira me contou em entrevista que nunca tinha visto tanta raiva e ódio saindo de uma pessoa: “Ela só se acalmou porque eu comecei a filmar”.

Infelizmente esse não é o primeiro e muito menos será o último caso de violência motivada por preconceito étnico e racial. Poderia escrever um livro com diversos capítulos narrando histórias de agressões físicas e psicológicas contra brasileiros e brasileiras. Sendo que esses são casos que vão desde exploração laboral, passando por espancamento seguido de afogamento, assassinato e até mesmo tortura em esquadra da PSP.

Pois é, já disse que a vida para nós aqui não tem sido nada fácil…

Se olharmos para os últimos quatro anos, poderemos notar o descaso do governo de Jair Bolsonaro. Esse que só degradou ainda mais a situação de cidadãos brasileiros no exterior em meio a numerosos problemas que se somaram vertiginosamente nesse percurso entre o golpe e a tomada do poder pelo fascismo. Sem contar a ajuda e o financiamento por parte de uma elite econômica forjada nas capitanias hereditárias.

Como em Portugal o socialismo é só de fachada (vide PS), a extrema-direita local soube bem como navegar por essa onda vinda do outro lado do Atlântico. É verdade que parte dos imigrantes não votam, porém fazem barulho e muita fumaça.

Brasileira terrorista

Em abril deste ano estive presente em uma manifestação pelo direito à habitação, tema que tenho descrito com frequência e ao qual me tornei também uma espécie de alvo. A gentrificação e a turistificação provocadas pela especulação imobiliária fizeram-me refém das minhas próprias pautas.

Obviamente sei que isso não é um fato isolado ou uma infeliz exclusividade. São centenas de pessoas dividindo quartos ou vivendo em tendas espalhadas pelas ruas das cidades. É notório que o custo de vida e a precariedade são adversidades que atingem uma enorme parte da população em Portugal. E sim, os imigrantes, claro, estão nesse contingente. 

Ter agido com absoluta indignação diante da violência policial que tomou conta daquele ato no Martim Moniz, em Lisboa, não foi, estrategicamente, uma boa ideia. A primeira reação como imigrante oprimida, exigindo um direito constitucional, transformou-se em “terrorismo”. Sim! Ou vocês acham que só “é terrorista quem usa burca”? “Onde já se viu, uma brasileira, imigrante, trajada com camiseta do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), exigindo casa para morar?! Quem é que lhe concedeu permissão para se revoltar contra a truculência da polícia em cima de duas jovens também indignadas com a falta de perspectiva futura?!”

É sob pressão que uma jornalista de nome Stefani - e não Estefânia - sobrevive por aqui. Pressão que vem das profundezas de um oceano manchado pelo sangue derramado das caravelas.

A realidade tem dessas coisas. Principalmente para nós, nascidos, criados e ideologicamente moldados no Sul global (mais conhecido como a periferia do capitalismo). Até porque a ideia de periferia também tem que ver com xenofobia e racismo. Manter os “atrasados” distante dos “civilizados” é uma formatação social que se mantém. O tal “dividir para reinar” continua em voga.

Agora, antes de voltar à pergunta que deu início ao texto, preciso falar sobre outro tema que também navega por esse ‘mar de preconceitos e discriminação’: o feminismo.

Digo isso porque sou marxista e estou convencida que jamais existirá uma verdadeira emancipação das mulheres se anularmos a luta de classes e as questões econômicas dessa trincheira. Afinal, do que adianta ser mulher branca vinda do Brasil com diploma e não ter dinheiro no banco ou alguns ‘ilustres’ parentes portugueses sequer? Como é possível uma “gaja” como essa escrever diariamente sobre o quanto Portugal é um Estado racista, colonial e com uma Justiça que acolhe neonazistas? “Onde já se viu uma brasileira ousar dizer que não existe liberdade no país do 25 de Abril?! Cadê a sua carteira de jornalista?! Sabia que usurpação de funções é crime?!”

Bom, se você chegou até aqui, deve estar igual ao meu colega, se perguntando o porquê dessa pessoa continuar falando tão mal de Portugal “em brasileiro” e permanecer vivendo neste país. Como se uma jovem trabalhadora pudesse realmente escolher o seu lugar no mundo… Principalmente quando ele é dominado por aqueles que sabem que, para a grande maioria, tudo não passa de uma corrida constante por sobrevivência, como se fôssemos ratos de laboratório girando as suas rodinhas. Uma sobrevivência que muitas vezes é alimentada pela ilusão de que, para vencer na vida, basta querer. E não basta. 

Pessimismo da razão, otimismo da vontade

Apesar de todas as dificuldades que enfrentei, enfrento e enfrentarei como brasileira em Portugal, sei que existem outros imigrantes, em sua maioria mulheres, encarando situações muito mais extremas, expostas a um sofrimento inacreditável, bem maior do que o meu. Só que isso não me impede de ter empatia e de me juntar a essas pessoas na linha de frente contra o racismo, a xenofobia, a misoginia e quaisquer outros tipos de discriminação e opressão. Se existem coisas que o capitalismo tenta implodir diariamente são as relações de solidariedade. 

Existem muitos portugueses dispostos a nos ouvirem e outros tantos determinados a lutarem do nosso lado. Gente que não faz uso do termo “país irmão” como se fosse “uma camisa nova, uma carapuça vermelha e um rosário de contas brancas”. 

Em Portugal o socialismo é só de fachada, a extrema-direita local soube bem como navegar por essa onda vinda do outro lado do Atlântico.

No início do ano, quando questionei o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a respeito do crescimento da xenofobia contra a comunidade brasileira em Portugal, a resposta foi de que a relação entre os dois Estados é “muito boa” e que há uma “cumplicidade fraternal excelente”. Esse mesmo líder que em 2022, nas comemorações do Bicentenário de Independência, viajou para o Brasil e pediu que o país continuasse a ser uma pátria de liberdade, democracia, justiça e esperança. Mas vale salientar que o fez ao lado de um golpista genocida.

Hoje somos aproximadamente 8% da população em Portugal, país que também nos pertence, pois é impossível pagar uma dívida formada por séculos de exploração e escravidão. Resta apenas a reparação. E, para reparar, é preciso reconhecer. Reconhecer que, de 2017 a 2021, as queixas registradas por xenofobia contra brasileiros aumentaram 505%, segundo a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR). Que só em 2022, a comunidade brasileira em Portugal foi a que mais contribuiu com a Segurança Social, que arrecadou mais de um bilhão de euros de imigrantes, diz o Ministério do Trabalho. 

Certamente, sei reconhecer tudo de positivo que essa experiência de vida nas terras de Cabral me proporcionou. Principalmente se tratando da consciência de classe adquirida com a convivência entre amigos e camaradas portugueses que me ajudam muito nesse processo. Sou grata.

Se ainda vale a pena viver em Portugal? Sim, vale. Até porque para nós, trabalhadores imigrantes, nem sempre existe uma escolha.