Advogado e ativista pelo direito à habitação na Chão das Lutas.

Quatro mitos sobre a crise da habitação

A crise da habitação tem empurrado milhares de pessoas para o desespero. Os poderes mais profundos com ligação direta aos corredores do poder influenciam-no descaradamente e o espaço público tem sido minado com narrativas que protegem a especulação. Que as ruas se encham e que saibam que terão de responder a uma massa de gente que quer ter uma casa que possa pagar com o seu salário.

Ensaio
28 Setembro 2023

A crise existe, sente-se, é vivida. Como dizia Capicua, “deixou de ser um problema, passou a ser um desespero”. Quase toda a gente tem problemas em ter uma casa que possa pagar – ou conhece alguém nesta situação -, com dimensão adequada à sua vida e que possa ser o espaço que lhe permita olhar para o futuro com segurança. Que a crise existe não é, portanto, um dos mitos que irei desconstruir. 

É precisamente o oposto: ela é tão real, tão violenta, que mesmo que tentemos elencar os cenários mais duros, ficaremos sempre aquém desta realidade que nos aparece como distopia. Carros, tendas, garagens, quartos sobrelotados, camas em regime de cama-quente, tudo tem servido para ser casa menos as casas. Essas, as casas, tornaram-se hotéis ou ativos, servindo uma economia que nada cria mas que a todos explora.

Neste desespero, surgem as propostas. Várias. Movem-se os poderes mais profundos com ligação direta aos corredores do poder institucional e que o influenciam descaradamente. E surgem também as narrativas. Toda a proposta que queira manter o privilégio precisa de criar um contexto e de o repetir. Não faltam porta-vozes disponíveis a prestar-se a este serviço. À exceção da grande mobilização do dia 1 de abril — que, tudo indica, se reforçará a 30 de setembro —, o espaço público tem vindo a ser minado com propostas e narrativas que visam proteger a especulação. O que vos proponho é que desmontemos alguns destes mitos.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

1.º Mito – “Resolve-se o problema da habitação construindo mais. É a lei da oferta e da procura”

Esta é a narrativa liberal. “Soltem os guindastes, acabem com os licenciamentos de construção.” Sendo o argumento liberal, é também o argumento do governo do PS que, em matéria de habitação, apenas diverge dos liberais no grau de isenções fiscais que estão dispostos a dar. A lógica do argumento parece bastante simples e intuitiva, daí a sua aparente eficácia. Tem um problema: é errada.

Em primeiro lugar, como o geógrafo britânico Danny Dorling defende, não é oferta e procura porque as pessoas não têm opção sobre precisarem de uma casa. Em segundo, e como o geógrafo Nuno Serra já explicou, Portugal tem construído menos do que épocas anteriores, mas tem construído. Já a população tem diminuído. Por isso, há mais oferta do que famílias (procura), então qual o motivo de os preços não terem baixado? É um argumento tão enganador que invoca a lei da oferta e da procura mas só fala da oferta.

Por isso, é preciso ser claro. Portugal tem um problema de falta de habitação pública (o vergonhoso número de 2% de casas públicas). Construir – mas primeiro, reabilitar – pode fazer sentido se forem casas públicas. Quem defende este argumento quer, por norma, defender a construção que existe hoje: de luxo e para segmentos de ultra-luxo.

Construir implica sempre as seguintes perguntas: quem constrói? Onde? E para quem?

2.º Mito – “Controlar as rendas é matar as cidades”

Controlar as rendas é a medida capaz de tirar do sério o mais sisudo dos especuladores. O economista liberal Assar Lindbeck dizia mesmo que a melhor maneira de acabar com uma cidade é através do controlo de rendas; a segunda melhor forma seria bombardeá-la. Ponderação e racionalidade não abundam neste debate, como se vê.

Temos sentido o mal que nos faz o mercado livre de habitação, em que os preços são os que conhecemos e que nos empurram para o abismo. Controlar os preços das rendas seria, por isso, uma medida de bom senso porque protege os inquilinos de aumentos excessivos e garante preços mais justos. Se não houve obras numa casa, se não houve melhoramentos, por que motivo pode a renda de uma casa ter um aumento de 400 euros apenas porque o contrato chegou ao fim? A única justificação é a especulação.

O mito sobre esta medida tem várias formas, mas há uma que se destaca: se controlarmos as rendas, as casas saem do mercado, garantem-nos. Onde é que já ouvimos isto? É que já nas leis laborais nos garantiam que o aumento do salário mínimo diminuiria o emprego. É a economia como seita, ao serviço da especulação e dos baixos salários.

Ora, este argumento é, como as pessoas que o defendem de forma tremendista, ilógico e errado. É pressupor que qualquer pessoa só está disponível a arrendar uma casa se tiver um mercado que lhe permita cobrar tudo aquilo que entender. Que qualquer limitação que exista é suficiente para que essa pessoa prefira ganhar zero a ganhar um valor regulado. 

Não há medidas mágicas e o controlo de rendas deve ser combinado com outras medidas. Mas esta é uma medida justa, equilibrada, que protege os contratos de arrendamento, evita despejos e garante bairros mais heterogéneos.

Sobre este ponto, deixo uma última nota: quando Fernando Medina apresentou o programa  de renda segura na Câmara de Lisboa, disse que se este programa não funcionasse teríamos que condicionar o preço das rendas. O programa falhou e por duas vezes, uma vez que o antigo presidente de Câmara levou para o governo nacional aquilo que não resultou em Lisboa. Assim sendo, quando irá o governo regular o preço das rendas?

3.º Mito: “as pessoas estão a pagar pelas suas escolhas individuais”.

Aqui, surge o argumento que culpabiliza as pessoas por uma escolha estrutural, uma nova versão do “vivemos acima das nossas possibilidades”. Fá-lo em dois campos: no do crédito à habitação, que considera que a taxa variável foi uma escolha livre, e no do arrendamento, que diz que o contrato de arrendamento foi algo livremente celebrado por duas partes iguais. Analisemos os dois.

Recentemente, com os juros historicamente baixos e com as rendas a explodir, as pessoas foram — novamente — empurradas para a compra de casa como forma de resolução do seu problema de acesso a uma habitação. Confrontadas com um crédito hipotecário que seria muito mais baixo do que o arrendamento e muito mais baixo do que um crédito com taxa fixa, esta não foi uma escolha livre. Tão pouco foi uma escolha de quem não tem literacia financeira, como nos querem vender. 

Foi a decisão possível de milhares de pessoas que estavam entre a espada e a parede e que escolheram a solução que menos penalizava o seu rendimento. Pelo meio, os bancos iam violando as orientações do Banco de Portugal e concediam créditos pessoais a que quem não tivesse dinheiro para a necessária entrada inicial (já que os bancos deixaram de poder financiar 100%) pudesse comprar casa. Muitas pessoas ficaram, assim, com dois créditos: um de habitação com juros mais baixos — que agora aumentaram — e outro pessoal, com juros já elevados. 

Esta decisão ilegal dos bancos não motivou nenhuma reação por parte do governo. A banca continua a ter lucros brutais e o governo continua a garantir que esses lucros se mantêm, mostrando-se até disponível para os financiar.  

Também no arrendamento há poucas escolhas livres. Com um mercado especulativo, sem fiscalização, o poder do senhorio não é igual ao do inquilino. Quem arrendou casa sabe das exigências, das pressões e do que é viver com a mala à porta de casa porque o contrato de arrendamento dura um ano. No direito do trabalho, com todas as suas limitações, parte-se do princípio que o trabalhador é a parte mais vulnerável. Nesta economia, a legislação do arrendamento devia proteger os inquilinos, sabendo que eles são a parte mais fraca. Este pode e deve ser o ponto de partida para uma nova legislação do arrendamento que garanta contratos estáveis e rendas justas.

4.º Mito – “não há turismo a mais e o investimento do imobiliário é a nossa salvação”

O turismo colonizador das nossas cidades, que destrói o comércio local, que transforma  casas em hotéis e que contribui para um aumento dos preços nas cidades onde vivemos não foi apenas algo que nos calhou em azar: foi uma escolha política.

Esta escolha económica privilegiou um setor que pouco cria, que vive de baixos salários, da precariedade e da exploração de mão de obra quase escrava, que não dá emprego a quem se forma no nosso país e que cá quer fazer vida, e que tem o condão de aumentar os preços da habitação.

Sustentada no mito de que houve uma grande requalificação das cidades — pintar uma fachada não é requalificar um prédio — permitiu-se que o alojamento local retirasse milhares de casas da função para que foram criadas, algo ilegal. Não sou eu que digo que é ilegal, é o Supremo Tribunal de Justiça num acórdão de valor reforçado porque uniformiza a forma como os tribunais terão de decidir quando confrontados com casos iguais. 

O que torna tudo muito explícito é que o governo saiba que há um setor económico assente numa ilegalidade e nada faça para repor a legalidade, para mais no tempo de crise em que vivemos. Fracos com os fortes e fortes com os fracos, é o mote das nossas políticas de habitação.

Recentemente, soubemos que no primeiro semestre deste ano 94% do investimento estrangeiro direto foi no imobiliário. Isto diz-nos que nada está a ser criado na nossa economia, tudo é apenas a manutenção de um mercado especulativo que não cria emprego e que apenas aumenta os preços.

Limitar a compra de casas a não residentes é atacar o problema onde ele existe: uma (já não tão) nova procura, ilimitada no espaço e financeiramente inesgotável que pode comprar todas as casas que quiser seja para que fim for. 

Dizer que esta medida é um ataque xenófobo é um insulto para as maiores vítimas desta crise de habitação: as pessoas migrantes, que morrem em incêndios por falta de condições de habitação ou que, quando a tragédia não é fatal, trabalham mais de 12 horas por dia para poderem pagar 200 euros por uma cama em regime de cama-quente.

A gente tem de estar unida

Esta crise, tão profunda e transversal, tem tido uma resposta à altura por parte das pessoas. Finalmente, Portugal assiste a grandes mobilizações por este direito. No passado dia 1 de abril, a manifestação Casa para Viver encheu as ruas de Lisboa e organizou-se um pouco por todo o país, apresentando medidas completas que não deixam ninguém para trás. Nestas medidas estão soluções para problemas tão diferentes que vão desde as demolições sem alternativa habitacional (do qual o  bairro do 2.º Torrão, em Almada,  é o exemplo mais recente), aos despejos — de todo o tipo —, passando pelo drama do arrendamento ou dos aumentos da prestação ao banco.

Dia 30 de setembro há outra manifestação “Casa para Viver, Planeta para Habitar”, que será novamente um passo importante pela expressão que, certamente, terá. As pessoas estão a tomar a palavra, a pedir para serem ouvidas e não irão transigir com o seu futuro. São as pessoas que não abrem os telejornais e que não têm comentários semanais em que debatem sozinhas. 

Quem estará na rua dia 30 serão as pessoas que fazem este país, que o constroem e que mudarão, mais tarde ou mais cedo, as políticas públicas de habitação. O governo finge que não ouve, enquanto se mantém permeável ao lóbi do imobiliário. Mas esta é uma caminhada que está a começar e não a terminar. 

Como canta Sérgio Godinho, “a sede de uma espera só se estanca na torrente”. Que as ruas se encham e que, de ora em diante, todas as escolhas políticas de habitação saibam que terão de responder a uma massa de gente que quer ter uma casa que possa pagar com o seu salário.