Chefe de gabinete do LIVRE na Assembleia da República e deputado municipal em Oeiras eleito pela coligação Evoluir Oeiras.

Isaltino Morais: como a hegemonia faz mal à democracia

PS e PSD desistiram de lhe fazer oposição e o resultado está à vista: o presidente da Câmara tem sido o principal responsável pela perda de qualidade da democracia em Oeiras. Isaltino Morais pensa que está acima de qualquer escrutínio, dúvida ou pergunta e os seus vereadores e deputados municipais têm tentado intimidar a oposição.

Ensaio
5 Outubro 2023

Como é que as pessoas de Oeiras continuam a votar nele?!” Esta é a pergunta que se ouve mais vezes quando o tema de conversa é Isaltino Morais. Há uma composição de fatores frequentemente identificada, e onde se inclui quase sempre o mote “rouba, mas faz”, mas nunca se consegue concluir como, somando os positivos e negativos, o resultado final não é nulo ou mesmo negativo. Mas, seja por indiferença, negligência ou convicção, os oeirenses têm o hábito entranhado de votar no atual presidente da Câmara de Oeiras.

Isaltino Morais chegou pela primeira vez à presidência da Câmara Municipal de Oeiras pouco mais de uma década depois do 25 de Abril e ainda é, aos dias de hoje, presidente da Câmara. Depois das eleições autárquicas de 1985, Isaltino Morais venceria de seguida as de 1989, 1993, 1997 e 2001 pelo PSD, e as de 2005 e 2009 como independente. Pelo meio foi ministro das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente do governo de José Manuel Durão Barroso, cargo que abandonou ao fim de um ano, a 5 de abril de 2003, quando surgiram suspeitas de que detinha contas bancárias não declaradas na Suíça e na Bélgica. 

Foi constituído arguido na pré-campanha eleitoral das autárquicas de 2005 e, na sequência de uma investigação, em 2008 foi a julgamento por crimes de corrupção, branqueamento de capitais, abuso de poder, participação económica em negócio e fraude fiscal. Acabou condenado a sete anos de prisão no ano seguinte, mas recorreu para o Tribunal da Relação, que manteve a condenação pelos crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais, baixando a pena de prisão de sete para dois anos e anulando a pena de perda de mandato. Depois de muitas voltas, Isaltino Morais é detido e preso em abril de 2013, cumprindo 427 dias de prisão até a sua libertação ser ordenada pelo Tribunal da Relação, em 2014.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Já depois de cumprir pena de prisão, candidatou-se novamente à presidência da Câmara de Oeiras em 2017, derrotando o seu ex-delfim Paulo Vistas, que lhe teria ficado a guardar o lugar desde as eleições de 2013. Em 2021 recandidatou-se e obteve uma das suas vitórias mais expressivas, com perto de 51% dos votos e uma maioria absoluta de oito em 11 vereadores.

Isaltino Morais ganhou nove das últimas dez eleições autárquicas em Oeiras, sendo que a única que não venceu formalmente foi ganha pelo seu (então) delfim à frente do movimento “IOMAF - Isaltino Oeiras Mais à Frente”. Os festejos da noite eleitoral de 2013 fizeram-se à porta da prisão da Carregueira com gritos de “Isaltino!, Isaltino!, Isaltino!”.

Resta concluir o óbvio: é impossível desligar a realidade de Oeiras de alguém que liderou esta autarquia, de uma maneira ou de outra, nos últimos 38 anos, seis dos quais já depois de ter cumprido pena de prisão.

Resultados eleitorais à parte, as opiniões sobre o legado que Isaltino Morais deixará quando abandonar a presidência da Câmara não serão tão simpáticas quanto o autarca gostaria. A aura popular de que “rouba, mas faz”, que tanto o tem protegido ao longo dos anos, vai-se desvanecendo à medida que se torna cada vez mais evidente que, além de ser um presidente que cumpriu pena de prisão por fraude fiscal e branqueamento de capitais, muito do trabalho autárquico que faz, faz mal.

O modelo de desenvolvimento que Isaltino tem promovido em Oeiras nos últimos anos é, grosso modo, o mesmo que preconizava em 1985. Se se pode dizer que esse modelo trouxe resultados para o concelho nas décadas de 1980 e 1990 (à boleia de dinâmicas com uma escala muito maior que a municipal), é indiscutível que esta visão está largamente desatualizada e ultrapassada.

O modelo de desenvolvimento assente apenas em betão e alcatrão promovido em Oeiras ignora aquilo que aprendemos nas últimas décadas sobre as  alterações climáticas e como fomentar uma vida saudável e equilibrada em zonas urbanas. Alguns exemplos: o investimento desmesurado em parques de estacionamento e em novas faixas rodoviárias em detrimento do alargamento e melhoria da oferta de transportes públicos e de outros modos de mobilidade suave e partilhada; o delapidar da Reserva Agrícola Nacional (RAN) e da Reserva Ecológica Nacional (REN) para a construção de mega-empreendimentos de luxo, com graves consequências para a preservação de solos - nomeadamente em zonas onde uma maior permeabilidade poderia impedir, ou pelo menos mitigar, fenómenos como as cheias de Algés de dezembro de 2022; ou o desvario despesista de aquisições como o obelisco do Parque dos Poetas - que teve um custo de 600 mil euros, não tem qualquer propósito discernível e é, para ser o mais direto possível, feio que dói - mostram quão ultrapassada está a visão de Isaltino Morais para o concelho de Oeiras.

Não é por acaso que, ao longo deste mandato autárquico, têm surgido vários focos de contestação à sua liderança, geralmente em protesto contra opções urbanísticas desastrosas deste executivo e de anteriores, de que são exemplos máximos o Parque dos Cisnes, em Miraflores, e as Torres do Espargal, em Paço de Arcos.

Isaltino Morais tem sido contestado neste mandato autárquico como nunca foi durante todos os seus longos anos à frente da Câmara. Tem sido um enorme teste para ele, e tem falhado em toda a linha.

Na polémica dos bilhetes para o festival NOS Alive, que decorre no concelho de Oeiras, Isaltino e os que o acompanham reagiram como se se tratasse de uma grande ofensa questionar a legalidade e a ética de ter a adjunta do presidente da Câmara a distribuir bilhetes pelos deputados municipais (alguns de nós tivemos o bom senso de os recusar) momentos antes de se votarem na Assembleia Municipal isenções de taxas no valor de dezenas de milhares de euros para o mesmo festival. O momento foi revelador da impunidade de que acham que gozam, já que nem sequer tiveram o pudor de distribuir os bilhetes longe da vista de terceiros e num momento menos flagrante. Não faria com que o episódio fosse menos grave, mas, assim, a falta de noção demonstrada foi ainda maior e mais evidente.

Poucos meses depois, dias antes da Jornada Mundial da Juventude, Isaltino Morais e o seu vice-presidente, Francisco Rocha Gonçalves, protagonizaram um espetáculo ridículo em torno de um cartaz colocado em Algés que aludia às vítimas dos abusos sexuais no seio da Igreja Católica em Portugal. Na ânsia de silenciar todo e qualquer sinal de dissidência ao status quo (de que fazem parte e são grandes beneficiários), Isaltino e o seu vice retiraram um cartaz político legitimamente colocado na via pública. 

Habituados a sair incólumes de atitudes prepotentes como esta, foram apanhados em completo contrapé quando o caso ganhou projeção nacional (e até internacional) e foram forçados a explicar-se. Começaram por alegar que o cartaz tinha sido colocado ilegalmente porque, supostamente, a estrutura não estaria licenciada. Vendo que a explicação não era popular e que juristas respeitados discordavam da suposta ilegalidade, recuaram e, afinal, o cartaz tinha sido retirado porque a Câmara pensou que se tratava de um ato de vandalismo. Quando esta explicação também não foi bem acolhida, por ser francamente implausível, o cartaz, afinal, tinha sido retirado porque o lugar era pouco digno para uma mensagem tão importante quanto a que transmitia. Uma pirueta com mortal encarpado à retaguarda capaz de deixar qualquer ginasta invejoso.

Naquele que foi talvez o caso mais mediático de todos, e um dos mais caricatos, assisti, incrédulo, a partir da segunda fila da Assembleia Municipal de Oeiras: um longo discurso de Isaltino Morais a explicar que os cerca de 140 mil euros do orçamento municipal gastos em almoçaradas eram “não um gasto, mas um investimento”. A defesa apaixonada que fez da avultada despesa em refeições extravagantes, bem como o elencar da lista de locais onde, presume-se, esse gasto ocorreu, chegou ao programa televisivo de entretenimento com maior audiência em Portugal e transformou Oeiras em chacota nacional durante vários dias.

Perante tudo isto torna-se ainda mais difícil dar resposta à pergunta que abre este texto. Confesso, com muita pena minha, que não tenho uma resposta que explique na perfeição porque continuam os oeirenses a votar nele, mas há um dado visível apenas a quem acompanha de muito perto ou participa ativamente na política local de Oeiras que talvez ajude a responder: o sufoco, por várias vias, de toda e qualquer oposição que lhe surja e a capitulação a que forçou PSD e PS. Juntos - o sufoco da oposição e a capitulação dos maiores partidos - são os fenómenos que formam a ilusão de que não existe alternativa política possível em Oeiras. Não ajuda a desfazer esta ilusão - muito pelo contrário - a facilidade com que, ao longo dos últimos anos, os dois partidos de centro em Portugal, desistiram de fazer oposição e preferiram render-se a Isaltino Morais.

Nas eleições de 2021, Isaltino elegeu  oito dos 11 vereadores. A vereação obtida pelo PSD rapidamente assumiu pelouro juntando-se à maioria. Poucos meses depois, o PS fez exatamente o mesmo. Na oposição, ficou sozinha Carla Castelo, vereadora independente eleita pela coligação Evoluir Oeiras (constituída pelo Bloco de Esquerda, pelo LIVRE, pelo Volt e por cidadãos independentes do movimento Evoluir Oeiras). Na Assembleia Municipal o cenário não é muito diferente, com os deputados do movimento de Isaltino aliados aos do PS e do PSD a representarem 30 dos 38 deputados municipais eleitos.

O acenar da bandeira branca pelo PS e pelo PSD explica porque é que entre 2013 e 2021 praticamente não se ouviu falar de oposição em Oeiras.

A minha análise aqui é assumidamente parcial, já que também integro esta força política, mas até à criação da coligação Evoluir Oeiras e à conquista de um lugar de vereação e mandatos na Assembleia Municipal, há quase uma década que não existia um projeto abrangente e agregador de oposição a Isaltino Morais. Não se viu à esquerda e muito menos à direita. E desengane-se quem acha que o PSD e o PS foram os únicos partidos a desistir de fazer oposição em Oeiras. São apenas os casos mais flagrantes.

A dimensão desta sua nova maioria contribuiu para a última das facetas da presidência de Isaltino Morais merecedoras de destaque: a arrogância e a postura de quem acha que está acima da lei intensificaram-se drasticamente. Com esta super-maioria, Isaltino Morais passou a achar ainda com mais força que tem não só o direito a fazer tudo aquilo que bem entender, como está acima de qualquer escrutínio, dúvida ou pergunta, e que estas são mesmo insultuosas perante a suposta espetacularidade das suas políticas e bondade das suas intenções. 

Os poucos que têm coragem de lhe fazer frente são achincalhados e insultados em longos discursos na Assembleia Municipal - façam parte dela ou não -, onde Isaltino e os membros do seu movimento se dirigem aos deputados municipais da oposição com a prepotência de quem acha que ter maioria absoluta equivale mesmo a estar acima da lei e das próprias regras da Assembleia Municipal e, em simultâneo, humilham os munícipes que ousam intervir com um tom mais crítico.

Intervenções de munícipes classificadas como “bolsar” pelo líder de bancada de Isaltino no órgão deliberativo municipal, silenciamento das intervenções dos munícipes pela presidente da Assembleia (membro da mesma força política de Isaltino), deputados municipais de partidos democráticos comparados a nazis, violação dos tempos de intervenção previstos no regimento sempre a favor de Isaltino e da Câmara Municipal e várias outras tentativas de intimidação da oposição e de munícipes críticos são a nova normalidade na Câmara e na Assembleia Municipal.

Enquanto preconiza um modelo de desenvolvimento retrógrado, sufoca uma parte da oposição e arrebanha outra a preço de saldos, promovendo a deterioração acentuada da cultura democrática no concelho que governa; mancha a imagem do município com polémicas reveladoras de uma tremenda falta de noção ou bom-senso e tenta humilhar e espezinhar quem ousa fazer-lhe frente, Isaltino Morais vai vendendo que Oeiras é o melhor dos municípios no melhor dos mundos.

Só que também aí a realidade o desmente. Por cada vez que Isaltino Morais refere que Oeiras produz riqueza como nenhum outro município, chove dentro de uma casa no Bairro dos Navegadores. Por cada vez que Isaltino diz que estamos na vanguarda tecnológica e até já se fala de urban air mobility em Oeiras, há pessoas que esperam uma hora, de pé, na berma de uma via rápida, por um autocarro. Por cada vez que Isaltino Morais diz que temos o município com a população mais instruída do país, há alunos a ter aulas em escolas sem condições e ainda com coberturas de fibrocimento. E por cada vez que diz que Oeiras é um concelho muito preparado para enfrentar as alterações climáticas, os moradores de Algés temem que uma chuvada mais intensa os leve a ficar sem as suas casas, os seus bens, ou até a correr risco de vida.

Apenas uma tremenda falta de vergonha permite a Isaltino Morais enfrentar uma pena de prisão e sucessivas polémicas - que forçariam qualquer outra pessoa a assumir mudanças de rumo, atos de contrição ou a demitir-se -, sem a mais leve demonstração de arrependimento ou sequer concebendo que possa ter errado. Importa aqui relembrar o acórdão dos juízes do Tribunal da Relação que ditou a sua sentença é taxativo quanto à incapacidade de arrependimento de Isaltino Morais: “O arguido não encontra nada de especial no facto de, ao longo de anos, ter fugido ao pagamento de impostos, e de, para o efeito, ter branqueado dinheiro. A ideia que fica é que o arguido só não continuará a fazer o mesmo se não puder”. 

Só por essa falta de vergonha se explica que Isaltino Morais continue a promover um modelo de desenvolvimento claramente nocivo para a população de Oeiras - mas nada nocivo para os interesses de quem o promove - e a conseguir convencê-la de que é o melhor para todos, sem sequer pestanejar. Apenas por aí se consegue explicar o esmagamento sistemático da dissidência, através do recurso a técnicas que envergonhariam a grande maioria das pessoas que as utilizassem.

A vergonha, o potencial de exposição ao embaraço, aquela sensação de nos encolhermos quando pensamos em fazer alguma coisa que sabemos que é errada… Isaltino Morais é imune a tudo isso. Talvez seja esse, afinal, o verdadeiro segredo de 40 anos de governação em Oeiras.

Esta exposição à vergonha, ao embaraço e ao ridículo é a kryptonite da maioria dos políticos. Os que lhe são imunes têm uma vantagem competitiva que lhes traz, quase sempre, ganhos eleitorais. Donald Trump é imune. Jair Bolsonaro é imune. Antes destes exemplos mais recentes, Jesse Ventura era imune. Mas antes de todos eles, já Isaltino Morais era imune.