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Queres ser o Novo Homem neoliberal? Estuda literacia financeira

As políticas neoliberais são um desastre para a maioria da população, restando aos seus ideólogos responsabilizar os consumidores pela falta de conhecimentos num mercado desregulado em que cada vez maiores empresas tudo podem e mandam. A literacia financeira é uma das ferramentas e o resultado desejado é o Novo Homem do neoliberalismo. 

Ensaio
25 Maio 2023

A literacia financeira é a nova palavra-chave do léxico neoliberal. O termo pode parecer  inofensivo, mas o mesmo não se pode dizer das forças políticas neoliberais que o têm popularizado. Usam-no no discurso em que responsabilizam o consumidor pela falta de conhecimentos num mercado desregulado e com cada vez maiores empresas que tudo podem e mandam.

Com uma procura rápida num motor de busca, a literacia financeira pode ser definida como a “capacidade para tomar diariamente decisões financeiras mais informadas, conscientes e responsáveis, e saber gerir bem o dinheiro, quer seja nas finanças pessoais, no orçamento familiar ou nas contas de uma empresa”. Ou seja, cuidar bem da carteira, com uma componente de boa gestão de orçamento familiar e outra de investimentos pessoais. Enfatizar a importância da formação em literacia financeira (nos mais jovens e não só) tem vindo a ganhar espaço no discurso público.

Como qualquer projeto neoliberal nos últimos anos, a Iniciativa Liberal e o seu think tank ‘independente e apartidário' são a ponta de lança na propagação do conceito: nos dez pontos da sua missão, a literacia financeira ocupa o segundo lugar, bem antes de falar em concorrência e igualdade.

No entanto, a popularidade do termo vai bem além das cavernas mais profundas do credo neoliberal, chegando ao antigo ministro das Finanças do Partido Socialista, Mário Centeno, e ao atual ministro da Economia, António Costa e Silva. A massificação do ensino em literacia financeira tem vindo a ganhar espaço no discurso público.

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Afinal, para que serve a literacia financeira?

Os dados sobre a baixa literacia financeira em Portugal são claros: estamos no fundo da tabela entre os 19 países da Zona Euro. Quando se tratam de temas como diversificar o risco de portefólios ou saber calcular juros compostos, Portugal sai-se miseravelmente: apenas cerca de 25% podem ser considerados literatos financeiramente, comparando com quase 50% dos espanhóis e quase 70% dos alemães.

No entanto, geralmente, os resultados sobre a falta de literacia, que fazem grandes manchetes na comunicação social e nos discursos políticos, apontam para conhecimentos técnicos. Se quisermos ver a literacia financeira como uma questão de política pública, quais são os seus méritos  em ser elevada entre a população? No que se traduz o conhecimento em Produtos Estruturados, Forex e interpretação das próximas políticas dos Bancos centrais para o não profissional em mercados financeiros?

No Relatório do 3.º Inquérito à Literacia Financeira da População Portuguesa, em linha com os outros resultados, os portugueses têm um fraco desempenho em termos de conhecimentos financeiros quando comparados com outros países. Não obstante, este inquérito conta também com indicadores de atitudes financeiras e comportamentos financeiros. Nestes, Portugal apresenta resultados acima da média e “destaca-se o resultado muito positivo obtido por Portugal na questão que avalia a forma como o entrevistado resolveu um problema pontual de rendimento insuficiente”. Ou seja, apesar de poderem não conhecer produtos financeiros sofisticados, os portugueses sabem usar bem o seu dinheiro, quer seja a alugar casas de férias ou a vender terrenos para eucaliptais. 

Assim, apesar de não poder ser considerado mau ter conhecimentos financeiros só por si, é desajustado tentar encaixar a sua falta destes por não profissionais financeiros numa narrativa de falhanço de políticas públicas e atraso do país.

Se olharmos para estudos a nível internacional que relacionam a literacia financeira com boas decisões financeiras, confirma-se que não podemos olhar para este conceito  como política pública para o desenvolvimento. Num estudo (aqui), é demonstrado que indivíduos com literacia financeira mais elevada são mais prováveis de serem vítimas de investimentos fraudulentos. Noutro estudo (aqui), altos níveis de literacia financeira correspondem a decisões financeiras irresponsáveis, apesar de também indicarem melhor planeamento de planos de reforma. Noutros resultados menos críticos do papel da literacia financeira (aqui e aqui) é argumentado que os efeitos da sua educação diferem entre camadas sociais e descartam um papel abrangente desta como política para a educação de massas.

Em suma, olhando para os resultados de literacia financeira em Portugal e para a literatura que a estuda a nível global, o recente ênfase dado à importância desta é desproporcional. Assim, para podermos melhor entender o fenómeno da popularização deste conceito, devemos olhar além do seu significado e efeito sobre decisões financeiras. 

Literacia para Privatizar

Podemos encontrar várias publicações da Iniciativa Liberal (IL) com o título de cursos, em que, depois de introduções com uma mensagem de teor político, é de facto ensinada literacia financeira, explicando conceitos como taxas de câmbio, a definição do dinheiro e alguma ortodoxia económica básica.

Poderíamos dizer que seria apenas o caso da IL aproveitar aulas de um tema com interesse geral para, “nos intervalos”, fazer publicidade da sua mensagem política. No entanto, o próprio conteúdo da Literacia Financeira cumpre um papel no discurso neoliberal: ao intercalar o conceito da Literacia Financeira com as propostas políticas, estas tornam-se mais consistentes.

Podemos começar por olhar para as agendas da direita em Portugal, como a proposta do programa eleitoral de 2022 da IL para a “dinamização dos Mercados de Capitais”, que conta com pontos como “criar um quadro legislativo e fiscal para incentivar o acesso [...] aos mercados de capitais” e “rever estruturas de voto e modelos governativos previstos nos códigos de sociedades”. E, pelo meio, lá surge a proposta de “fomentar a literacia financeira”.

Não tão inocente, surge o ponto de “dispersar em bolsa parte ou totalidade do capital de empresas detidas pelo Estado”, ou seja, encerrar de uma vez por todas a participação do Estado na economia, privatizando a CP e restantes empresas de transportes em Portugal, a Caixa Geral de Depósitos (proposta com que Rui Rio e João Cotrim Figueiredo chegaram a concordar), alienar a participação que resta do Estado na Galp, entre outras.

Além das privatizações, a literacia surge no vocabulário da opinião da antiga candidata à liderança da IL,  Carla Castro (curiosamente publicada no dia do trabalhador). Num artigo sobre a “reforma da segurança social”, recicla a proposta da era PAF (coligação PSD+CDS que aplicou o programa de ajustamento da Troika, 2011-2015) de colocar um teto às contribuições obrigatórias para a segurança social, deixando o restante para a “capitalização”. Ou, por outras palavras, deixar um sistema público do qual os mais pobres dependam, enquanto os mais ricos ficam “livres” para investir por conta própria – varrendo a noção de justiça distributiva e de progressividade. Pelo caminho, abre-se espaço para o negócio de fundos de pensões e de gestão de ativos financeiros.

Apesar das suas várias reformulações, e por muito que os seus promotores o neguem, as propostas de recapitalização da Segurança Social assentes numa componente de privatização são um passo intermédio para a privatização do sistema de pensões. Tal como as rondas de privatizações dos anos 1990 o foram para o Estado abandonar quase todos os setores estratégicos, também a abertura das pensões aos capitais privados é um passo para um Estado social raquítico à semelhança dos Estados Unidos. 

O Novo Homem do Neoliberalismo

A promoção da literacia financeira é uma ressurreição do capitalismo popular: com o falhanço do cidadão acionista, ela torná-lo-á no gestor de ativos que o neoliberalismo sempre imaginou que poderia ser. Ao enfatizar uma massificação da literacia financeira, a expectativa passa por um alastrar de conhecimentos que geralmente são reservados a profissionais financeiros. Financeiramente literado, o “Homem Novo” neoliberal utilizará os conhecimentos em obrigações, em juros compostos, ETF e produtos de crédito para levar os retornos do seu portefólio a bom porto e garantir a sustentabilidade da sua pensão privatizada. Tudo isto enquanto se tornará um acionista minoritário de grandes empresas.

Os ativos financeiros não chegaram às mãos da população, mas desta vez a população chegará aos ativos financeiros e, para isso, usarão a literacia financeira. O recuar do Estado de ainda mais esferas deixa de ser a mera continuação dos processos desastrosos de privatização; o homem novo munido de literacia financeira não permitirá que tais desastres se repitam.

As ideias basilares do Novo Homem do neoliberalismo vão bem além da mera literacia financeira. Para a garantia do sucesso das políticas, o depositar da responsabilidade de bem escolher sobre o indivíduo consumidor é omnipresente. Por exemplo, Sofia Vala Rocha, eleita à Assembleia Municipal de Lisboa pelo PSD, escolheu passar vergonha pública numa série de recomendações sobre como encontrar casas no atual contexto dos preços imobiliários.

Quando o tema é o combate às alterações climáticas, o discurso (à direita e não só) tende a recair sobre os “contributos individuais”, as “escolhas amigas do ambiente” e a "pegada ecológica”, ignorando o papel das políticas públicas. Ou seja, a ênfase na literacia financeira faz parte de uma longa corrente de despolitização dos temas, individualizando-os. Tendo os mercados à mercê das multinacionais, as suas sucessivas deficiências são ilibadas com a falta de capacidade (literacia) dos consumidores.

Se ao menos os consumidores fossem mais literatos financeiramente, capazes de encontrar pechinchas imobiliárias, especialistas em empreitadas de restauração de prédios devolutos, sabedores de como melhor explorar os tarifários de telemóvel no espaço comum europeu e dotados do conhecimento de todos os impactos ambientais dos seus consumos, então as políticas das últimas décadas de recuo do papel do Estado na economia passariam a ser funcionais.

Perante o insucesso das políticas neoliberais, resta o discurso de se responsabilizar os consumidores pela sua falta de capacidades, compensando-a com a sua capacitação, com a formação em literacia financeira que promove os dogmas que nos trouxeram até aqui e que estiveram na base do falhanço dessas mesmas políticas.

Para as novas ondas de liberalização funcionarem, das próximas vezes apenas é necessário os cidadãos deixarem de ser burros, e deixarem de ser burros implica não só saberem investir, mas também votar.

Se és literado, porque não votas em mim?

Um outro uso da literacia financeira é como justificação para a falha de acolhimento das propostas políticas. Na formação referida acima, Rui Rocha, presidente da Iniciativa Liberal, começa por dizer “que há muito a fazer em termos da Literacia Financeira em Portugal”. E cita três exemplos que reforçam a importância da literacia financeira em Portugal: falhas jornalísticas ao interpretar os números da inflação em Portugal, os truques de marketing do governo sobre as contribuições extraordinárias de pensões e as afirmações ambíguas de António Costas sobre aumentos de salários. Nas duas últimas, enfatizou, “a perceção de baixa literacia financeira por parte do governo” permite-lhe dar-se ao luxo de tentar fazer esses números de malabarismo.

Enquanto várias forças políticas partilham críticas a estas e outras políticas do governo, a IL distingue-se por atribuir a António Costa o aproveitamento da “baixa literacia da população” para tentar levar a sua agenda para a frente. Outros na IL vão ainda mais longe e apontam ao governo do Partido Socialista a manutenção da população portuguesa na escuridão da iliteracia financeira. 

Ou, nas palavras do Estudante de Gestão Militante da IL #2681, “um tema determinante como este deveria merecer uma reflexão: o sistema educativo português tem falhado na passagem de conteúdos financeiros”, “mesmo sem o dizer, o governo português tem, no curto prazo, interesse na manutenção da situação: ajuda a ganhar votos”. Ou seja, numa narrativa provavelmente inspirada no ditador que mantém a população analfabeta para a melhor controlar, o PS mantém a população financeiramente ignorante para melhor a controlar.

Também o Mais Liberdade, quando refere a literacia financeira na sua missão, enfatiza que “só assim as pessoas serão capazes de analisar criticamente as opções de política pública”. Enquanto outros talvez apontem para uma comunicação social mais focada em casos do que em políticas de fundo, uma população resignada perante a impossibilidade de contrariar políticas ou a inevitabilidade de “reformas necessárias”, a IL escolhe focar-se numa incapacidade dos cidadãos em compreenderem o que as políticas significam para a sua vida. Face às imensas parecenças com o tom usado no início do século a partir do pseudocientífico Quociente de Inteligência (QI) para descredibilizar camadas sociais inteiras, se formos menos simpáticos com os termos, os eleitores serão burros.

Assim, pôr a literacia num pedestal não é apenas consistente com as propostas da IL. É consistente com a composição e o caráter elitista do partido - o partido dos literatos em oposição às massas ignorantes -  e com a sua visão do mundo: uma força política que procura explicar a rejeição a partir da ignorância, evitando confrontar-se com o facto de as suas propostas serem puramente nocivas para a grande maioria da população. 

A IL é usada como exemplo atual deste discurso, mas  já antes do partido existir e da literacia financeira estar na moda, os maiores proponentes do neoliberalismo já se apropriavam de uma aura de autoridade pseudo-intelectual – não fossem grande parte destes professores em faculdades de Economia. O exemplo-mor da altivez neoliberal talvez tenha sido protagonizado por António Borges, na altura consultor da PAF, que perante à recusa de alguns empresários na proposta de aumentar a taxação do trabalho e reduzir a do capital (descida da TSU), foram chamados de ignorantes e aconselhados a estudar.

“Que a medida é extremamente inteligente, acho que é. Que os empresários que se apresentaram contra a medida são completamente ignorantes, não passariam do primeiro ano do meu curso na faculdade, isso não tenham dúvidas”
– António Borges em 2012, A Direita Neoliberal e o Legado da Educação

O último século foi marcado por campanhas massivas de literacia por forças políticas que em nada se assemelhavam aos neoliberais de hoje. Com os Bolcheviques no poder, a iliteracia do Império Russo foi varrida; o regime Cubano que saiu da Revolução de 1959 lançou uma campanha de oito meses para a erradicar a iliteracia; e, no seguimento do 25 de Abril de 1974 em Portugal, o país entrou num novo paradigma educativo que permitiu uma tendência de convergência com o resto da Europa.

O neoliberalismo ascendeu com um desfigurar de conceitos de liberdade anteriormente dominados pela Esquerda. Impedir agora que o seu legado pelo progresso através da educação seja corrompido e apropriado pela Direita passa por reconhecer o que a literacia financeira representa: um conjunto de conceitos que servem melhor a profissões financeiras do que à população em geral e um mecanismo para articular discursos neoliberais.

Ensaio adaptado de um outro originalmente publicado na newsletter República dos Pijamas.