Escritora. Dupla vencedora do Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores com os livros Que Importa a Fúria do Mar (Teorema, 2013) e Não se pode morar nos olhos de um gato (Teorema, 2016). Foi cabeça de lista da CDU à Assembleia Municipal de Lisboa, em 2017

Os precários do ar. História de uma reportagem censurada

Há uma reportagem por fazer sobre trabalhadores que se queixam de “frio, fome e medo”. Não trabalham em call-centers, nem em cadeias de fast-food, nem em minas, fábricas de têxtil no Bangladesh ou bares de alterne, mas numa das mais rentáveis companhias aéreas do mundo.

Ensaio
26 Outubro 2023

Um dia, um diretor que tinha por principal característica não ter característica alguma, como um desses seres vagos e burocratas que se podem encontrar numa repartição do Gogol, apareceu-me com uma ideia genial. Fazer uma reportagem sobre os trabalhadores precários dos call-centers.

Sem querer desfazer o entusiasmo do senhor, não lhe expliquei que essa reportagem já tinha sido feita, em todos os formatos, televisivo ou em imprensa, nem que se tratava, aliás, de uma reportagem recorrente, que aparecia na comunicação social a uma cadência anual, senão mesmo semestral – até parece que a precariedade e a exploração de jovens só acontece nos call-centers – mas isto não lhe disse, quem sou eu para desincentivar arroubos motivacionais de senhores de meia idade.

Apresentei-lhe, antes, uma alternativa: trabalhadores que se queixavam de “frio, fome e medo”. E não, não trabalhavam em call-centers, nem em cadeias de fast-food, nem em minas. Nem em fábricas de têxtil no Bangladesh, nem em bares de alterne na noite. Os trabalhadores com frio, fome e medo trabalhavam numa multinacional, numa das mais rentáveis companhias aéreas do mundo.

Consegui, na altura, um testemunho: uma jovem de 20 anos, que, já desvinculada do emprego, se dispunha, na condição de anonimato, a dar-me toda uma visão dos atropelos laborais (além de humilhações, bullying, violência e todo o género de irregularidades). E um dirigente sindical, vice-presidente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil que não só confirmava tudo o que a fonte relatava como ainda traçava um panorama bem mais negro.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

A companhia recrutava (e aliciava) em todo o mundo jovens sem experiência e cobrava à volta de mil euros pelo curso de hospedeiro de bordo, de cerca de dois meses – estes rendimentos permitiam-lhes praticar uma política de bilhetes low cost. O sindicalista estava mesmo convencido de que os tais cursos seriam uma das principais estratégias de lucro. Aliciavam jovens, intimidavam-nos, coagiam-nos, mantinham-nos reféns de dívidas, longe do seu país e não admitiam que qualquer seu empregado estivesse inscrito num sindicato.

Todo o contacto entre os sindicatos e estes trabalhadores é hoje – no século XXI – mantido na clandestinidade.

Nos cursos apenas exigiam maioridade, fluência em inglês e o tal pagamento (acrescendo quinhentos euros de inscrição, e o preço da farda). O pesadelo começava aqui. Os jovens eram separados, as nacionalidades misturadas, cada qual enviado para a sua base, sem apoios, sem conhecerem ninguém.

Parte do ordenado ia para o alojamento, rendas inflacionadas, em zonas suburbanas, perto de aeroportos onde estas companhias operam. Para conseguirem suportar estas rendas, os hospedeiros aglomeravam-se em casas, partilhavam quartos, até camas, que ocupavam, consoante os turnos, como nos regimes dos submarinos.

O romantismo e a aventura desvaneciam-se nas primeiras semanas. Do mundo só conheciam praticamente arrabaldes desinteressantes, e as chefias fomentavam a denúncia e o mau ambiente entre colegas. Estavam sempre debaixo de tensão. Ficar doente era o cabo dos trabalhos: arranjar atestado, justificar-se, reunir com o superior hierárquico... Tamanha era a pressão exercida por parte das chefias que ninguém se atrevia a ficar doente. E também ninguém se importava se contaminavam ou não os passageiros. A minha fonte contou como se sentiu coagida a voar com uma conjuntivite, apesar de altamente contagiosa, num ambiente de ar artificial, como é o dos aviões.

A prática de humilhar os trabalhadores uns à frente dos outros era corrente. Se alguém cometia uma pequena infração – desde comer uma barrita fora dos horários previstos ou uma unha mal pintada – os colegas eram instigados a apresentar queixa. Claro que, admitia a minha fonte, passado pouco tempo, toda a equipa ia perdendo a vontade de ser amável com os passageiros.

São os precários dos ares. Trabalhadores mal pagos e permanentemente acossados, em estado de constante ameaça, muitas proibições e pequenas humilhações.

A rotatividade do pessoal era elevadíssima, sempre a chegarem novas pessoas, a experiência adquirida não parecia ser valorizada. O lado positivo de darem oportunidades aos mais novos tornava-se inquietante quando se pensa que, para enfrentar qualquer situação de emergência a bordo, estavam equipas recém-chegadas, também elas inseguras e vulneráveis.

A opressão e humilhação não ficava por aqui. Ex-trabalhadores lembram o frio que passavam, sempre com o mesmo blazer, na posição de receber na pista os passageiros, em países do norte, fizesse frio ou chuva, encharcadas as meias de vidro – e se apanhadas com um casaquinho de malha escondido por baixo da farda eram logo penalizadas.

Já a bordo chegava outra pressão: a de venderem produtos aos passageiros. Podiam fazer mil euros num voo (ganhavam 10% a dividir pelos oito membros da tripulação). Tinham inúmeras reuniões sobre marketing, com frases feitas e estudadas para induzir os passageiros a comprar, promoções e instruções para acordar até aqueles que dormiam.... Duas horas de voo sem nunca se sentarem. Se se queixassem lá vinha a ameaça: despedidos.

Não podiam dizer nada. Os supervisores geriam através do medo, faziam chorar os mais frágeis se fosse preciso, humilhavam, o bullying era tática... Vigorava a hierarquia do medo. E, às tantas, confessava a fonte “parece que o nosso cérebro deixa de funcionar e de ter vontade própria”: “Penso que muitas colegas minhas acabaram por desistir por exaustão”.

Do sindicato as descrições eram igualmente terríveis: “Esta companhia opera com contratos de trabalho temporário, as pessoas não têm qualquer segurança no emprego, ficam à cabeça endividadas com o pagamento da farda, e são compelidas a aceitar uma série de situações muito duvidosas e precárias. A empresa usa os trabalhadores como se fossem peças de um xadrez rotativo, deslocam-nas de um momento para o outro da base de Faro para Roma, por exemplo, sem qualquer respeito pelas suas vidas pessoais. Toda a vida da pessoa é destruída, têm de recomeçar tudo de novo, e eles não têm qualquer preocupação com isso”. Não admitem mais de três baixas por ano, não atendendo sequer à frequência e inevitabilidade dos barotraumatismos nos tímpanos.

Eles continuam a voar. Jovens de 18 e 20 anos, sozinhos, explorados e com medo. A reportagem também está por fazer, para quem a quiser apanhar.

São os precários dos ares. Trabalhadores mal pagos e constantemente acossados, com hierarquias castradoras, em estado de constante ameaça, muitas proibições e pequenas humilhações, num meio fechado, condicionado e em altitude... Tudo ao contrário de uma ambiência estável e serena, que se desejaria num voo.

Ao fim de uma semana de contactos com a empresa, que sempre alegava indisponibilidade e procurava insistentemente saber os nomes das pessoas que davam o seu testemunho, a companhia lá emitiu oficialmente um comunicado, alegando que as declarações do sindicato português eram falsas. E acrescentava serem excelentes as oportunidades e condições oferecidas ao pessoal de cabine, falando em grandes comissões de vendas e aumentos salariais garantidos. E acrescentava: “É por isso que temos atualmente uma lista de espera de mais de 3.000 jovens que desejam juntar-se à nossa fantástica equipa de tripulação de cabina”.

Eles continuam a voar. Atrás daquela “fantástica” tripulação de cabina que faz a coreografia das máscaras, em caso de despressurização, estão jovens de 18 e 20 anos, sozinhos, explorados e com medo. A reportagem também está por fazer, para quem a quiser apanhar.

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