Professora auxiliar convidada no Instituto Superior Técnico (Universidade de Lisboa) e investigadora integrada no ITI-LARSyS. Doutora em Media Digitais, com pós-doutoramento em Interação Humano-Máquina.

Os opostos atraem-se: o casamento das ciências sociais com a engenharia?

Como podem as Ciências Sociais contribuir para os conhecimentos aplicados à Engenharia? Como podem ajudar as novas gerações de engenheiros a refletir sobre a desumanização digital e as consequências inesperadas das Tecnologias de Informação e Comunicação?

Ensaio
9 Março 2023

Há quase uma década, sentei-me na sala de aula como aluna num programa de doutoramento em média digitais que contemplava a relação contemporânea e necessária entre as ciências sociais (comunicação/jornalismo, design, sociologia, psicologia) e a engenharia informática. Foi então que comecei a refletir sobre a tentativa de casório entre esses dois campos aparentemente opostos que, no entanto, se atraem e se complementam de maneiras fascinantes. Com curiosidade, observei os meus colegas das ciências sociais que pelejavam para entender porque precisavam aprender questões mais práticas da tecnologia, como desenhar um protótipo de uma app, enquanto alguns alunos de engenharia pareciam perplexos com a ideia de ter aulas puramente expositivas e, possivelmente, monótonas sobre a teoria da comunicação.

Ao longo de uma década de experiência em investigação e ensino em mestrados e doutoramentos, em diferentes instituições do ensino superior em Portugal e no estrangeiro, tenho aprofundado a minha reflexão sobre a relação entre as ciências sociais/humanidades e as exatas/naturais. Neste contexto, tenho tido a oportunidade de observar de perto as mudanças nesses campos de estudo. Destaco, por exemplo, que programas europeus de financiamento da ciência, como o Horizon Europe, têm privilegiado cada vez mais a inclusão das ciências sociais em projetos de desenvolvimento tecnológico na busca por soluções para problemas societais. Outro exemplo inspirador vem da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, que oferece um programa que concede um grau duplo em jornalismo e ciências da computação, uma iniciativa pedagógica que demonstra o futuro do conhecimento.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Apesar destas evidências, ainda noto uma potencial desconsideração de áreas do conhecimento que não sejam exatas, embora muitas destas apliquem métodos quantitativos e ofereçam contribuições valiosas para a compreensão dos fenómenos sociais. Esta observação pessoal está em consonância com a opinião de outros acadêmicos; enquanto a cientista social Ana Viseu descreve num artigo publicado na revista Nature sua experiência frustrante num laboratório de nanotecnologia norte-americano, o académico Knut H. Sørensen explica no seu artigo científico “The Role of Social Science in Engineering” que a relação das ciências sociais com a tecnologia e a engenharia é marginalizada, pois muitas vezes a aplicação das ciências sociais na engenharia restringe-se a ter um “papel de policiamento” sobre o impacto ético ou negativo da tecnologia, algo que nem sempre é apreciado, segundo o autor.

Sem compreender a não neutralidade da tecnologia, alguns alunos podem desresponsabilizar as empresas de tecnologia, alegando a falta de previsão das consequências ou desvio das intenções originais que levaram ao seu desenvolvimento.

Afinal, os benefícios e riscos de uma tecnologia não dependem meramente de como o ser humano a usa, pois essas são muitas vezes embutidas com valores sociais, culturais e políticos. 

Um exemplo curioso é o microondas, originalmente desenvolvido como um dispositivo sofisticado fundamentalmente para homens solteiros, que não sabiam ou não gostavam de cozinhar. Este caso é analisado pelas académicas Cynthia Cockburn  e Susan Ormrod, no livro Gender and Technology in the Making, onde demonstram que a cor do microondas, entre outros vários aspectos, foi escolhida para atrair o público masculino.  Outros exemplos mais corriqueiros são funcionalidades como o autoplay (ex: quando um vídeo é iniciado, sem o comando do utilizador), desenvolvida para criar dependência em plataformas como o YouTube, ou ainda a reprodução de racismo, xenofobia, e sexismo por sistemas de inteligência artificial, como evidencia o livro de Ruha Benjamin, Race After Technology, com dezenas de exemplos derivados de artigos científicos, da área de ciências da computação.

Sem compreender a não neutralidade da tecnologia, alguns alunos podem desresponsabilizar as empresas de tecnologia, alegando a falta de previsão das consequências ou desvio das intenções originais que levaram ao seu desenvolvimento. Por exemplo, um localizador de objetos da Apple, as airtags, originalmente criado para localizar objetos, ser utilizado indevidamente para localizar uma mulher pelo ex-marido. Na discussão deste caso, em sala de aula, é comum encontrar analogias com a utilização letal de uma faca ou um taco de basebol, sem considerar a fraca literacia digital de grande parte da população.

Se uma pessoa usa uma faca para assassinar alguém, devemos responsabilizar o inventor da faca que queria simplesmente desenhar uma ferramenta como utensílio para preparar comida? Ou ainda quem comprou a faca? O fabricante, talvez? Contudo, se várias crianças se suicidam, devido a desafios lançados por terceiros, no TikTok, quem deverá ser responsabilizado? As crianças, as famílias, as escolas, ou as empresas detentoras da rede social que são responsáveis pelo design e codificação da plataforma e manipulação de algoritmos?

Seguindo este raciocínio, pergunto-me se a faca ou o taco de basebol alteram a essência do ser humano da mesma maneira que as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) alteram a experiência do ser humano. A nossa experiência humana é cada vez mais marcada pela redução da nossa identidade e valor social a dados, ou pelo facto de concedermos às máquinas a possibilidade de desenvolvimento de atividades intelectualmente desafiantes e criativas, como a escrita de um ensaio académico ou a criação de uma letra de uma música (ex: o ChatGPT, um agente virtual que interage com o ser humano de maneira conversacional). Ou, ainda mais complexo, do ponto de vista moral e ético, a decisão de matar, no contexto de policiamento (ex: robôs-polícia que são programados para matar)?

Como podem os fundamentos estruturais das Ciências Sociais ser aplicados à Engenharia, de forma que a reflexão sobre a desumanização digital e as consequências inesperadas das TIC sejam partilhadas com as novas gerações de engenheiros na sala de aula? A pergunta não é nova. Pelo contrário, faz 23 anos que a ABET (Accreditation Board for Engineering and Technology), uma organização não governamental americana que credencia programas de ensino superior em Ciências Aplicadas e Naturais, Computação e Engenharia, passou a exigir formalmente o estudo da Ética da Engenharia em todos os programas credenciados. Desde então, as universidades de Engenharia de referência internacional têm seguido esta diretiva e alterado os seus currículos para fornecer aos seus alunos formação humanística, social e ética.

No caso da Engenharia, muitas vezes as disciplinas de ética ou outras áreas afins têm um estatuto inferior em relação às disciplinas exatas, nomeadamente pelo número de créditos e horas de estudo determinado nos programas de estudo institucionais.

Contudo, as observações, leituras, e conversas com colegas académicos portugueses e internacionais sobre a complexa relação das ciências sociais e as exatas, leva-me a refletir sobre várias questões. Como tem sido feita esta articulação das ciências sociais (ou das humanidades) e da engenharia nas instituições de ensino superior, e por quem? Os alunos entendem realmente o que está em jogo quando entram numa sala de aula onde o docente é das ciências sociais? Ou vice-versa? Que tipo de preparação institucional é necessária para esta transdisciplinaridade? Os alunos sentem-se motivados para aprender disciplinas em que o docente usa paradigmas de ensino e epistemologias diferentes das ciências exatas? Ou vice-versa? Como esta integração é suportada pela cultura profissional e académica das instituições de ensino superior?

No caso da Engenharia, muitas vezes as disciplinas de Ética ou outras áreas afins têm um estatuto inferior em relação às disciplinas exatas, nomeadamente pelo número de créditos e horas de estudo determinado nos programas de estudo institucionais. Diria que para se alcançar um casamento equilibrado entre áreas, as disciplinas oriundas das Ciências Sociais poderiam ter um estatuto mais elevado, para que os alunos se sintam mais motivados a pensar criticamente sobre a sociedade, sem ter em vista necessariamente um resultado tangível, ou sem ter somente uma lógica mercadológica ou empreendedora em mente. 

Por fim, por um lado, pode ser que os comentários dos meus alunos de Engenharia sejam derivados das diferenças estruturais e profundas destas duas culturas académicas, muitas vezes contaminadas por uma cultura neoliberal que atravessa a Instituição escolar e transforma os sujeitos em reprodutores da lógica mercantil.

Por outro lado, pode ser que estejam em negação de um suposto casamento das Ciências Sociais com a Engenharia. Ou, talvez, não tenham ainda sido preparados ou convidados para a cerimónia de união das áreas, se é que alguma vez existiu.  

Para iniciar um processo efetivamente transdisciplinar, um casamento efetivo, em direção às ideias de outro texto que escrevi em 2019 no jornal Público ("Ser transdisciplinar: já não basta pensar fora da caixa"), vejo dois movimentos preliminares, que as instituições poderiam aprimorar e aplicar: 1) Criar espaços de participação cívica e extensão universitária, de modo que os alunos se sintam motivados e recompensados pelo envolvimento com a comunidade local, através de trabalho voluntário ou remunerado através de bolsas; 2) Enviar uma mensagem direta e inequívoca, utilizando os seus meios de comunicação interna e externa, aos seus atuais e potenciais alunos sobre a razão pela qual apostam na inserção, nos currículos, de disciplinas vincadas nas ciências sociais ou humanidades, ou de forma abrangente, na transdisciplinaridade. 

Isto é importante, porque desconstrói a ideia de que estão simplesmente a seguir uma tendência internacional e organizacional, sem realmente reconhecer a razão pela qual diretivas, como aquelas da organização não governamental americana ABET, foram criadas. Pode ser que assim possamos construir um ensino transdisciplinar que vise a transformação e a inovação social, e não só a inovação tecnológica.