Licenciado em Ciência Política. Especialmente dedicado aos fenómenos políticos europeus e latino-americanos dos séculos XX e XXI.

Fischia il vento e infuria la bufera

Ou há uma rutura com as decisões tomadas nas últimas décadas ou a extrema-direita continuará no poder em Itália. Poderá não ser durante muitos anos consecutivos, mas voltará, regularmente, cada vez mais confiante e autoritária.

Ensaio
6 Outubro 2022

As recentes eleições legislativas italianas tornaram-se tema de conversa por todo o mundo. Não é para menos: afinal, a coligação entre o Fratelli d’Italia (FdI) de Giorgia Melloni, a Lega de Matteo Salvini e o Forza italia (FI) de Silvio Berlusconi, conseguiu, com a ajuda de 43% dos votos dos italianos, uma maioria no Senado e na Câmara dos Deputados. Uma maioria que fará Itália ter o governo mais à direita desde os tempos do fascista Benito Mussolini. 

Importa entender o que nos trouxe aqui, começando pelo colapso do único sistema de partidos estável italiano, percorrendo seguidamente os rumos da política italiana e terminando nas eleições de domingo passado. Não serão aqui descritas transferências de voto, sistemas eleitorais, pequenos detalhes sobre a ideologia de cada um dos partidos que concorreu a esta eleição ou as personalidades e discursos dos seus líderes. 

Pelo contrário, o foco estará no enquadramento do contexto desta eleição na evolução da política italiana nos últimos 70 anos e, principalmente, nas atitudes – como a política de alianças – dos partidos ao longo da caótica história política recente de Itália. Acima de tudo, só descobrindo o que nos trouxe até aqui pode evitar que se repitam os mesmos erros no futuro. 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Embora cronicamente instável entre o final da II Guerra Mundial e o início da década de 1990, o sistema político italiano orbitou essencialmente à volta de dois partidos, o Partido Comunista Italiano (PCI) e a Democracia Cristã (DC).

Forte na cintura vermelha do centro de Itália, região historicamente caracterizada pelo anticlericalismo, antifascismo  e sindicalismo, com uma forte ligação ao PCI desde a fundação do partido e bastião da esquerda italiana até aos dias de hoje, bem como noutras cidades industrializadas, o PCI nunca conseguiu ser dominante em certas zonas do país, nomeadamente no Sul.

Os governos italianos pré-Berlusconi não grandes derivas económicas à direita, com uma forte preocupação em fortalecer o Estado Social e manter uma ligação às bases. 

Tendo sofrido vários percalços, como o assassinato de Aldo Moro, primeiro-ministro italiano que protagonizou o acordo histórico com a DC, pelas Brigadas Vermelhas, ou a sabotagem constante das forças da NATO, como a rede Gladio – responsável por promover, por exemplo, através de uma estratégia de tensão e a formação de grupos armados anticomunistas  clandestinos – por todo o país, o PCI não chegou a conseguir formar nenhum governo ou a ter uma maioria favorável na Câmara dos Deputados, apesar de apoiado pelos deputados do Partido Socialista Italiano (PSI), com o qual sempre teve boas relações. 

A Democracia Cristã, por sua vez, era um partido bem implantado por todo o território, com ligações à sociedade civil, à igreja católica e a sindicatos. Contava, além disso, com o apoio do bloco político-militar no qual Itália estava, e está até hoje, inserida.

Ao contrário dos comunistas, os “democratas-cristãos” não tinham uma posição política muito bem definida: existiam diversas alas, que albergavam  sociais-democratas – que até se podia dizer estarem mais à esquerda do que à direita –, autodenominados centristas – um centro-direita clássico ao estilo da CDU alemã –, ou conservadores que se situavam mais perto dos movimentos pós-fascistas italianos (falaremos deles mais à frente) do que da própria DC. 

No entanto, foi rara a confrontação aberta entre estas alas. Não havia espaço para purismos ideológicos. As principais funções da DC eram garantir a estabilidade ao país, governar assegurando a continuidade do  sistema económico e social e impedir uma maioria de esquerda (o que pressupunha um governo liderado por um partido comunista num país fundador da  NATO). 

Se, por um lado, é certo que a parte da estabilidade falhou, por outro a estratégia da DC no que diz respeito aos restantes aspetos funcionou lindamente. O partido governou fazendo alianças à direita e à esquerda, sempre com o cuidado de não se aproximar demasiado de partidos como o fascista Movimento Social Italiano (MSI), de forma a não alienar o seu eleitorado antifascista. Inclusive, foi por esse mesmo motivo que os governos italianos pré-Berlusconi nunca fizeram grandes derivas económicas à direita, mantendo uma forte preocupação em fortalecer o Estado Social e em manter a ligação às bases.

O PCI renuncia à luta armada logo após a guerra, tendo, mais tarde, assumido a possibilidade de chegar ao socialismo pela via parlamentar.

Aliás, a ligação às bases era mesmo a expressão-chave da política italiana, que foi a que no mundo melhor e até mais tarde a representou. A abstenção em Itália, desde o final da II Guerra Mundial até 1994, nunca passou dos 13%. A DC e o PCI eram dois partidos de massas que viviam em campanha contínua, se ligavam a diversas organizações com os mais diferentes fins e tinham uma militância enorme tanto em tamanho quanto em atividade. Tanto uma como a outra criaram um Estado Social paralelo, no qual as suas casas de apoio eram os principais pilares.

Tudo isto acontecia  enquanto o fim da política de massas e institucionalização dos partidos que a protagonizavam já se verificava nos restantes países do Ocidente Europeu desde o início da década de 1970. 

Desenganem-se os que acharem que este sistema levou à cristalização dos partidos. Depois de Alcide De Gasperi –primeiro primeiro-ministro italiano da DC e visto um dos principais responsáveis pelo início da reconstrução do país no pós-guerra – ter “definido”, desde cedo, aquela que viria a ser a já descrita orientação base da DC, esta governou “ao centro”. Governou com os liberais, fez acordos com o PSI (que chegou a liderar executivos), tentou o tal compromisso histórico com o PCI e até chegou a equacionar retirar o MSI do “gueto político” em que fora colocado logo após o fim da guerra, ao conseguir o seu apoio para um governo que durou poucos meses. 

Também os comunistas foram mudando de posição ao longo dos anos e, numa tentativa de aumentar o seu apoio eleitoral, o PCI foi fazendo cedências. O partido renuncia logo após a guerra à luta armada, tendo, mais tarde, assumido a possibilidade de chegar ao socialismo pela via parlamentar. 

Esta adaptação culmina nos anos 1970, tornando-se o PCI em um dos pioneiros do eurocomunismo, que teve como primeiro e principal rosto o de Enrico Berlinguer, dirigente nacional do partido. Foi com os comunistas que a esquerda italiana começou a tentar, através de cedências cada vez mais à direita, chegar ao poder, perdendo-se num dos vícios fatais que viriam a adotar os partidos e alianças que lhe sucederam e que contribuiu fortemente para aquele que foi o desfecho das eleições de dia 25. 

Com o final da Guerra Fria, em 1991, terminou também o velho sistema de partidos italiano. O PCI transforma-se no “Partido Democrático de Esquerda”, naquela que foi a primeira de inúmeras refundações e reorganizações durante as últimas três décadas e que terminou com o atual Partido Democrático (PD). 

Alas minoritárias, como a “Refundação comunista”, separaram-se, mas foram politicamente incapazes de sobreviver quando abandonaram as alianças (nas quais o sistema eleitoral italiano moderno se baseia) de centro-esquerda lideradas pelo PD. 

A DC também acaba por colapsar em 1994, devido a vários escândalos vindos a público, tendo o principal sido a Operação Mãos Limpas, que expôs diversos subornos de empresários a políticos e o uso de poderes públicos por parte dos mesmos para proveito pessoal, num processo que envolveu milhares de mandados de prisão entre a elite política e económica do país, arrasando a popularidade de históricos partidos italianos. Numa posição desfavorável perante a opinião pública, sem uma matriz ideológica definida, fragmentada em diversas alas, e sem um propósito comum (impedir os comunistas de chegarem ao governo), o partido acaba por ser dissolvido. 

É aí que a esquerda e a direita se reestruturam e a política de massas é abruptamente abandonada, seguindo finalmente o rumo dos restantes países ocidentais. Foi a esse choque político repentino no eleitorado italiano que se deveu, em grande medida, o surgimento, e sucesso posterior, de movimentos populistas não conotados com qualquer aliança política, como o Movimento 5 Estrelas. 

À esquerda, sem PCI, começa a ser feita uma aproximação ao centro. As alianças lideradas pelo PD como “A Oliveira” passam a incluir desde herdeiros do eurocomunismo e partidos ecologistas, a sociais-liberais, antigas alas de centro-esquerda da DC e até alguns partidos de centro-direita. 

No total, estas alianças, cada vez mais descaracterizadas e complexas, passam 11 anos no poder, sempre instáveis e com apoio parlamentar de liberais e/ou partidos do Partido Popular Europeu (PPE): a grande família da direita tradicional europeia. A tática, com origem nos tempos do PCI, de tentar ampliar a base de apoio de modo a poder governar, acabou por afetar apenas os programas políticos ou a política de alianças e não a aritmética eleitoral, que se manteve desde os tempos do PCI eurocomunista.

Berlusconi não teve os receios dos velhos democratas-cristãos que fizeram os movimentos fascistas e pós-fascistas italianos serem marginalizados da política parlamentar.

Já à direita a história é outra. O populismo de Silvio Berlusconi trouxe excelentes resultados eleitorais ao seu Forza Itália desde que apareceu na cena política. Independentemente dos escândalos, é ele o protagonista de todas as vitórias da direita italiana desde o colapso da Democracia Cristã. 

É também esse populismo que faz com que as suas alianças de “centro-direita” sejam diferentes das do resto da Europa, na qual os participantes habituais são, ou costumavam ser até há pouco tempo, conservadores em diálogo com simpáticos liberais que se abstinham de tocar em temas sensíveis como a imigração. 

Berlusconi nunca foi esse tipo de político: se não era em 1994, quando caiu de paraquedas numa Itália pouco habituada a alianças com aqueles que se situavam, digamos, à direita da direita tradicional, também não seria agora, que tem 86 anos e concorreu numa coligação liderada por uma força de extrema-direita, que iria mudar. 

Berlusconi não tem os receios dos velhos democratas-cristãos que fizeram os movimentos fascistas e pós-fascistas italianos serem marginalizados da política parlamentar durante quase meio século. As suas alianças vencedoras sempre contaram com a Aliança Nacional (antecessora do agora vencedor FdI), sendo uma peça bastante importante nos seus governos. 

Já no que lhe diz respeito, a direita mais ligada à tradição da DC foi-se vendo progressivamente diminuída, culminando no cenário atual: uma aliança supostamente de centro-direita onde menos de 1% dos votos vão para democratas-cristãos, 8% vão para o Forza Itália e os restantes 35% são divididos por dois partidos pós-fascistas. 

Lendo os resultados de outra forma, os partidos italianos à esquerda do centro todos juntos, incluindo sociais-liberais e o Movimento 5 Estrelas (que concorreu numa lista à parte da aliança do PD), obtiveram poucos mais votos que apenas o FdI de Meloni e a Lega de Salvini. No entanto, se é certo que a chegada a este ponto se deve em grande medida à normalização do discurso radical de direita por parte dos partidos tradicionais e personalidades dessa área política, começando no “eterno” Sílvio, também o é que a esquerda italiana precisa fazer uma séria autocrítica, rever aquelas que têm sido as suas escolhas há já algum tempo, e recalcular o rumo quem tem sido mantido.

O esquecimento da população tradicionalmente de esquerda (como os trabalhadores de colarinho azul) por parte dos partidos dessa área política é recorrente um pouco por todo o mundo. Tal explica-se por considerarem os votos destas camadas da população garantidos e pelo objetivo de piscar o olho a outras. Tal é especialmente notório na Europa, onde desde o início da desindustrialização, há mais de quatro décadas, se encara o proletariado e restante classe operária como uma espécie em vias de extinção, relevante de destacar apenas nos manuais de História e, por isso, um mau “investimento” do ponto de vista eleitoral.

A esquerda italiana tem ignorado problemas sociais urgentes: as demografias excluídas, o trabalho precário, o racismo, o desemprego e as injustiças perpetuadas pelas instituições europeias.

O caso italiano, porém, é dos mais flagrantes, mesmo dentro do velho continente. Ao contrário do que acontece noutros países, como França, não existe uma “esquerda alternativa” com força relevante para estancar essa perda de apoio dos partidos tradicionais da sua área política.

Vejamos o estudo feito para o Corriere della Sera: olhando para a divisão por condição económica, a aliança de direita tem 48% de apoio na classe mais baixa; 49% na média baixa; 42% na média, 36% na média alta e 40% na alta. 

Já os partidos da aliança de centro-esquerda têm, respetivamente, 11%; 21%; 26%, 29% e 28%, dados que ainda se tornam mais assustadores se tivermos em conta que grande parte dos apoiantes de classes mais baixas desta coligação são antigos eleitores do PCI, atualmente reformados. 

O mais semelhante que existe com uma “esquerda popular” é o Movimento 5 Estrelas, que quando venceu as últimas eleições com uma plataforma “nem de esquerda nem de direita”, apenas eurocética e populista, começou por se aliar à Lega de Salvini. Apenas depois dessa experiência passou a ser conotado, pelo discurso e prática política, com a esquerda. 

O Movimento preencheu o maior vácuo da política italiana contemporânea: a defesa vocal dos direitos dos trabalhadores e das camadas mais vulneráveis da sociedade por parte de um grande partido. Isso notou-se na divisão de voto. 

O apoio eleitoral por nível de rendimento, do mais baixo para o mais alto, foi de 25%; 18%; 14%, 11% e 10%. Também na divisão por grupo profissional existe uma diferença clara em desfavor da esquerda, uma vez que entre os trabalhadores de colarinho azul a coligação de direita tem um apoio de 56% contra 13% da de esquerda. Entre os trabalhadores de escritório, a diferença passa para 38% contra 25%. Neste parâmetro, mais uma vez, o Movimento 5 Estrelas destoa da coligação liderada pelo PD, tendo o seu maior apoio entre os trabalhadores de colarinho azul e entre a pequena burguesia (artesãos, trabalhadores por conta própria, etc.), chegando aos 16% em ambos, e menos nos trabalhadores executivos, freelancer e empreendedores.

Olhando para estes dados, resta apenas refletir sobre alternativas. É certo que embora os partidos da coligação vencedora estejam todos próximos politicamente, provavelmente não trarão estabilidade a Itália. 

No entanto, desenganem-se os que pensam que ter um governo liderado por pós-fascistas conduz inevitavelmente a um trauma tal, que acaba por servir de “vacina” para os italianos não voltarem a, como tanto se tem lido por aí, “votar mal”. Não é com uma alegre alternância democrática entre coligações que vão do eurocomunismo ao centro-direita e à extrema-direita que se vence o fascismo – é com mobilização e luta; luta que não se resume às urnas e aos partidos, mas na qual os partidos têm uma relevância enorme. 

A esquerda italiana e os seus partidos amigos têm sido especialistas em ignorar problemas sociais: as camadas excluídas da sociedade, o trabalho precário, o racismo, o desemprego e as injustiças e assimetrias perpetuadas pelas instituições europeias. São apenas alguns exemplos do que construiu o ambiente de contestação que nos trouxe até aqui. 

Cabe, acima de tudo, ao PD decidir se quer continuar a tornar-se um partido de elites, achando que alguma das intermináveis viragens e cedências à direita os levará a governar com estabilidade, enquanto caminha lentamente rumo à irrelevância. 

Já a quem está à esquerda do PD é necessário decidir se quer deixar o eleitorado da classe trabalhadora dividido entre a extrema-direita e um movimento populista que se apropria do discurso da esquerda ou se quer voltar às raízes. Ou há uma rutura com aquelas que têm sido as decisões tomadas nas últimas décadas, ou a extrema-direita continuará no poder. Pode não ser durante muitos anos consecutivos, mas voltará, regularmente, cada vez mais confiante e cada vez com maior vontade de restringir a liberdade, como é seu apanágio. 

Os trabalhadores poderão até votar em quem muda o discurso no tempo das eleições para piscar o olho às classes médias. Itália não seria o primeiro, nem, infelizmente, o último país no qual isso aconteceria. Mas uma coisa é certa: não votarão certamente em quem sentem que os abandonou há anos, sem dar sinais de querer voltar atrás. O pulso do novo governo será essencialmente medido nas ruas, e é nas ruas que a esquerda tem de estar presente, hoje e sempre. Que este susto em Itália sirva de lição para a restante esquerda europeia.