Escritor, académico, jornalista e ativista britânico. Cofundador da Stop The War Coalition. Investigador na Goldsmiths, Universidade de Londres.

O genocídio em Gaza expôs o conformismo dos média ocidentais

Enquanto Israel trava uma guerra contra o povo palestiniano, os meios de comunicação social ocidentais não têm feito a análise rigorosa que a situação exige. Precisamos urgentemente do tipo de reportagem crítica que a WikiLeaks forneceu sobre os crimes da "guerra contra o terrorismo".

Ensaio
11 Janeiro 2024

As notícias sobre o genocídio em Gaza enchem horas de noticiários e quilómetros de papel de jornal. No entanto, contraintuitivamente, continua a ser o conflito mais subnoticiado da era moderna.

Porquê? A resposta a este enigma está nas fontes do excesso de notícias que recebemos. Não provém, em primeiro lugar, de jornalistas independentes, ou mesmo de jornalistas tradicionais, no terreno, em Gaza.

Os israelitas impuseram uma zona de exclusão a jornalistas em toda a Faixa de Gaza e, por isso, esta continua a ser uma zona de guerra com muito poucos jornalistas tradicionais presentes para registar os combates, algo que, historicamente, é quase inédito. 

De acordo com os Repórteres Sem Fronteiras:

"Está a ser negado aos jornalistas estrangeiros o acesso à Faixa de Gaza. Em dois meses de guerra, nenhum repórter foi autorizado a entrar por Rafah, o que prejudica claramente a capacidade dos meios de comunicação de cobrir o conflito."

Nem sequer há jornalistas incorporados (embedded) nas tropas israelitas. Na Guerra do Iraque, estes repórteres infiltrados foram ridicularizados por apenas transmitirem o ponto de vista das tropas junto das quais se encontravam, lá colocados pelos governos beligerantes. Mas, em Gaza, onde até esta forma domesticada de reportagem de testemunhas oculares está ausente, os jornalistas incorporados seriam um passo em frente. Atualmente, os relatos mais frequentes que recebemos dos combates na linha da frente são vídeos divulgados pelas Forças de Defesa de Israel (IDF) ou pelo Hamas.

Muitos jornalistas palestinianos e de outros países do Médio Oriente estão a tentar fazer reportagens no terreno, mas esta profissão é mortífera. Mais de 100 jornalistas foram mortos desde o início da guerra em Gaza e 400 foram presos. Cerca de 50 edifícios de meios de comunicação social foram parcial ou totalmente destruídos pelas forças israelitas.

A Federação Internacional de Jornalistas diz que talvez um em cada dez de todos os jornalistas em Gaza já tenha sido morto. Compare-se isto com os 63 jornalistas mortos em todos os vinte anos da Guerra do Vietname.

Mais de 100 jornalistas foram mortos desde o início da guerra em Gaza e 400 foram presos. Cerca de 50 edifícios de meios de comunicação social foram parcial ou totalmente destruídos pelas forças israelitas.

Falta de análise

Mas não são apenas as reportagens no terreno que são difíceis de encontrar. O jornalismo analítico ou de investigação, com menos justificações, também é escasso. No passado, poderíamos esperar que os repórteres de investigação da imprensa e dos programas televisivos de atualidade fizessem uma análise aprofundada das forças que estão por detrás da guerra e dos principais incidentes do conflito.

Este é o tipo de trabalho outrora realizado pela equipa do Sunday Times Insight, pelo falecido e já muito saudoso John Pilger, tanto na televisão como na imprensa, pelo World in Action da ITV ou, menos frequentemente, pelo Panorama da BBC. Celebremente, os jornalistas tradicionais foram acusados de perder a Guerra do Vietname.

Uma emissão do veterano pivô da CBS, Walter Cronkite, foi mesmo apontada como decisiva. Na sequência da Ofensiva do Tet, em 1968, Cronkite visitou o Vietname, retornando de uma visita à cidade de Hue num helicóptero dos fuzileiros norte-americanos, com doze sacos de cadáveres ao seu lado. O veredito posterior de Cronkite, de que a guerra era um impasse sangrento, suscitou o seguinte comentário de um Presidente Lyndon Johnson desanimado: "Se perdi o Cronkite, perdi a Middle America [as classes médias]".

Nesta guerra, é difícil encontrar um jornalismo tão aprofundado ou crítico. As questões básicas sobre o ataque de 7 de outubro continuam sem resposta.

Quer a acusação contra o jornalismo em geral ou contra Cronkite em particular fosse ou não verdadeira, era pelo menos suficientemente credível para ser feita e levada a sério. Não há perigo de que uma acusação semelhante possa ser formulada contra os principais jornalistas que cobrem o genocídio em Gaza.

Nesta guerra, é difícil encontrar um jornalismo tão aprofundado ou crítico. O Washington Post demorou uma eternidade a analisar as alegações sobre os combates em redor do hospital Al Shifa. Ainda não temos um relato hora a hora do que realmente aconteceu durante o ataque do Hamas a 7 de outubro. As questões básicas sobre quem matou quem, sobre quantos morreram e quem eram, sobre o papel das forças israelitas, continuam sem resposta, atoladas em alegações e contra-alegações.

Também não houve muita análise sustentada dos objectivos de guerra israelitas, das tensões entre os Estados Unidos e Israel, do conflito no Mar Vermelho ou da estratégia do Hezbollah no Líbano.

Calcular os custos

No meio desta seca jornalística, sentimos ainda mais a perda da voz de Julian Assange e do material fornecido pela WikiLeaks. Fechado pelo quinto Natal consecutivo na prisão de alta segurança de Belmarsh, no Reino Unido, Assange aguarda ainda uma última audiência em tribunal na sua longa luta contra a extradição para os Estados Unidos, onde poderá ser condenado a penas que podem ir até 175 anos, ao abrigo da Lei de Espionagem dos EUA de 1917.

O WikiLeaks só foi criado em 2006, pelo que não podia informar diretamente sobre as invasões do Afeganistão e do Iraque. Mas as ocupações subsequentes desses países foram um assunto diferente. Aqui, as fugas de informação que Assange publicou em alguns dos principais jornais impressos do mundo revelaram, em pormenor sem precedentes, a realidade terrível e sangrenta da forma como as forças ocidentais agiram.

Essas revelações não criaram uma consciência massiva anti-guerra nem influenciaram diretamente a criação do movimento anti-guerra — ambos já existiam desde 2003. Mas justificaram a política anti-guerra e demoliram as reputações remanescentes daqueles que tinham promovido as guerras e as ocupações.

Vejamos apenas um exemplo do que sabemos sobre a Guerra do Iraque que não estaria disponível se a WikiLeaks não tivesse divulgado os Registos da Guerra do Iraque, a maior fuga de informação da história militar dos EUA. Trata-se de um facto absolutamente básico, fundamental para a forma como julgamos um conflito militar: o número de mortos.

De forma infame, os EUA recusaram-se a contar os mortos iraquianos. Coube a organizações como a Iraq Body Count tentar calcular cuidadosamente quantos tinham perdido a vida. O material divulgado pela WikiLeaks acrescentou mais 15 mil ao total da Iraq Body Count, elevando o número para 150 mil mortos.

Na guerra contra Gaza, Israel não faz qualquer tentativa de registar o número de palestinianos que matou e, simultaneamente, rejeita como não fiáveis os números fornecidos pela autoridade sanitária de Gaza. Sob pressão israelita, grande parte dos principais meios de comunicação social do mundo começou a prefaciar a sua referência aos números divulgados pela autoridade sanitária com as palavras: "a autoridade sanitária dirigida pelo Hamas".

Estaríamos todos mais bem informados sobre os factos mais básicos da guerra se a WikiLeaks pudesse publicar o tipo de material que publicou depois das guerras do Iraque e do Afeganistão.

Na guerra contra Gaza, Israel não faz qualquer tentativa de registar o número de palestinianos que matou e, simultaneamente, rejeita como não fiáveis os números fornecidos pela autoridade sanitária de Gaza.

A segunda superpotência

E quão mais valiosa seria essa informação agora, sendo publicada em tempo real à medida que a guerra em Gaza se desenrola. As guerras são expressões de poder e as palavras, por si só, não as podem travar. Mas podem informar e inspirar aqueles que estão a trabalhar para criar um poder popular que se contraponha aos belicistas.

Em 2003, o New York Times disse aos seus leitores que "ainda pode haver duas superpotências no planeta: os Estados Unidos e a opinião pública mundial". E concluía:

"Surgiu um fenómeno excecional nas ruas das cidades do mundo. Pode não ser tão profundo como as revoluções populares na Europa de Leste em 1989 ou as lutas de classes na Europa em 1848, mas é pouco provável que os políticos e os líderes o ignorem."

O épico movimento de massas que abalou o sistema ocidental em 2003 está de novo nas ruas. Precisa urgentemente de um jornalismo de qualidade.

Na sua acusação à WikiLeaks, o antigo diretor da CIA Mike Pompeo descreveu-a como "uma agência de informação não estatal e hostil". A sua intenção era condenar Assange, comparando-o a um espião. Mas, se bem entendido, Pompeo estava a fazer um elogio a Assange.

Na verdade, só há dois tipos de notícias: as que são dadas pelos governos e pelas empresas e as que os ricos e poderosos não querem que se saibam.

Os espiões pegam em informação secreta de um Estado e dão-na, em segredo, a outro Estado com o objetivo de dar a esse segundo Estado uma vantagem política, diplomática ou militar sobre o primeiro. Mas a WikiLeaks não fez nada em segredo e o seu público não eram os mandarins de outro Estado, mas sim a população do mundo inteiro. O seu objetivo era dar poder à massa da população, e não trocar segredos em benefício dos já ricos e poderosos. Como nos faz falta agora a nossa própria agência de informações, no momento em que o genocídio é perpetrado em Gaza e o Médio Oriente é ameaçado pelo alastramento da guerra.

Assange está bem ciente dos perigos que enfrenta uma imprensa livre, devido à sua própria prisão. O escritor Charles Glass visitou Assange recentemente em Belmarsh e perguntou-lhe sobre o jornalismo e a guerra em Gaza. O escritor relatou que Assange:

"lamenta que a WikiLeaks já não seja capaz de expor crimes de guerra e corrupção como no passado. A sua prisão, a vigilância do governo norte-americano e as restrições ao financiamento da WikiLeaks afastam potenciais denunciantes. Teme que outros meios de comunicação social não estejam a preencher o vazio."

Mas não é apenas pelo facto de nos privar de uma fonte de informação oculta que o encarceramento de Assange é importante. É também porque nos priva de uma fonte de opiniões que estão fora do mainstream.

Veja-se a entrevista de Assange a Hassan Nasrallah, o líder do Hezbollah. Assange faz algumas perguntas incómodas a Nasrallah, mas também quer genuinamente deixar uma figura política importante explicar os seus pontos de vista, explicar os seus antecedentes e corrigir equívocos sem intimidação, opróbrio, escárnio ou condescendência. E isso, pelo menos nos grandes media, é tão raro como dentes numa galinha.

Na verdade, só há dois tipos de notícias: as que são dadas pelos governos e pelas empresas e as que os ricos e poderosos não querem que se saibam. Sem esse segundo tipo de notícias, estamos a ser geridos, não informados. À medida que Assange se aproxima da sua última tentativa, no próximo mês, de impedir a sua extradição para os Estados Unidos, a cobertura da guerra em Gaza mostra o quanto ainda precisamos de denunciantes e daqueles que estão dispostos a relatar o que eles dizem.

Ensaio originalmente publicado na Jacobin Magazine.