Doutorando em História na FCSH - NOVA. É investigador no Instituto de História Contemporânea (IHC) da mesma universidade, encontrando-se a desenvolver o projeto doutoral “Vou à bola! Culturas Adeptas, Economia Política e Estado na História do Futebol em Portugal (1910-2020)”.

O futebol e as gangrenas liberticidas: pensar o jogo e a ação política a partir de Paris

O Paris Saint Germain é um dos clubes mais conhecidos a nível mundial, fruto do investimento subsidiado pela empresa Qatar Sports Investments, ligada ao governo qatari. Várias figuras bem conhecidas da cidade tornaram-se parte da comunidade adepta do clube desde cedo, mas a tensão e demais contradições inerentes ao processo de mercantilização do futebol afetou as próprias culturas adeptas do clube.

Ensaio
29 Fevereiro 2024

Para boa parte dos amantes da cultura de bancada, pensar sobre o mundo do futebol em Paris é pensar no Paris Saint-Germain (PSG) e nos seus icónicos grupos de apoio, tanto inseridos na Kop de Bolougne como na Virage Auteuil, que tanta vida deram ao ambiente do Parc des Princes. Para outros portugueses, que se dedicam a observar mais aquilo que se passa dentro do relvado, talvez lhes venha à memória a figura de Pedro Pauleta, um dos jogadores mais acarinhados pelos adeptos na capital francesa, ou mesmo do recém falecido treinador e sindicalista Artur Jorge.

O PSG é hoje um dos clubes mais conhecidos a nível mundial, fruto do investimento subsidiado pela empresa Qatar Sports Investments (QSI), ligada ao governo qatari, desde 2011. Pela mão de Nasser Al-Khelaifi, CEO da QSI, empresa que atualmente detém aqui bem perto 21,67% do capital social do Sporting Clube de Braga, vários foram os nomes sonantes que assinaram pelo clube parisiense (de  Ibrahimovich, passando por Cavani e Beckham a Messi, Neymar e Mbappé, entre muitos outros). 

No entanto, a história do PSG, criado em 1970 a partir da fusão entre dois pequenos clubes locais (o Paris Football Club e o State Saint-Germain), nem sempre foi de intenso glamour, ainda que os resultados comerciais advindos da sua recente estratégia de marketing nos façam pensar o contrário. A primeira década da sua existência ficou marcada por uma série de altos e baixos (passariam pela 3ª e 2ª divisões) que, nos anos 1980, acabaria por compensar: a sua perseverança trouxe ao clube a primeira Taça de França, em 1982, e o tão desejado principal campeonato francês, na temporada de 1985/1986. A década de 1990 apenas confirmou o estatuto de clube respeitável, sobretudo no seu contexto nacional, mas também fora de portas. Em 1996, os parisienses ganharam, por fim, a Taça dos Clubes Vencedores das Taças, frente aos austríacos do Rapid de Viena.

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Une aventure avec un prince

Várias figuras bem conhecidas da cidade tornaram-se parte da comunidade adepta do PSG desde cedo, ajudando parcialmente o clube a sedimentar as suas raízes na cidade. Pensamos em pessoas como Daniel Hechter, conhecido designer, ligado a filmes como Une Parisienne (1957), no qual pôde vestir com as suas criações a icónica atriz Brigitte Bardot, e que imaginou o clássico equipamento do clube. Ou em Jean-Paul Belmondo, ator-estrela do mundo pop francês e um dos fundadores do clube, tendo-lhe sido mesmo feita referência no tifo planeado pelos membros do Collectif Ultras Paris (CUP) e exibido frente ao AC Milan, no final de outubro do ano passado. No entanto, a popularização do PSG teve um desenrolar progressivo. Esta popularização tanto acompanha a própria história de paulatino sucesso do clube como se deve a múltiplas campanhas que, durante os anos 1970 e 1980, procuraram promover a acessibilidade aos jogos do clube, visando sobretudo os mais jovens da região.

Assim, não é de estranhar que seja precisamente nos finais de 1970 a que assistimos ao despontar, no topo sul do estádio, da cenografia corporal que crescia e acalentava a equipa. Conhecido como Kop of Boulogne (KoB), o topo, ativado pela performance dos que o compunham, virado para a localidade parisiense de Boulogne, tornou-se bastante famoso, nomeadamente a partir dos anos 1980, por uma postura irreverente que, não raras vezes, perpassava o simples apoio vocal. Influenciados em parte pela cultura hooliganística inglesa, vários grupos foram ganhando notoriedade no topo. Entre os mais conhecidos tínhamos os Bolougne Boys, fundado em 1985, tido como o primeiro grupo de apoio a incorporar por estas bandas o estilo italiano da subcultura ultra e aqueles que, mais tarde, comandariam o destino da bancada. Ainda assim, tantos outros grupos surgiram por esta mesma época: podemos apontar, a título de exemplo, os Gavroches, os Rangers, os Firebirds, os Commando Pirate ou a Casual Firm Paris.

Culminando com a entrada do investimento dos donos do Canal+, um grupo de comunicação francês, já na década de 1990, semelhante ao que aconteceu noutras geografias (lembremo-nos dos investimentos da Olivedesportos em vários clubes portugueses) durante o processo de mediatização do jogo tornado espetáculo, o clube encetou uma promoção ao apoio organizado, agora na bancada oposta, a norte, também atrás da baliza, que passaria à história como Virage Auteuil. Em 1991, dois dos grupos que marcaram o apoio no Parc des Princes foram fundados: os Supras Auteuil e os Lutèce Falco. Dois anos depois, nasciam igualmente os Tigris Mystic.

Não nos pretendemos alongar pormenorizadamente sobre as disputas bem conhecidas entre os diferentes grupos de ambas as curvas parisienses. Se os elementos da KoB foram sendo conotados com a extrema-direita, tendo nas suas fileiras vários jovens associados à cultura bonehead, os membros da Virage Auteuil estariam mais politicamente inclinados à esquerda, sendo certo o cultivo de uma postura mais aberta à inclusão da juventude não-branca e imigrante. O choque foi inevitável.

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ensaio_Paris Saint Germain

Talvez pela sua história, mas sobretudo pelo desejo de melhor compreender a história e a realidade do panorama das bancadas de Paris aos dias que correm e  como se  conjugam com as notas milionárias do futebol do século XXI, fomos tomar o pulso à cidade e aos adeptos do PSG, junto do CUP, em setembro passado. Fizemo-lo a partir daquele que é um dos grandes clássicos europeus: o jogo entre o Paris Saint-Germain e o Olympique de Marseille. 

Não desejando desviar-nos do tópico, julgamos importante ir fazendo nota de alguns dos momentos que fomos vivendo pelas ruas da cidade, nos dias prévios ao jogo e, mais tarde, durante o próprio jogo. Chegados a Paris, aproveitando um setembro ainda soalheiro, fomos amigavelmente recebidos por Levon e Tim junto à Praça da Bastilha, lugar simbólico da Revolução Francesa do século XVIII. Após desfrutarmos do lifestyle parisiense por algumas horas, com os seus típicos cafés virados para a rua que convidam à troca de olhares e ao diálogo com o próximo, o plano da tarde alterou-se bruscamente. Afinal, era imperativo tomar parte de uma festa de música eletrónica a acontecer na street e, claro, fazer-nos notar num dos vários protestos a acontecer por toda a França contra a violência policial (no rescaldo do assassinato do jovem Nahel por parte de um polícia, que originou uma onda de indignação e de revolta pelo país). 

Ah, a vida parisiense! Nada melhor do que, no decurso de um par de horas, passarmos de um passeio relaxante junto ao rio Sena para depois irmos casualmente libertar ao mundo a nossa raiva (in)justificada, enquanto escutamos um minimal techno como som de fundo. Horas depois, ao final do dia, já em modo de preparação para o clássico, percebemos que a manifestação da qual fizemos parte se tornara alvo de discussão nacional. Ao que tudo indica, e durante os protestos na cidade, um polícia teria sacado e apontado a sua arma de serviço aos manifestantes, o que levou a um escalar da violência. As conversas de sofá prolongaram-se noite dentro, entre a partilha de opiniões sobre a brutalidade policial e o que se haveria de esperar do grande jogo do dia seguinte.

Devaneios à parte, o legado da participação fervorosa naquilo que poderemos denominar enquanto “ação política”, por parte dos jovens e menos jovens que por aqui habitam, obviamente que terá a sua influência na hora de acalentar as diferentes disputas de poder, simbólicas ou não, que nos saltam à vista quando nos inteiramos das diferentes histórias de bancada em Paris. Disto mesmo nos damos conta quando aprofundamos a nossa conversa com Tim. 

Membro de um antigo grupo de apoio ao PSG, que em há alguns meses cessou a sua atividade, Tim conta-nos que, pessoalmente, dividiria a história das bancadas parisienses em três períodos. Se de um ponto de vista global, “o movimento ultra desenvolveu-se bastante nos últimos 20 anos”, tendo em conta que a assistência foi aumentando e que os grupos estão “mais estruturados”, por outro lado esse processo foi acompanhado por um “aumento da repressão”. Certo é que, para Tim, entre 2000 e 2010, ainda que o seu estádio não estivesse sempre cheio, devido às fracas performances da equipa, a liberdade nas bancadas era “real”, havendo a possibilidade de, “a partir de um ponto de vista ultra, conseguirmos fazer o que quiséssemos, desde do uso de pirotecnia até à exibição de frases contra a própria direção do clube”. 

Apesar de alguma descrença e da perseguição altamente repressora por parte do clube e do Estado, vários adeptos mais fanáticos lutaram pela sua liberdade em apoiar.

O segundo período poderia ser dividido entre 2010 e 2016, já depois da aplicação do plano Robin Leproux (presidente do clube a partir de 2009), no qual foram banidos do estádio centenas de adeptos e obrigados a cessar atividade, por intervenção estatal, os grupos de apoio da KoB e da Virage Auteuil (anos antes, os Tigris já teriam cessado atividade, após uma série de confrontos violentos). O plano Leproux foi em parte sustentado pelo mediatismo que a morte de Yann, membro da Casual Firm, causou em março de 2010, após uma rixa que opôs os ultras da Virage e da KoB, alegadamente por diversas divergências (incluindo políticas). 

Tim afirma-nos que este período pode ser designado enquanto um “período de protesto”. Desde cedo, foram vários os adeptos que se opuseram à forma desenquadrada que levou ao afastamento de vários associados do clube do seu próprio estádio, assim como se mostraram contra as medidas arbitrárias do novo plano securitário, entre as quais a obrigação de aceitar um qualquer lugar aleatório decidido pelo clube na compra do bilhete de época anual ou de um ingresso de associado em dia de jogo (membros da Virage poderiam agora ir parar à KoB e vice-versa, por exemplo). Diga-se, em bom rigor, que essas mesmas medidas não acontecem num vácuo histórico: a elas devemos somar as diferentes regulamentações, introduzidas em 2006, sobre o controlo de “comportamentos desviantes” no mundo do desporto francês, tomando estas como inspirações nas práticas legais e administrativas aplicadas ao meio urbano depois das célebres “desordens” urbanas/suburbanas de novembro de 2005.  

O tio de Tim, segundo nos diz, deixou justamente de frequentar o estádio porque, apesar de ocupar o mesmo lugar desde a década de 1990, lhe foi atribuído um outro sítio que o afastou da sua visão de sempre e, mais importante, dos seus companheiros de bancada. Para Tim, o desejo do clube era mesmo “matar qualquer movimento organizado”, uma vez que, “se trouxesses, por exemplo, um simples cachecol afeto a um dos grupos de apoio, a tua entrada seria barrada”. A atmosfera desmereceu por estes anos: não houve tifos realizados, não se vislumbrava qualquer espetáculo pirotécnico; o “estádio morreu”. 

Fora do recinto, no entanto, refere que o caso foi ligeiramente diferente. Apesar de alguma descrença e da perseguição altamente repressora por parte do clube e do Estado, vários adeptos mais fanáticos lutaram pela sua liberdade em apoiar. Exemplo disto foi a criação de alguns “sindicatos” enquanto via de protesto (Catégorie D, Le Parc C’était Mieux Avant, Les Brothers, Paname United Colors), do surgimento de novos grupos de apoio entre 2010 e 2013 (Liberté Pour les Abonnés, Nautecia, Le Combat Continue, Parias Cohortis) e até mesmo a continuação da atividade por alguns outros (Lista Nera Paris e K-Soce Team). Depois disto, chegaria a terceira e atual fase, de 2016 até hoje. Tim lembra-nos que, “após vários anos de protesto, conseguimos formar o Collectif Ultra Paris (CUP), depois de difíceis negociações com o clube”. 

Ainda que com várias restrições impostas pela polícia e pelo clube (supostamente temporárias, mas que se foram perpetuando no tempo), entre elas a total liberdade de deslocação, o nosso companheiro refere que este foi, sem dúvida, um “renascimento” para todos os envolvidos.

Jusqu'ici tout va bien

Era certo que tínhamos de ver toda esta mixórdia flamejante com os nossos olhos e, no dia seguinte, lá nos fizemos ao caminho para nos encontrarmos com outro amigo, Pierre, que nos garantiria entrada na Virage Auteuil para este jogo de loucos. Afinal, estava em causa não apenas a honra do clube e da cidade, mas a própria luta pelo topo da tabela classificativa.

Após uma paragem numa pequena mercearia perto do estádio, com a sua entrada forrada a stickers afetos aos grupos parisienses, com o intuito de nos abastecermos de alguns refrescos, seguimos para o primeiro checkpoint. Sim, há vários checkpoints, com imensas grades e agentes de segurança à mistura, antes de conseguirmos “estacionar” nos cafés colados ao Parc des Princes. A cerveja estava mais cara e cá fora já se ouvia barulho vindo da Virage. Decidimos enfrentar os checkpoints seguintes e, depois de uma revista exaustiva, lá nos conseguimos esgueirar para o nosso setor. 

Antes, no entanto, Pierre fez questão de me fazer uma pequena visita guiada pelos túneis e corredores que dariam acesso às bancadas, pois, ao que parece, também por aqui podemos sentir a dedicação e a criatividade dos adeptos. Entre vários dos tags e graffitis que dão cor aos acessos, e onde encontrámos distintas referências a vários pontos históricos da cidade, a figuras carismáticas do clube, aos diferentes grupos de apoio do CUP e à imagética pop, dois conjuntos saltaram-me à vista. 

Para Tim, o desejo do clube era mesmo “matar qualquer movimento organizado”, uma vez que, “se trouxesses, por exemplo, um simples cachecol afeto a um dos grupos de apoio, a tua entrada seria barrada”. A atmosfera desmereceu por estes anos: não houve tifos realizados, não se vislumbrava qualquer espetáculo pirotécnico; o “estádio morreu”. 

A primeira intervenção visual mostra três jovens, vestidos a rigor com as cores do clube da capital, a interpelarem-nos com um olhar desafiante (dois deles seguram uma tocha nas suas mãos), sob a imponência de uma Torre Eiffel reimaginada. Todo este conjunto remete-nos para os três jovens protagonistas do filme La Haine (1995), película francesa que nos oferece uma visão crítica sobre a violência policial, a desigualdade social e a discriminação racial, mormente sentida nos subúrbios da cidade de Paris. Lembra-vos de algo? 

O segundo conjunto presta homenagem a James, antigo membro do grupo Liberté Pour les Abonnés (LPA Paris) e respeitado porta-voz da Association Nationale des Supporters (ANS), que faleceu, infelizmente, durante 2020. A sua boa-disposição que trespassa na imagem desenhada é acompanhada por uma das suas causas de sempre: nunca conseguirão banir um adepto! Horas antes, Tim já me tinha confidenciado que um dos momentos mais marcantes que viveu nesta bancada teria sido precisamente quando o clube permitiu que prestassem homenagem a James, reservando o estádio apenas para alguns adeptos e, especialmente, para a sua família, que pôde então assistir à exposição de um tifo em sua memória.

Devemos mencionar que, semanas depois de termos visitado estes acessos na bancada Auteuil, a organização do CUP decidiu apagar todas as referências aos grupos dissidentes do seu coletivo. Sorte a nossa. Ao que parece, depois da auto-dissolução dos Liberté Pour Les Abonnés no final da época passada e após uma série de confrontos entre eles e os grupos que comandam a curva (como  os K-Soce Team), há uns tempos os Nautecia também anunciaram  o fim da sua atividade no coletivo, alegando divergências irremediáveis com a cúpula do CUP. 

Alguns ex-membros destes grupos revelaram-nos que a razão para a sua debandada se deve, em parte, ao espírito de protesto que nunca saiu da alma dos seus grupos, criados durante a altura de maior repressão sobre as bancadas parisienses. Como tal, nunca deixariam de criticar a direção do seu clube, sobretudo quando a promiscuidade desta com o mundo do negócio puro e duro prejudica a essência do próprio PSG. Ao que parece, tal como noutros contextos, os grupos com maior poder (físico e simbólico), apesar de cultivarem um renovado sentido de apoio à equipa, servem intermitentemente de braço armado daqueles que comandam os destinos do clube, restringindo a livre expressão dos que diferem na sua visão sobre o futuro desse mesmo clube. 

Com isto, sobram no coletivo os seguintes grupos: K-Soce Team, Le Combat Continue, Parias Cohortis, Urban Paris e Beriz Crew. O nosso companheiro Tim, no entanto, deixou escapar que os membros dos grupos dissolvidos não estão paralisados, bem pelo contrário. Segundo contou, vários grupos de dissidentes têm marcado a sua presença nos jogos das equipas de formação (nas recentes deslocações a Le Havre e a Lens, por exemplo), “adeptos que, no fundo, foram banidos do seu próprio estádio por se oporem à gestão atual do seu clube, tendo assim o direito de lutar pelos seus direitos e pela sua liberdade; não nos podemos esquecer que os parisienses são conhecidos pela sua faceta rebelde e insubmissa”. 

Alguns banners exibidos numa destas deslocações parecem mesmo ter servido para responder à letra às acusações que os líderes do CUP fizeram aos membros dissidentes – acusando-os, em comunicado, de desejarem reavivar nas suas bancadas uma “gangrena hooliganística”. Numa dessas frases poderíamos ler: “Nous n’accepterons jamais le retour d’une grangrene liberticide a Paris”, ou por outras palavras, não se esqueçam de que há sempre aqueles que, por toda a sociedade, lutam contra qualquer tipo de gangrena liberticida. Como nos foi relembrado pelo nosso amigo, “Paris é uma cidade com mais de dois mil anos, e a era qatari não representa nada na nossa história”. Se aqui nos é permitido comparar, talvez seja este um espírito semelhante que tem guiado alguns grupos organizados de adeptos, por exemplo, em Braga. Basta lembrar os protestos protagonizados pelos ultras Red Boys e Bracara Legion ao longo dos últimos meses; numa altura de venda de algum capital social do seu clube à QSI, essas claques tanto nos chamam à atenção sobre a pertinência da defesa “por um futebol associativo e popular” contra o “futebol-negócio”, mobilizando até o ‘princípio 50+1’ tão conhecido no contexto alemão, como acusam a direção do seu clube de “dividir para reinar”.

Se aqui nos é permitido comparar, talvez seja este um espírito semelhante que tem guiado alguns grupos organizados de adeptos, por exemplo, em Braga. Basta lembrar os protestos protagonizados pelos ultras Red Boys e Bracara Legion ao longo dos últimos meses. 

Já depois de termos pagado dez euros por um simples hambúrguer, subimos finalmente ao topo da Virage para aí nos instalarmos para a partida. O ambiente era arrepiante. Os atletas marselheses, durante o seu aquecimento, foram uma e outra vez insultados; os que defendiam as cores do PSG receberam amor como nunca. Vimos um tifo a ser preparado e sentimos que ia ser especial. Pierre avisara-nos anteriormente sobre a coreografia a ser realizada: seria exposta não apenas na bancada superior, mas também na parte central das bancadas. A expectativa era muita e o líder da curva pediu para que todos colaborassem. Quem não o ouviu parece ter sido os próprios promotores do jogo: acabamos a assistir a um exemplo vivo sobre como estragar meses de muito trabalho a pro bono ao se desligar os holofotes do estádio para, em seguida, apresentar um jogo de luzes que mais nos remete para um qualquer pré-evento norte-americano da NBA ou da NFL do que outra coisa.

Cereja no topo do bolo: uma canção qualquer da moda que não conseguimos apanhar (estávamos demasiado ocupados a olhar cada falha de tinta do tecido sobre as nossas cabeças que nos fazia refletir sobre as muitas horas de camaradagem que permitiram a construção deste imponente cenário visual) abafa, através do speaker do estádio, aquele que era o apoio vocal ensurdecedor até então dado ao plantel recheado de estrelas. Talvez do Parc des Princes ao Estádio da Luz a distância não seja assim tão grande. 

Felizmente, com a ajuda da exibição da equipa, os adeptos espalhados pelas bancadas fizeram-se sentir ferozmente durante todo o encontro. Um casal à minha frente, caucasianos, na casa dos seus 60 anos de idade, muito provavelmente de uma classe média alta, abraçava companheiros (des)conhecidos, não-brancos, que, possivelmente partindo de outras trajetórias de vida, filhos de uma 2ª, 3ª ou 4ª geração imigrante, deliravam a cada golo marcado em prol do clube da cidade que os viu nascer e por cada tocha acesa. Todo o estádio acompanhava a Virage, quer nos cânticos que visavam levar a equipa para a frente, quer nos insultos (alguns homofóbicos, que levaram mesmo à interdição da bancada, algumas semanas depois, pela Liga Francesa) à equipa adversária. Demos várias vezes por nós a acompanhar o ritmo que fazia literalmente a estrutura do estádio estremecer.

Final do jogo e vitória esclarecedora da equipa da casa. Demoramos mais de meia hora para conseguir sair do setor, uma vez que a festa irrompia por cada acesso, túnel e escadaria do estádio. Todo este sentimento acabaria por transbordar para as zonas envolventes do recinto: vimos várias tochas acesas em aglomerados que tomavam conta de postes elétricos e estruturas que, de alguma forma, ofereciam um género de palco improvisado a esta disrupção efusiva no espaço urbano, ainda que controlada pelo olhar atento da polícia de choque. Despedimo-nos do Pierre, apanhamos o metro e perdemo-nos a falar com Tim. Comentamos o facto de vermos imensos “adeptos-turistas”, o que serviu de mote para o nosso companheiro nos esclarecer que, para muitos dos ultras, esses são conhecidos como os “neo-adeptos” ou, melhor, os “lynx”, numa referência à mascote do clube que surgiu depois do plano Leproux. 

Questionado sobre o que pensava da voz crítica que pode florescer ou não das bancadas parisienses, Tim afirmou que “aqueles que estão aqui apenas para ver e tirar fotos com as estrelas, hoje a maioria do Parc des Princes, não querem saber do rumo do clube”. Mais à frente, de forma categórica, concluiu que “os lynx se estão a borrifar para os restantes adeptos do PSG colocados em listas-negras pelo próprio clube, desde que consigam ver o seu Mbappé; eles não se interessam, por exemplo, pelo estilo e pelas cores históricas da nossa camisola ou pelas mudanças no emblema histórico do nosso clube (que com os qatari perdeu os elementos visuais que o ligavam à localidade de Saint-Germain), desde que atrás esteja escrito Neymar ou Messi”. 

O desabafo não parou por aqui e Tim mencionou que “a intoxicação pelos bons resultados e por todo o consumismo está a chegar a vários adeptos do PSG, quando dispomos de tantos temas para resolver ou por defender, tais como o naming do estádio, a nossa camisola histórica e o nosso emblema de sempre, os preços exorbitantes dos bilhetes, o abandono da língua francesa nos comunicados do clube e, sobretudo, todos os direitos e liberdades dos adeptos”. 

Irónico, mas irritante, é que “o clube está extremamente atento quando um qualquer turista faz um comentário negativo, nas redes sociais, sobre a sua experiência no estádio, quando as exigências dos verdadeiros adeptos do PSG continuam a ser ignoradas”. Talvez como sinal de esperança, todavia, Tim fez questão de mencionar, mais uma vez, que outros adeptos continuavam a exercitar a sua lucidez crítica: “alguns têm boicotado o seu apoio desde o plano Leproux, o que coincidiu com a chegada dos qataris”. 

É graças à resiliência deste conjunto de vozes que, aliás, a “camisola hechter” (assim é conhecida a histórica jersey desenhada por Daniel Hechter, já apontada neste texto) teve o seu efémero ressurgimento na temporada de 2020/2021.

Tout appartient à l’avenir

Em bom rigor, podemos resumir aquilo a que pudemos assistir nas bancadas e, durante estes dias, discutir com os nossos amigos parisienses como a pura tensão e demais contradições inerentes ao processo de mercantilização do futebol – mais um campo tomado pela engrenagem da bem oleada máquina do modelo capitalista obsessivamente virado para o lucro –, que afeta as próprias culturas adeptas de um qualquer clube. Em conversa com Levon, deixei no ar se existiria algum tipo de inevitabilidade histórica neste processo que deixa necessariamente marcas profundas na forma como as comunidades tendem a viver o mundo do futebol. Não chegámos a nenhuma conclusão definitiva, mas, por sua sugestão, encontrámos um novo destino na cidade que deveríamos obrigatoriamente explorar: o Ménilmontant Football Club 1871.

Em poucos minutos demos por nós em viagem, juntamente com um grupo misto, entre rapazes e raparigas, alguns deles frequentadores ou ex-frequentadores do Parc des Princes, rumo a um pequeníssimo estádio (Centre Sportif Louis Lumière) fora do centro da cidade, na zona de Montreuil. Ao chegarmos, o primeiro grande contraste, quando comparando com o que presenciámos no Parc des Princes, relaciona-se  desde logo com a casualidade e liberdade que pudemos aproveitar para entrar, circular e, claro, permanecer no estádio – várias foram as pessoas com quem nos cruzámos que ora se apressavam para estacionar as suas bicicletas junto aos portões da entrada para irem ver a bola, ora faziam o caminho inverso e abandonavam o local, talvez porque o treino da modalidade que praticam no recinto terminara e era hora de dar espaço ao jogo do acarinhado Ménil FC. 

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De admissão gratuita, e tão natural quanto o término de um passeio citadino que agora se estendia e terminava nas bancadas de betão, fomos positivamente surpreendidos pela quantidade de pessoas que ali estavam em comunhão, sem a necessidade da vigilância policial sentida no Parc des Princes, num final de tarde frio, para ver um clube amador jogar. Agarramos a nossa lata de cerveja (aqui vendida por alguns adeptos da equipa, a pouco mais de 50 cêntimos, como forma de angariar dinheiro para a sua causa) e instalamo-nos como se esta fosse a nossa casa de infância. Saltou-nos à vista, num primeiro momento, um pequeno estandarte no qual poderíamos ler “still not loving police”; copy that, as próximas horas iam ser radicalmente diferentes do que experienciámos até aqui.

Pouco ligando ao que se passava dentro das quatro linhas, mas sempre apoiando incessantemente com a sua voz e através de pequenas bandeiras, observámos o grupo que puxava pela equipa da casa, cujas cores – o vermelho e o preto – nos remetem igualmente para uma atitude de desafio da ordem e de inquietude face a uma série de injustiças sociais. Disto logo tivemos a prova quando se cantou a alto e bom som “SIAMO TUTTI ANTIFASCISTI!”, desmontando a fábula neutralizante de que o desporto não é política. Não resistimos e juntámo-nos aos elementos do grupo.

Antes de conseguirmos aprofundar qualquer tipo de conversa, notámos que o movimento ao intervalo era muito e bastante organizado. Minutos depois, as dúvidas foram desfeitas: pudemos assistir a um pequeno tifo – no qual conseguimos ler o mote “Football Populaire” –, juntamente com a ignição de vários dispositivos pirotécnicos, que serão usados como um apoio extra à equipa. Após um dos poucos registos fotográficos que conseguimos fazer para a posterioridade, fomos interpelados por um membro do grupo de apoio que, temendo a exposição da sua cara, nos perguntou sobre o nosso propósito. Ainda bem que o fez. Com a ajuda do nosso amigo Levon no desbloqueio da tertúlia, esta era a deixa para nos inteirarmos sobre a realidade deste curioso clube plantado nos arrabaldes de Paris.

Segundo conseguimos apurar, o Ménil FC foi criado em 2014 e reivindica-se de uma identidade popular, anticapitalista e antifascista, seguindo os desígnios de uma autogestão horizontal e participada, onde cada membro tem sempre uma palavra a dizer e é dono do destino do seu clube a 100%. O seu nome, Ménilmontant 1871, faz referência a um histórico bairro anarquista de Paris e à célebre Comuna de Paris, despontada na segunda metade do século XIX; já no seu emblema, podemos denotar não só uma alusão à capital de França, mas também à própria história insurrecional da Comuna.

A conversa tornou-se ainda mais interessante quando conseguimos a perspetiva de um membro destacado do clube. A sua visão sobre as outras agremiações desportivas da cidade é facilmente resumível: “o PSG dá corpo àquilo contra o qual lutamos aqui, apesar de ser o clube que muitos de nós apoiava (e alguns ainda apoiam) antes da criação do Ménil FC; já o Red Star FC, apesar de dimensão menor, é um clube profissional que encaixa perfeitamente no modelo do futebol-negócio (o seu presidente tentou por diversas vezes deslocar o clube do seu histórico estádio, antes de fomentar a ideia de que o melhor para o destino da coletividade seria a sua venda a um fundo de investimento norte-americano)”. Mais tarde, aprofundou: “os adeptos do Red Star estão a lutar contra tudo isto e estão politicamente comprometidos, mas o seu clube não é um modelo alternativo, pelo contrário; outros, tais como o Paris FC ou o Créteil, são clubes que também cumprem todos os habituais requisitos do futebol moderno”. 

Observámos o grupo que puxava pela equipa da casa, de cores vermelho e o preto, cores que nos remetem  para uma atitude de desafio da ordem e de inquietude face a uma série de injustiças sociais. Disto logo tivemos a prova quando se cantou em alto e bom som “SIAMO TUTTI ANTIFASCISTI!”, desmontando a fábula neutralizante de que o desporto não é política.

 

Visto de fora, o Ménil FC pode parecer-nos apenas mais um clube de nicho, mas a verdade é que os seus intuitos estão bem traçados e apontam para um caminho ligeiramente diferente do comum. E não somos nós que o dizemos: “o projeto cresceu com o objetivo de oferecer uma diferente forma de ação política, afastando-se das formas clássicas de ativismo (sindicatos, greves, demonstrações), e de brindar a todos com um clube acessível e ético; no geral, quisemos deixar espaço para que os adeptos de futebol se pudessem envolver mais na política e, inversamente, que os ativistas descobrissem um modelo alternativo de desporto”.

Saídos de um universo dominado pela subcultura ultra (neste caso, a Virage Auteuil), tivemos de perguntar sobre a influência dessa mesma subcultura aqui no Ménil. A resposta foi, no mínimo, estimulante: “mesmo que sejamos inspirados pela cultura ultra, não nos consideramos ultras; não pretendemos sê-lo pela simples razão de que o clube a nós nos pertence, pois não somos um corpo independente do clube, como a maioria dos grupos organizados o são”. Contudo, não desdenham o movimento: “apesar de tudo, identificamo-nos com muitos dos valores do mundo ultra: o futebol enquanto desporto popular, os adeptos como agentes relevantes no meio e não como consumidores, o apoio às nossas equipas através de diferentes atividades visuais e vocais (tifos, bandeiras, cânticos, etc)”.

A nossa imaginação pode facilmente levar-nos a antever uma miríade de problemas junto das instituições centrais. Para desvendar esta dúvida que nos assolava, quisemos saber quais os principais problemas que tiveram desde a criação do clube. A resposta não demorou: “temos tido diversos problemas com a Federação Francesa de Futebol, uma vez que o nosso modelo entra em direto conflito com algumas das suas regras federativas, nomeadamente o nosso envolvimento político e o facto de não termos identificado claramente líderes e de todas as decisões serem tomadas coletivamente (fomos obrigados a declarar um presidente, um tesoureiro e um secretário, mas para nós são apenas nomes num pedaço de papel)”. Já junto do Estado, os problemas são de diferente natureza, dizendo respeito, na sua maioria, a multas referentes ao uso de pirotecnia nas bancadas e à exibição de uma coreografia que, em 2019, gerou uma controvérsia generalizada. 

Neste último episódio, os nossos interlocutores referiram-se a um tifo no qual ostentaram um carro da polícia em chamas, acompanhado por uma frase do rapper parisiense Hugo TSR: “Ici on rêve que les poulets rôtissent”, ou, em português, “aqui sonhamos que as galinhas assem”. Contaram-nos, assim, que um site conotado com a extrema-direita “escreveu um artigo sobre o tifo e, a partir deste, um dos sindicatos da polícia congeminou uma queixa formal contra o clube”. Felizmente, e apesar de “convocados pela polícia”, nada mais aconteceu, ainda que a “federação nos tenha multado em 800 euros (metade do nosso orçamento à época) e, depois, banido o clube do nosso estádio em Bobigny”, com a justificação que se fez apologia ao ódio.

Antes do término da partida, que teria como resultado uma derrota para a equipa rubro-negra, damos por nós a observar uma cena, contrariamente ao que íamos assistindo em recintos hiper-controlados de determinados clubes, praticamente impossível de testemunhar num qualquer estádio perto de nós: um pequeno rebento com os seus 9/10 anos de idade pulava virado para nós em cima do banco de suplentes, vociferando os cânticos que vinham da bancada, enquanto fazia questão de acompanhar o ritmo com palmas. Perto de si, na pista de atletismo que hoje raramente encontramos nos estádios de futebol modernos e estandardizados, corria uma outra criança, esta talvez na casa dos 4/5 anos de idade, atrás de uma bola que lhe teimava em escapar, fruto dos toques habilidosos que um adulto dava na mesma. 

Se este poderá ter sido um dos momentos mais belos desta nossa viagem, qual seria o melhor episódio já vivido pelos membros do Menil FC junto da sua equipa? Antes da despedida final, tivemos a oportunidade de nos contemplar com uma possível resposta a essa questão: “há muitos momentos, mas julgo que o jogo de homenagem ao nosso camarada Clément Méric [assassinado por elementos da extrema-direita em 2013], nos dez anos da sua morte, é um dos grandiosos momentos da nossa história”. Isto porque, acrescentaram, essa homenagem, depois de meses de preparação, culminou com a vitória das duas equipas femininas do clube (de sub-15 e seniores), numa bancada a abarrotar: “foi o melhor tributo que poderíamos dar ao Clément, uma pessoa que vários daqui conheciam bem, e cujo sonho antifascista tentamos manter vivo através do nosso clube”. 

Em jeito de adeus, quisemos saber quais os objetivos a curto e a longo prazo para o Ménil. As respostas foram diretas: em primeiro lugar, “garantir que o nosso projeto se sustente, sobretudo continuando a conseguir jogar aqui na cidade”; depois, em segundo lugar, apesar do futuro ser incerto, “continuarmos a luta à nossa escala, sem fazer concessões ou desvios dos nossos ideais antifascistas e anticapitalistas”. De facto, quanto a nós, não nos restaram dúvidas de que este caloroso projeto associativo parece encarnar o espírito subversivo, transgressivo e reflexivo da histórica Comuna. Afinal de contas, e ao que consta, ainda há dois lados da barricada.

Quando demos por nós era hora de pegar na trouxa e voltar para terras lusas. Não o fizemos sem antes trocarmos umas pequenas palavras finais com Tim. O fim de semana tinha sido longo, as analogias elaboradas na nossa cabeça com o que vivemos nas bancadas portuguesas tinham sido muitas e só me restava apreender aquilo que ele achava da realidade desportiva/associativa deste nosso retângulo à beira-mar. Tim foi perentório: “admito que da última vez que viajei para Portugal (em outubro de 2022, para o jogo frente ao SL Benfica) não fiquei com boa memória da vossa polícia”. 

A conversa tornou-se ainda mais interessante quando conseguimos a perspetiva de um membro destacado do clube. A sua visão sobre as outras agremiações desportivas da cidade é facilmente resumível: “o PSG dá corpo àquilo contra o qual lutamos aqui, apesar de ser o clube que muitos de nós apoiava.

Entre risos, talvez por sabermos o que a casa gasta, preferimos desviar a conversa para os grupos de apoio. A resposta poderá dar-nos algum ânimo, caso precisemos: “Confesso que conheço mais a realidade dos grupos dos ‘três grandes’, ainda que reconheça o trabalho interessante que muitos grupos, mesmo de divisões secundárias, por aí fazem. Mas, do que consigo compreender, parece existir uma enorme repressão sobre os adeptos portugueses (sobretudo ao nível do uso da pirotecnia), ainda que a mesma não tenha chegado, ao contrário daqui, às restrições sobre as deslocações a terrenos adversários; mais do que isto, parece-me que a vossa associação nacional (a Associação Portuguesa de Defesa do Adepto) tem demonstrado imensa maturidade, conseguindo que os diferentes grupos de apoio se unam para defender os seus direitos, pelo que espero que a ‘cena portuguesa’ continue o seu desenvolvimento”. Pessoalmente, também esperamos que sim – que algum do afeto aqui transposto para este texto-devaneio nos dê a pólvora necessária para fazer cumprir, por estes lados, essa ideia tão radical quanto humana de desejarmos uma maior liberdade, justiça e alento criativo nas ruas e nas bancadas.

Tínhamos algumas horas de sobra antes de nos dirigirmos para o aeroporto e resolvemos deambular pela cidade, junto ao Sena, da mesma forma como iniciámos a nossa viagem. Foi perto de uma Notre Dame em obras, por causa do incêndio de 2019, que acabámos por entrar numa pequena livraria. Neste acolhedor espaço, repleto de livros e de ilustrações vintage, encontrámos uma versão francesa do livro-ensaio “Murar o Medo”, de Mia Couto. Lá oferecemos este souvenir a nós mesmos e devorámo-lo ainda junto à ponte Saint-Michel, onde pudemos descobrir uma placa que evoca a sangrenta repressão policial, de 17 de outubro de 1961, sobre uma pacífica manifestação, em Paris, em prol da causa argelina. 

Como não temos grande jeito para conclusões, partilhamos algumas das palavras de Couto que marcaram a nossa despedida da cidade do amor: “No horizonte havia mais muros do que estradas. Nessa altura, eu já desconfiava de uma outra verdade: há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas”.

*Foram utilizados pseudónimos quando nos referirmos aos companheiros e intervenientes nesta viagem, uma vez que desejamos respeitar e proteger as respetivas identidades.