Doutoranda em Ciências da Comunicação na NOVA FCSH, membro do ICNOVA e do Obi.Media. As suas áreas de investigação centram-se na inovação no áudio, nos estudos da rádio e no jornalismo.

 

O som da destruição: a importância de ouvir a guerra

Somos bombardeados por imagens, vídeos e infografias sobre guerras, mas será que chegamos a ouvi-las? O som e a música são elementos da frente de batalha, mas como é que a guerra acontece através deles? É preciso ouvir com atenção.

Ensaio
13 Julho 2022

Vuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii(i). Nem sempre é fácil encontrar uma onomatopeia que faça jus a um som de guerra, principalmente quando se trata de imitar uma sirene a avisar para um ataque aéreo. Esta é a minha tentativa. Agora que a descodifiquei, volte a lê-la. Consegue ouvi-la na sua mente? Aposto que sim.

O nosso cérebro tem esta capacidade incrível de encontrar padrões e dar-lhes significado. Toda a estrutura do ser humano é uma rede complexa e maravilhosa de conexões. Os nossos ouvidos e o sentido de audição permitem-nos equilibrar, estarmos despertos para possíveis ataques, percebermos se o perigo está longe ou perto, assustarmo-nos ou ficar deliciados com algum som que nos é agradável. Faz-nos sonhar ou traumatiza-nos.

Quando ouvi pela primeira vez a sirene que marcou o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, o meu corpo estremeceu. O meu cérebro reconheceu o significado daquele som e as suas consequências. O som da sirene provocou um efeito fisiológico e, num piscar de olhos, aquela sirene passou a estar no rol de sons diários do povo ucraniano, dos militares e dos correspondentes de guerra, que não podiam simplesmente “fechar” os ouvidos a estes sinais sonoros. O som tem esta particularidade: tem efeitos físicos e psicológicos.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

R. Murray Schafer, compositor canadiense que despertou uma geração para a importância da ecologia acústica, escreveu que não podemos “fechar” os ouvidos quando temos vontade, ao contrário dos olhos. “Quando vamos dormir, a nossa perceção sonora é a última porta a fechar-se e é, também, a primeira a abrir quando acordamos”, escreveu no seu livro The Soundscape: our sonic environment and the tunning of the World, de 1977.

Apesar da exposição diária a este som, apenas existem 150 sirenes na Ucrânia, conta Lyubko, insuficientes para que o alarme chegue a todos os distritos.

Porque não é possível desligarmo-nos dos sons que nos rodeiam, recebemos uma quantidade abismal de informação auditiva que é filtrada pelo nosso cérebro e que nos causa sensações, que desperta ou influencia, que produz impacto no nosso corpo. E esta dualidade psicológica e física do próprio som transforma-se numa arma sónica bastante eficaz numa guerra. Mas de que forma é que a guerra acontece através do som e da música? Como é que podem ser usados como uma arma, seja em relação aos civis, aos militares e até ao próprio ecossistema?

Com o despertar da guerra na Ucrânia, as sirenes e as explosões começaram a ser um dos sons mais banais da paisagem sonora. Lyubko Deresh, romancista ucraniano, descreve no The New York Times a primeira vez que ele e a sua esposa ouviram as sirenes e as explosões em Kiev. Distantes da capital ucraniana, o romancista percecionou-as como fogo de artifício, até que o bombardeamento começou a estar próximo da sua área e o seu impacto causou destruição por todo o lado: os alarmes dos carros dispararam, a força do choque partiu os vidros das janelas e os corvos formaram uma nuvem.

No distrito vizinho, o som da sirene “prolongado e monótono, ecoou pela cidade e por quilómetros ao redor, anunciando o início de uma nova realidade”. Esta realidade começou por, nos quatro dias seguintes, pintar a paisagem sonora com 18 horas diárias de sirenes; em março e em abril, a duração foi sendo intercalada com dias de 12 horas e, noutros, com seis horas diárias. Contudo, apesar da exposição diária a este som, apenas existem 150 sirenes na Ucrânia, conta Lyubko, insuficientes para que o alarme chegue a todos os distritos.

Por isso foi desenvolvida a Air Alarm, uma aplicação que imita o som de uma sirene quando identifica um utilizador numa zona de perigo. A primeira vez que soou no telemóvel “assustou tanto a minha esposa - foi basicamente como instalar uma sirene no nosso apartamento - que imediatamente excluí o Air Alarm do meu telemóvel”, afirma o romancista.

Após tantas horas expostos a esta guerra acústica – às sirenes e consequentes bombardeamentos – o medo e o stress foram sendo progressivamente substituídos pela aceitação desta nova realidade. Um dos episódios mais emblemáticos que ilustra esta posição, também relatado por Lyubko, foi um teclista a tocar na rua a música Time, uma das composições de Hans Zimmer, para camuflar o som de uma sirene que anunciava mais um bombardeamento aéreo.

Se a música, neste caso, teve a missão de esconder a realidade, também pode ter a de denunciar um agressor, como fez um grupo de criativos da Ucrânia em março deste ano. Através de vídeos que captaram explosões, ataques aéreos e o desespero em forma de gritos, este grupo trabalhou em conjunto com o músico e compositor Rodrigo Leao e criaram o Anthem of True Russia. No website dedicado, não só contabilizam os dias desde que a guerra começou, como afirmam que “é assim que a Rússia, que invadiu a Ucrânia, soa. Este é o hino da Rússia. Verdadeira Rússia”. Apenas com som, os artistas demonstraram uma parte do cenário de guerra.

O som pode ser controlado, manipulado; ou ser um agente democratizador.

Esta peça musical é apenas um exemplo que demonstra que quando prestamos atenção aos sons que nos rodeiam, podemos despertar para uma realidade que até então não tínhamos consciência. Seja ela agradável ou terrível.

Talvez por isso é que a paisagem sonora é demasiado complexa para ser transformada em palavras e “é apenas na música que o homem encontra a verdadeira harmonia do mundo interior e exterior. Será também na música que ele criará os seus modelos mais perfeitos da paisagem sonora ideal da imaginação”, escreveu no mesmo livro R. Murray Schafer.

E será através da música que o Homem conseguirá, também, ser violento.

A arma sónica contra o inimigo

Som e poder andam de mãos dadas nos mais variados aspetos da nossa vida. Na guerra, não é exceção: veja-se o exemplo da rádio. Este medium tem vindo a desempenhar um papel importante nos conflitos desde a sua época de ouro, utilizada como arma de propaganda de regimes ditatoriais ou como de defesa contra os próprios. O som pode ser controlado, manipulado; ou ser um agente democratizador.

Mas outra das particulares do som é que ele é mutável. Quando se fala em ouvir a guerra, cada dia é uma folha em branco: ouvimo-la de maneira diferente. O som da destruição, da migração, dos lamentos e o próprio silêncio diversificam-se, adquirem ou transformam-se em significados diferentes.

O conjunto de sons que são provocados por um conflito armado são definidos por J. Martin Daughtry como belliphonic sounds, ou seja, o espectro de sons (que podemos considerar atípicos) que a guerra desencadeia num determinado território. Esta definição resulta da sua investigação sobre as consequências fisiológicas e psicológicas que os belliphonic sounds e a música provocaram nos civis e nos militares durante a guerra do Iraque, desde a operação "Schock and Awe" de 21 de março de 2003 até ao final de 2011.

O som da destruição, da migração, dos lamentos e o próprio silêncio diversificam-se, adquirem ou transformam-se em significados diferentes.

“Testemunhar a guerra é, em grande parte, ouvi-la. E sobreviver é, entre outras coisas, tê-la ouvido. Ou melhor: ter ouvido através dela”, escreve o autor no livro Listening to War: Sound, Music, Trauma and Survival in Wartime Iraq, de 2015. Neste cenário, os belliphonic sounds não eram assimilados como “ruído, mas como sinal valioso, embora precisasse de ser descodificado para ser totalmente compreendido”.

Com isto, Daughtry esclarece que este manancial de sons pode ser encarado de uma forma ambígua: tanto pode ser benéfico porque é uma fonte rica de informações estratégicas, como pode ser prejudicial, levando ao trauma e ao Stress Pós-Traumático (SPT).

De uma forma ou de outra, ao longo da História, o som da guerra foi sendo aprimorado, transformado e modificado, a par com as novas tecnologias. É através da sua evolução que se entende como é que o poder do som e a música continua a ser uma arma de guerra.

Usar instrumentos musicais, cânticos ou determinados sons para assustar e desencorajar o inimigo é uma técnica ancestral que se perpetuou ao longo da História. A título de exemplo, os Astecas utilizavam o Death Whistle, um instrumento em forma de caveira e com um som semelhante a um grito para criar um efeito psicológico assustador nas tribos inimigas. Também o uso de cornetas em várias tribos, o toque de tambores a anunciar a chegada das tropas ou para marcar o compasso da marcha eram outras táticas utilizadas por diferentes povos.

Lawrence English, compositor, artista e curador australiano, traça num ensaio a evolução das técnicas do uso do som e da música como arma de guerra. Refere o uso de mísseis V1 e V2 (também conhecidos por Buzzbombs) na II Guerra Mundial pela Alemanha nazi, que posteriormente deram origem aos mísseis balísticos sónicos e hipersónicos.

Além deste tipo de bombas e de outras estratégias sónicas usadas na Alemanha nazi, Adolf Hitler viu na música uma arma psicológica de controlo e poder, à semelhança do que aconteceu com a rádio. Delegou a missão a Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazi, que criou cânticos e músicas de exultação à grandiosidade da nação e do povo alemão.

Do outro lado do oceano, os Estados Unidos também apostaram nas guerras psicológicas através do som e da música. Estas táticas, denominadas “Operações Psicológicas” (PSYOP), baseavam-se no princípio único de desmoralizar e desmobilizar o inimigo. Foram usadas na II Guerra Mundial (1939-1945), na Guerra do Golfo (1991) e ainda na Guerra do Vietname (1961-1975) e, nesta última, a missão ficou conhecida como operação Wandering Soul.O 6º Batalhão PSYOP do Exército norte-americano decidiu usar uma antiga crença contra os soldados da Frente Nacional para a Libertação do Vietname. A premissa era simples: os locais acreditavam que se um vietnamita não fosse enterrado adequadamente no seu território, se transformaria numa alma sem rumo, repleta de sofrimento e dor, a vaguear na terra até ao fim dos tempos. 

“Testemunhar a guerra é, em grande parte, ouvi-la. E sobreviver é, entre outras coisas, tê-la ouvido. Ou melhor: ter ouvido através dela.”

Assim, foi gravada a Ghost Tape Number 10, um áudio onde se ouve um pai a lamentar-se à filha que está no inferno e que não consegue encontrar a paz. Apela ainda aos soldados da Frente Nacional para a Libertação do Vietname que desistam da sua missão para não acabarem como ele, uma alma errante. A mixagem desta cassete foi feita com efeitos sonoros assustadores para criar uma sensação fantasmagórica no ouvinte.

A adicionar, o 6º Batalhão PSYOP instalou colunas de som em helicópteros que sobrevoavam determinada área e, no terreno, militares vestidos com colunas percorriam a floresta durante a noite enquanto emitiam a cassete com o volume alto. O objetivo era desmoralizar e coagir os soldados vietnamitas a abandonarem a causa. Nunca se soube se esta operação teve sucesso.

Os efeitos cognitivos e psicológicos que o som e a música provocam no ser humano são áreas que têm vindo a ser estudadas, até porque não deixam marcas visíveis: o som não inflige feridas na pele ou cicatrizes visíveis, o que o torna um recurso subtil e eficiente. Principalmente quando se aplica à tortura.

Da tortura ao sentimento de poder através da música

A Rua Sésamo é um dos programas mais conhecidos do mundo infantil. As músicas que ilustram as personagens e ajudaram milhares de crianças a ler, a escrever e a pensar sobre o mundo foram, na sua maioria, compostas e produzidas por Christopher Cerf.

Porém, as mais de 200 músicas que traziam alegria às crianças não foram apenas utilizadas no programa. O compositor nem queria acreditar quando descobriu que as suas produções musicais tinham sido usadas por militares norte-americanos como método de tortura nas prisões de Guantánamo e de Abu Ghraib em 2003.

O início deste século ficou marcado com o ataque ao World Trade Center em 2001 e as detenções por parte dos militares norte-americanos intensificaram-se nos anos seguintes. Os métodos de tortura tinham guidelines específicas da CIA (muitas delas à margem da lei norte-americana e internacional), onde se incluíam os métodos de torturas através da música.

No documentário Songs of War: Music as a Weapon (2011), vencedor de um Emmy Internacional em 2012, o realizador Tristan Chytroschek explora a relação da música com a violência e, através de Christopher Cerf - que entrevistou especialistas, um antigo guarda prisional, psicólogos e músicos -, demonstra as consequências nefastas desta utilização.

De uma forma ou de outra, ao longo da História, o som da guerra foi sendo aprimorado, transformado e modificado, a par com as novas tecnologias.

O compositor descobriu que os prisioneiros eram forçados a ficar em posições desconfortáveis e, com o uso de headphones ou de colunas de som, obrigados a ouvir a mesma música vezes sem conta, em alguns momentos distorcida ou reproduzida em conjunto com outra de um género musical diferente, a um volume exorbitante e expostos a essa agressão auditiva durante horas.

As mais comuns eram as de heavy metal, como Metallica ou Decide (a música mais utilizada era Fuck Your God para ferir crenças religiosas) ou então êxitos como Hit me Baby One More Time, da Britney Spears. A intenção era isolar o prisioneiro do mundo exterior e, mais importante, de si próprio. Ao não ter espaço para pensar e raciocinar devido ao volume alto e do género musical da música, o prisioneiro era levado ao cansaço extremo e/ou à privação de sono.

Desta forma, o recluso ficava impotente, sem poder sobre si mesmo e sobre as suas emoções. É neste ponto que o responsável da tortura ganha o controlo do prisioneiro através da música, vergando-o sobre si próprio. Através do som, o recluso perde o seu próprio poder.

Mas não é só na prisão que a tortura através da música ou do som pode prejudicar e afetar os prisioneiros. No contexto de conflito, os belliphonic sounds podem ter um papel de tortura para o próprio ecossistema, mesmo que indiretamente. Por exemplo, o aumento de mortes de golfinhos no Mar Negro pode estar relacionado com o aumento da poluição sonora provocada pelos 20 navios da marinha russa e das operações militares que estão em curso, noticiou o The Guardian.

Apesar de não existirem dados concretos que provem esta relação de causa-efeito, os especialistas afirmam que desde o início da guerra se registou um aumento de golfinhos encalhados na costa ou capturados em redes de pesca. “Não temos provas sobre o que o sonar de baixa frequência pode causar no Mar Negro porque nunca vimos tantos navios, e tanto barulho por tanto tempo - e a ciência exige sempre provas”, refere um dos especialistas.

Apesar de ainda não existirem provas concretas, a poluição sonora pode estar a afetar estes mamíferos marinhos que dependem do som para, entre outras atividades, comunicarem entre si. Os investigadores especulam que numa tentativa de escapar a estes ruídos, os golfinhos têm vindo a migrar para outras zonas do Mar Negro, resultando na sua morte em redes de pesca ou então encalhados nas praias ao longo do Mar Negro, lê-se no artigo.

Contudo, a música utilizada em contexto de guerra também tem um lado positivo. Na obra de J. Martin Daughtry e no documentário de Tristan Chytroschek, a música desempenha um papel importante na concentração, no relaxamento e na própria confiança dos militares e civis em contexto de guerra.

Daughtry analisou as inúmeras possibilidades que o iPod disponibilizou aos militares e a relação que mantinham com as músicas que consumiam; Chytroschek percebeu na recolha para o seu documentário que os militares, ao ouvirem músicas de heavy metal, se sentiam mais concentrados, mais empoderados e confiantes nas suas missões.

Para os civis, a música pode ser um escape à realidade da própria guerra. São tantos os exemplos que nos chegam através dos media: desde a criança que canta Let it Go num bunker na Ucrânia, ao festival da Eurovisão que foi comentado por Timur Miroshnychenko num estúdio improvisado.

A música e o som tanto podem ter um efeito devastador, traumático, como podem elevar uma pessoa a um estado de euforia, de esperança e de concentração. É através destes e de outros exemplos que a guerra acontece.

A música e o som são utilizados como arma em diferentes ângulos, seja ao nível psíquico como fisiológico, e nem sempre lhe prestamos a devida atenção. R. Murray Schafer escreveu em 1977 que “os homens sempre tentaram destruir os seus inimigos com sons terríveis”, sons esses que estão em constante mudança. Ouçamos com atenção.