Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Integra a equipa de coordenação do Observatório do Trauma - CES. Doutorada em Pós-colonialismos e Cidadania Global. O seu estudo sobre o Massacre de Batepá, em São Tomé e Príncipe, foi publicado em livro pela Afrontamento (2018). 

As múltiplas vidas de Batepá: memórias de um massacre colonial em São Tomé e Príncipe

3 de fevereiro é o dia do Massacre de Batepá, que cumpre agora 70 anos. Tido como o episódio mais doloroso da história de São Tomé e Príncipe, é, também, por muitos considerado o momento fundador do nacionalismo são-tomense. Através das múltiplas vidas de Batepá emergem outras memórias e negociações simbólicas, com as quais os são-tomenses têm procurado inscrever o seu lugar nesta história.

Ensaio
2 Fevereiro 2023

Por todo o mundo, os feriados públicos constituem momentos-chave na biografia de uma nação, assim como “mitologias do poder”, na aceção de Achille Mbembe. O dia 3 de fevereiro, em São Tomé e Príncipe, não é exceção e reveste-se de uma importância particular no calendário festivo do arquipélago. A data, a que o referido feriado faz alusão, assinala o início do Massacre de Batepá, tido como o episódio mais doloroso da história das ilhas, mas, simultaneamente, percecionado como um momento de ruptura com o sistema colonial, que fez espoletar a luta pela libertação nacional e, portanto, demarcado como o evento fundador do nacionalismo são-tomense. 

A data de 3 de fevereiro diz, assim, respeito a muito mais do que estritamente aos acontecimentos de 1953, precedendo-os e sobrevivendo-lhes em termos cronológicos, uma vez que encapsula duas dimensões simbólicas distintas: por um lado, atua como expressão de séculos de sofrimento e violência coloniais e, por outro, persiste como lugar de luta, triunfo e celebração da nação independente.

Nesse contexto, interessa-me não tanto as circunstâncias do evento original, mas identificar os modos como o passado de Batepá foi sendo alvo de reinterpretações, apropriações e disputas de memória ao longo do tempo, inscrevendo-se diacrónica e circularmente na história de São Tomé e Príncipe e dos são-tomenses. Como se torna Batepá num acontecimento paradigmático? Como adquire a sua centralidade e quais os sentidos simbólicos de que surge revestido?

A partir destas questões, e à luz dos múltiplos significados que lhe foram sendo vinculados desde 1953, o que pretendo demonstrar é que o dia 3 de fevereiro é: 1) uma data que serve para legitimar o estado-nação e que dá origem a uma narrativa dominante; 2) um feriado que, paralelamente, também proporciona espaços discursivos, políticos e culturais onde confirmar, contestar e desafiar essa versão seletiva do passado.

A celebração deste dia permanece relevante junto de setores significativos da população são-tomense que, hoje, muitas vezes, recorrem a essa ocasião pública para negociar e desafiar  a imagem e a narrativa nacionais da história do arquipélago como projetadas pelo Estado, procurando nelas incluir um conjunto vasto de outros sentidos simbólicos e de outras formas de pertença à nação.

A relação com a data comemorativa  não se define apenas em termos de resistência ou de antagonismo, mas pode também ser caracterizada como de convívio, seguindo o argumento de Achille Mbembe, uma vez que nem sempre as memórias elaboradas nesse dia têm um caráter de conflito aberto (ou velado) , mas sim de complementaridade e ajuste.

A primeira vida de Batepá: durante o colonialismo português tardio

Os acontecimentos que tiveram início no dia 3 de fevereiro de 1953, hoje feriado nacional no arquipélago, vitimaram, a mando do governador português Carlos de Sousa Gorgulho, um número indeterminado de forros. Estes, o grupo etnocultural dominante nas ilhas, não se encontravam abrangidos explicitamente pelo Estatuto do Indigenato, um estatuto jurídico em vigor entre 1926 e 1961, sob diversas formulações, e que diferenciava as populações entre “indígenas”, “assimiladas” e “cidadãs” (ou “civilizadas” e “não-civilizadas”, de maneira genérica). 

O regime brutal de trabalho instituído nas plantações de cacau e café ficaria, neste contexto, associado aos indivíduos oriundos sobretudo de outras ex-colónias portuguesas, como Angola, Moçambique e Cabo Verde. Por recusarem o contrato nas roças, que consideravam indigno da sua condição de não-indígenas, muitos forros foram perseguidos, torturados ou mortos durante os acontecimentos de Batepá. 

Estes acontecimentos não resultam, assim, de uma casual e momentânea explosão de hostilidade. São fruto de um sistema colonial violento que, nomeadamente através da retórica da “civilização pelo trabalho”, desumanizava e categorizava toda a sociedade de São Tomé e Príncipe, instituindo complexas relações de poder e subjugação entre os vários segmentos populacionais presentes nas ilhas.

Quando, no início dos anos 1950, coincidindo com a alta-cotação do cacau, cresce a escassez de mão de obra nas ilhas, associada entre outros aos constrangimentos no recrutamento de trabalhadores contratados de Angola, o clima de tensão na hierarquizada sociedade são-tomense intensifica-se.

Nos meses que precedem o massacre, a administração colonial adota medidas repressivas que visam obrigar os forros a trabalhar nas obras públicas e começam a surgir rumores de que eles seriam despromovidos à condição de indígenas e forçados a trabalhar sob o regime de contrato.

A brutalidade do massacre foi justificada pela administração colonial como uma tentativa de reprimir uma revolta comunista em preparação. Essa tese foi desmentida mais tarde pela própria PIDE.

Essa intenção foi rapidamente desmentida pela administração colonial em notas oficiais distribuídas por várias regiões da ilha de S. Tomé. É no seguimento desta ação que alguns forros decidem protestar, arrancando as declarações afixadas nas ruas de Trindade e Batepá, localidades tidas como bastiões da elite local.

A reação das autoridades portuguesas é imediata. De modo mais intenso durante uma semana, embora se tenham prolongado por vários meses, registaram-se rusgas constantes e casas incendiadas, foram encarcerados prisioneiros numa rapidamente sobrelotada prisão central (onde cerca de três dezenas acabariam por morrer asfixiados) e várias pessoas seriam enviadas para um campo de trabalhos forçados em Fernão Dias, com o objetivo de construir um cais acostável e onde um dos castigos que lhes era aplicado era o de esvaziar o mar. Ocorreram ainda violações, torturas com uma cadeira elétrica improvisada e deu-se a transferência para o exílio, no Príncipe, de alguns dos membros mais destacados da elite forra.

Num primeiro momento, logo após os acontecimentos, a brutalidade do massacre foi justificada pela administração colonial no arquipélago, sobretudo pelo governador Carlos de Sousa Gorgulho num relatório enviado a Lisboa, como uma tentativa de reprimir uma suposta revolta comunista que estava a ser preparada nas ilhas, tese que foi desmentida mais tarde pela própria PIDE.

Nessa fase e nos anos que se seguiram, o massacre tendeu a ser representado por alguns portugueses como uma irregularidade dentro da grande narrativa luso-tropicalista do colonialismo português, que o dizia mais benévolo e pacífico do que outros sistemas coloniais europeus.


Tal pode ver-se ilustrado, por exemplo, nalguma da literatura sobre S. Tomé produzida sobretudo, mas não exclusivamente, na década de 1960: aí, os acontecimentos eram percepcionados como o resultado dos excessos de um homem louco, o governador e, concomitantemente, na lógica de uma “missão civilizadora”, como uma consequência da preguiça “dos nativos”. Em qualquer dos casos, todavia, eram enquadrados como uma anomalia ou uma exceção à regra face ao sistema e comportamento exemplares do colono português.

A segunda vida de Batepá: a luta de libertação nacional e os primeiros anos da independência

Num segundo momento, durante a luta de libertação – que não envolveu um conflito armado – e nos anos imediatamente após a independência do arquipélago, o massacre foi resgatado e codificado pelo Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe (CLSTP), mais tarde refundado em Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP). Tornou-se o momento simbólico do despertar político dos são-tomenses e as suas vítimas foram transformadas em heróis nacionais, seguindo o mesmo “script de libertação” de outras ex-colónias africanas.

A primeira celebração oficial do dia 3 de fevereiro, na altura designado como o “Dia dos Mártires do Colonialismo”, aconteceu um ano depois da independência das ilhas, em 1976. Nesse ano, Manuel Pinto da Costa, primeiro Chefe de Estado são-tomense, dirigia-se à população nos seguintes termos:

Os sacrifícios e o sofrimento do nosso Povo nas horas trágicas de 3 de Fevereiro de 1953, longe de nos desencorajar, cimentaram a nossa fé na vitória final, deram mais força e aumentaram a nossa determinação em combater, sem tréguas, contra a opressão colonial. (…). O massacre de 1953 consolidou a unidade nacional, criando deste modo as premissas necessárias para uma luta vitoriosa contra o colonialismo português. Ao desencadear o massacre de 53, a administração colonial levantou uma pedra para deixá-la cair sobre os seus próprios pés.

O dia 3 de fevereiro é para nós um dia de luta e não um dia de luto. (…). É trabalhando duro, para construir esse país destroçado por uma colonização de cinco séculos, é que conseguiremos honrar a memória dos mártires de fevereiro de 1953, a memória de todos aqueles que morreram para que S. Tomé e Príncipe viva.

Desde então, através de processos de memorialização em torno desse evento específico, como palestras, monumentos, poesia, canções, programas de rádio e televisão, manuais escolares, toponímia da capital e rituais como nozados [rituais fúnebres], marchas e discursos políticos que tomam forma num ato central que decorre anualmente em Fernão Dias, procurou-se criar uma genealogia mítica e comum da luta a partir do massacre.

Depois de 1975, este massacre fundador é acompanhado de um processo de institucionalização da memória que, não sendo consensual, gera ainda assim uma narrativa dominante que ajuda a consolidar uma memória específica da nação, sustentada, em certa medida, em categorias sociais herdadas do colonialismo. 

Nessa narrativa, alguns forros são elevados a atores sociais privilegiados na libertação e construção de São Tomé e Príncipe, remetendo para a invisibilidade outros segmentos da população das ilhas, como os ex-contratados e seus descendentes, por exemplo, mas também forros de estatutos socioeconómicos mais frágeis. 

A performance política desse evento histórico, apesar da hierarquia social subjacente, assume uma retórica de reconciliação, assente na promoção do espírito de união nacional e no reforço da ideia de um povo sem conflitos e orgulhoso da sua história de luta. 

Isto está bem patente, por exemplo, na própria designação deste dia comemorativo. Inicialmente, o nome “Dia dos Mártires do Colonialismo” colocava a tónica no sofrimento e na repressão dos são-tomenses enquanto vítimas da opressão colonial. Em 1980, com a renomeação da data para “Dia dos Heróis da Liberdade”, o ênfase passou a estar na temeridade e determinação com que o povo batalhou pela conquista da independência. 

Este processo simbólico encontra-se bem visível no discurso que o presidente da República do país leu, em 1983, por ocasião do Comício do 3 de fevereiro:

Honramos hoje aquelas mulheres e homens que com a sua ação, com a sua luta foram marcando caminho, um caminho regado com sangue, com dignidade e coragem exemplar; o caminho que nos conduziu à 12 de julho de 1975. (…). Honrar os nossos heróis é ter consciência de que antes de nós, atrás da nossa geração está uma luta secular, uma luta cheia de sacrifícios (…). Honrar os nossos heróis é ter consciência que a luta não acabou com a independência conquistada a 12 de julho de 1975. (…). Honrar os nossos heróis é ter consciência, portanto, da responsabilidade que temos, em continuar a desenvolver até às últimas consequências a luta iniciada por todos aqueles que rejeitaram e combateram toda a espécie de opressão e dominação sobre o nosso povo.

A narrativa de Batepá, como enunciada nos discursos políticos de Manuel Pinto da Costa, incorpora, assim, noções de honra, dignidade, coragem, liberdade e unidade, noções consideradas constitutivas da identidade dos são-tomenses e às quais eles deverão dar continuidade. Na memória pública dominante, a história dos eventos de 1953 é entendida, deste modo, não como uma história de subjugação, mas como uma história de heroísmo. 

Um ano depois, na inauguração de dois monumentos em homenagem aos heróis nacionais em Fernão Dias e Trindade, a 3 de fevereiro de 1984, as comemorações suscitaram as seguintes palavras, publicadas na capa do jornal Revolução:

Somos um povo cuja heroicidade e luta, vitórias e sacrifícios não foram esculpidos em imponentes estátuas de bronze. Temos, porém, as nossas mãos nuas e armadas, nossa vontade de resistir para dar forma consistente e indestrutível ao nosso passado. Por isso o 3 de fevereiro, Dia dos Heróis, sendo uma data de evocação do heroísmo do nosso povo num passado recente, deve ser celebrado diária e anualmente, de uma forma viva, dinâmica e temporalmente ilimitada, para que ao invés de figurar numa galeria obsoleta e esvaziada de conteúdo no presente, ela seja hoje e sempre, catalisador dos nossos esforços na edificação da Pátria e na realização verdadeira do Homem santomense.

Assimilar os acontecimentos de 1953 a uma narrativa nacionalista de resistência, unidade e heroísmo é uma opção que procura reforçar o sentido comunitário da sociedade são-tomense depois da independência, ao invés de acicatar tensões etnoculturais que a polarizariam. 

Assim, a memória do massacre propagada nas comemorações, reproduzida em torno de modelos de resistência e bravura, acaba por ancorar o projeto do MLSTP e inscrever os seus líderes, muitos deles descendentes de vítimas do massacre, numa linhagem de perseverança e de oposição ao colonialismo português.

A terceira vida de Batepá: processos de rememoração dos anos 2000 em diante

É em datas nacionais como o 3 de fevereiro que, como tem sido notado, mais visivelmente se consegue captar a relação aberta, ambígua e de negociação que, através dos meios de memória, se desenrola entre os seus produtores (neste caso, o Estado e a sociedade civil) e os seus consumidores (os indivíduos ou atores sociais).

Assim, a partir dos anos 2000, pouco mais de uma década depois da abertura democrática ao multipartidarismo no país, foram surgindo vários momentos de tensão e negociação do passado em torno deste dia nacional. Essas práticas foram manifestadas através de protestos, de celebrações paralelas, da literatura ou de discussões em torno da denominação do evento e, muitas vezes, embora não sendo produzidas diretamente em resposta ao significado oficial do massacre, são-lhe contingentes. 

Em 2003, na celebração do 50.º aniversário do massacre, é publicado um livro, A Guerra de Trindade, de Carlos Espírito Santo, que gera polémica e dá origem a alguns debates pela designação que o autor escolhe dar aos acontecimentos. Ao recorrer ao termo “guerra” ao invés de “massacre”, considerou-se não só que o autor incorria num anacronismo histórico, como minimizava a natureza da agressão colonial acontecida em 1953. Essa discussão, de resto, foi recentemente recuperada no 7º episódio da série da RTP História a História - África, de Fernando Rosas,  vertido em livro num capítulo intitulado A Guerra da Trindade ou o Massacre de Batepá.

Em 2005 é formalizado e aprovado o Estatuto do Combatente da Liberdade da Pátria, um diploma que concede certos privilégios aos militantes do CLSTP/MLSTP e da Associação Cívica pró-MLSTP pela sua intervenção na conquista da independência de São Tomé e Príncipe. Na sequência da publicação da referida legislação são estabelecidos, em 2009, os valores da pensão a que os beneficiários do referido estatuto teriam direito, reportando ao vencimento base dos Titulares de Cargos Políticos e Especiais, introduzido pelo Decreto nº 2/2009. 

Perante esse quadro legal, no âmbito do qual os sobreviventes do massacre, até então assumidos como heróis da liberdade da pátria, se veem excluídos, surge uma notícia no jornal Tela Nón, onde alguns deles vêm expressar o seu descontentamento por não serem contemplados com os mesmos benefícios outorgados aos nacionalistas do CLSTP/MLSTP e da Cívica, apoiando-se justamente na sua evocação simbólica como “combatentes” e no imaginário do massacre como fator impulsionador da luta de libertação nacional.

A memória do massacre de 1953 materializa-se não apenas enquanto símbolo da oposição ao colonialismo, mas também enquanto desejo de um futuro próspero para a nação são-tomense.

Apesar de publicamente celebrados e acarinhados, a reivindicação por uma pensão condigna tem sido uma mensagem articulada pelos sobreviventes dos acontecimentos de 1953 durante as festividades do 3 de fevereiro, não apenas em 2009, mas ao longo dos anos. 

Coincidindo com uma certa desvalorização política das vítimas de 1953, o governo liderado por Rafael Branco decide, ainda em 2009, destruir o memorial em homenagem aos Heróis Nacionais existente em Fernão Dias, justificando-o com a necessidade de construção de um porto de águas profundas no local, fundamental ao desenvolvimento do arquipélago. 

Na decisão do executivo está implícita a continuidade da luta, agora já não em nome da liberdade, mas do progresso do país, como se depreende das declarações do primeiro-ministro, feitas em 2010, por ocasião das celebrações do 3 de fevereiro, já não no pontão de Fernão Dias, onde outrora estivera erguido o memorial, mas na roça com o mesmo nome:

Quem morreu em 1953 aspirava a um São Tomé livre, um São Tomé desenvolvido, um São Tomé onde as pessoas pudessem ser felizes. O porto de águas profundas vai ser uma oportunidade para darmos início a um ciclo económico, e pelo que vemos aqui não ficamos a perder em simbolismo. Estamos em Fernão Dias, no local dos acontecimentos.

Esta resolução, que dá primazia à dimensão económica em detrimento do valor simbólico do lugar, gerou vários protestos, nomeadamente entre membros de uma geração mais jovem que, nesse mesmo ano, juntando-se na marcha anual do 3 de fevereiro, optou por, à chegada ao pontão, dirigir-se aos escombros do monumento e aí entoar o hino, em vez de se encaminhar para o ato central como estava planeado, onde se encontravam reunidas as principais autoridades políticas, administrativas e religiosas das ilhas. Fernanda Pontífice, ex-ministra da Cultura, recorda esse momento, que apelida de “sublime”, com admiração:

Houve imensas atividades celebrativas, mas o memorial ficou lá e esse lá tornou-se um lugar de passeio, onde as pessoas iam passar a tarde, iam namorar... Às páginas tantas, houve um governo que mandou demolir o memorial. Porque havia o projeto de construção de um porto de águas profundas e aquele local foi selecionado como o mais adequado para a implantação do porto. Hoje, passados anos, continuamos a não ter o memorial nem o porto de águas profundas. (…). E, no dia, no 3 de fevereiro logo a seguir à demolição, eu fui como cidadã normal e não fui, eu recusei-me – embora tivesse recebido o convite – recusei-me a ir à parte oficial e fui como cidadã anónima com uns amigos estrangeiros que cá estavam, para lhes mostrar como se assinalava a data aqui em São Tomé e tive o grato prazer de assistir a um facto que me levou à conclusão de que afinal a data de 3 de fevereiro está apropriada pela juventude. Porque os jovens que iam, uma boa parte dos jovens que iam na caravana, a pé, ao chegar à entrada do sítio onde estava a decorrer o ato oficial, continuaram em frente, chegaram às ruínas do memorial e cantaram o hino nacional! E eu tive o privilégio de assistir a esse ato. E para mim foi algo, foi um momento sublime, porque eu disse para mim mesma que “os monumentos são importantes, mas não há nada mais importante, nada mais forte que a memória coletiva, do que a memória das pessoas.”
 

Em 2015, emergiram renovados desafios à memorialização do massacre durante as celebrações do feriado nacional do 3 de fevereiro. Muitos anos depois de o ato central em homenagem às vítimas de Batepá se realizar em Fernão Dias, sempre na manhã de 3 de fevereiro na sequência de um nozado em homenagem aos defuntos, o governo da Ação Democrática Independente (ADI) de Patrice Trovoada resolveu transferir a cerimónia para o largo do museu nacional, na capital do país. 

Essa resolução foi considerada, por certos setores da população e por um grupo de historiadores são-tomenses, uma afronta à história nacional, ao MLSTP e um desrespeito às vítimas e ao próprio chefe de estado, Manuel Pinto da Costa, que não foi considerado na decisão e que acabou por não comparecer à cerimónia. O executivo justificou a mudança com a vontade de implementar uma nova política na área da cultura que visava reabilitar o espaço do museu instalado no Forte de S. Sebastião.

Algumas opiniões foram favoráveis à alteração porque descentralizava as comemorações das localidades de Batepá e de Fernão Dias, reinscrevendo na memória pública e nacional outros lugares mnemónicos referentes aos acontecimentos de 1953. 

Contudo, muitos são-tomenses revoltaram-se, sobretudo a população de Fernão Dias que, sentindo-se marginalizada pelo Estado, decidiu, em protesto, montar uma barricada no acesso à povoação, impedindo a realização do nozado na madrugada de 2 para 3 de fevereiro, tendo o exército sido chamado para serenar os ânimos.

De acordo com Conceição Lima, numa crónica no jornal Téla Nón, esta era a única ocasião anual em que as atenções nacionais estavam viradas para estas pessoas e para o lugar onde vivem, daí que não se tivessem conformado com a troca, exigindo que a importância da localidade e das suas gentes fosse valorizada.

Face ao desagrado público, o ato central voltou a Fernão Dias no ano seguinte, em 2016, tendo, na mesma altura, sido inaugurado um novo monumento no local que, de acordo com o então Ministro da Educação, Cultura e Ciência, Olinto Daio, evoca, através da representação do mar, as memórias dolorosas do passado e, simultaneamente, anuncia um outro futuro para o arquipélago, um futuro mais auspicioso, apenas possibilitado pelo sacrifício com que as vítimas do massacre deram a sua vida pela liberdade:

Temos que ver o mar como uma oportunidade de crescimento e de desenvolvimento para São Tomé e Príncipe, e por isso devemos ver este monumento como mais um símbolo que deve unir os são-tomenses, porque essas pessoas deram a vida para que todos nós hoje vivêssemos num país livre. Portanto, devemos todos estar unidos, independentemente das nossas opções ideológicas, das nossas necessidades, dos nossos sonhos e das nossas frustrações. Devemos estar conscientes que é preciso estarmos unidos para trabalharmos, para que o país possa crescer, que São Tomé e Príncipe seja um país de igualdade, de proximidade, que não haja diferença entre uns e outros.

O monumento em questão regista uma mudança estética e política que ilustra o atual debate que se tem vindo a desenrolar no país sobre os diferentes significados de Batepá: as grandes ondas azuis a simbolizar o percurso de progresso ansiado para S. Tomé e Príncipe em substituição do antigo memorial, com a sua coluna encimada por uma estrela negra de cinco pontas a ecoar a vitória da luta anticolonial e as alianças transnacionais por ela forjadas. 

Deste modo, a memória do massacre de 1953 materializa-se não apenas enquanto símbolo da oposição ao colonialismo e às dimensões de violência que ele compraz, mas também enquanto desejo de um futuro próspero para a nação são-tomense. Isso inclui, por exemplo, introduzir este património nos circuitos de turismo histórico de São Tomé e Príncipe, transformando-o em local de passagem obrigatória para quem visita as ilhas.

Em 2018, é junto a este monumento que o presidente da República portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro chefe de Estado do país a visitar oficialmente Fernão Dias, depõe uma coroa de flores, reconhecendo o massacre como parte integrante do passado comum de Portugal e São Tomé e Príncipe “no que ele tem de bom e de mau”. Afirmou que Portugal assumia “aquilo que foi o sacrifício da vida e o desrespeito da dignidade de pessoas e comunidades” e assumiu essa responsabilidade olhando para o passado, mas “ao mesmo tempo para o presente e o futuro”.

Apesar da atenção mediática que a visita de Marcelo Rebelo de Sousa trouxe aos eventos de 1953, particularmente em Portugal, onde permanecem genericamente pouco conhecidos, o seu discurso, voltado para o desejo de fraternidade e para a importância das relações diplomáticas e de parceria entre os dois países, falhou em tornar esse momento num espaço de discussão pública e crítica que reconheça satisfatoriamente a persistente violência inerente ao colonialismo português e os seus contínuos legados no presente.

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Monumento "em memória aos mártires de 3 de fevereiro de 1953", na praia de Fernão Dias, ilha de São Tomé. Fotografia da autora.


Para além do conjunto de práticas e de ações que acabei de descrever, as celebrações do 3 de fevereiro têm, em anos recentes, de acordo com vários/as são-tomenses, perdido a solenidade que as caracterizava e adquirido uma dimensão mais festiva e de diversão. Apesar de criticada por quem viveu o massacre, essa abordagem não tem de, necessariamente, ser entendida como negativa, pois apresenta o potencial de instilar um sentido de comunidade e de partilha entre os participantes, como argumenta Sabine Marschall, afirmando que “o problema de negociar as duas dinâmicas em oposição, de lamentar os mortos e celebrar a alegria de ter ultrapassado o sofrimento, é fundamental em muitos feriados públicos”.

Os futuros de Batepá

Os espaços de negociação e contestação identificados este texto não significam que a importância simbólica do evento não continue a ser reivindicada como momento fundacional e traço identitário da nação. 

Efetivamente, muitos dos são-tomenses que nasceram e cresceram depois da independência convivem, desde muito jovens, com os acontecimentos de 1953: participam em marchas, palestras e cerimónias em honra dos defuntos de Batepá; leem sobre este assunto nos manuais escolares; caminham pela rua e pelo bairro 3 de Fevereiro e veem fotografias no museu nacional, onde existe uma sala inteiramente dedicada ao massacre, que recebe regularmente visitas de estudo. 

O que sucede é que estas práticas de memorialização são acompanhadas de uma pluralidade de processos mnemónicos, sociais, políticos e culturais que interferem e modelam renovadas representações do passado de Batepá. 

Assim se demonstra que, por mais que as políticas de memória de um evento histórico sejam instituídas e ritualizadas pelo Estado e deixem lastro ao longo de décadas e através de gerações, os seus significados nunca permanecem reificados, pois paralelamente a uma narrativa dominante, estão constantemente a emergir outras memórias e outras negociações simbólicas que com ela coexistem e mediante as quais os/as são-tomenses procuram inscrever o seu lugar nessa história.

 


Este ensaio é baseado num artigo publicado originalmente na revista Estudos Ibero-Americanos (n.º 45), disponível online integralmente, com notas de rodapé e referências bibliográficas.

 

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