Jornalista desportivo inglês, focado sobretudo em futebol. Escreveu para a Vice e para o diário i.

Este campeonato do mundo precisa do espírito de Sócrates

Nas décadas de 1970 e 1980, o brasileiro Sócrates usou o futebol como veículo para desafiar a ditadura militar e lutar pela democracia. O vergonhoso Mundial do Qatar beneficiaria de alguém com esse espírito heróico.

Ensaio
8 Dezembro 2022

Sócrates pode nunca ter passado dos quartos de final do Campeonato do Mundo, mas o brasileiro mantém-se como um dos jogadores mais emblemáticos da história do torneio. Imediatamente reconhecível pelo seu negro cabelo encoracolado, a barba à Che Guevara, e a maneira como se assomava sobre os adversário com a sua esguia estatura de um metro e 90, parecia revolucionário da cabeça aos pés.

No México, em 1986, onde falhou um fatídico penálti durante o desempate por grandes penalidades contra a França e viu o Brasil ser eliminado nos quartos, Sócrates usou uma fita na cabeça — improvisada a partir de uma meia de um companheiro de equipa — que viria a definir a sua imagem aos olhos de milhões de pessoas. Tendo-a adornado com diferentes motes — “The people need justice”, “Yes to love, no to terror”, “No violence” —, a primeira vez que a usou terá sido a mais impactante. 

Depois do terramoto na Cidade do México no ano anterior, uma catástrofe que matou milhares e expôs as amargas injustiças da sociedade mexicana, o país anfitrião estava profundamente abalado. Sócrates entrou em campo com uma simples mensagem: “México sigue en pie”, ou “O México continua de pé”.

Ao explicar a ideia por detrás da mensagem, Sócrates disse: “Quando chegámos ao México, a catástrofe causada pelo terrível terramoto que abalou o país antes do Campeonato do Mundo espoletou-me a aproveitar a oportunidade, numa altura em que todo o mundo assistia àquele torneio, e a sublinhar alguns aspetos críticos daquela realidade social”. Para a faixa branca inspirou-se numa jovem rapariga que viu, na televisão, a usar uma tiara, decidindo então que teria de protestar a partir da sua testa contra “os absurdos da humanidade”.

Ao usar essa primeira fita no jogo contra a Espanha, na fase de grupos, ficou irritado e desconcentrado depois de, por erro, o hino à bandeira do Brasil ter começado a tocar nos altifalantes do estádio em vez do hino nacional Brasileiro. “Quaisquer reações à pobreza, à guerra, ao imperialismo, às injustiças sociais, ao analfabetismo endémico, e a muitas outras coisas, varreram-se da minha cabeça assim que ouvi o primeiro acorde e percebi o engano”, admitiu mais tarde o jogador. “Mas valeu a pena tentar. É muito melhor tentar, creio eu, que resignar-se.”

No final da carreira, Sócrates disse: “Enquanto fui futebolista as minhas pernas amplificaram a minha voz”. E usou essa voz para defender políticas radicais e denunciar injustiças no Brasil e no mundo.

Sócrates não era um futebolista vulgar, mesmo quando o jogo estava muito mais próximo das suas raízes comunais. Líder carismático e génio criativo em campo, tornou-se um herói romântico no imaginário popular pelas suas proezas fora das quatro linhas. Bebia e fumava, vivia com o mesmo desprendimento desinibido que caracterizava a sua maneira de jogar à bola. Considerava-se um “anti-atleta”. Também era um médico qualificado — daí a sua alcunha, Doutor Sócrates —,uma contradição que reforçava as suas credenciais de inconformista.

Ainda assim, o brasileiro entendia que era o seu talento com uma bola nos pés que lhe dava uma plataforma de onde poderia falar para um número incontável de gente. E que talento que era. Era um médio inteligente e composto que fazia passes lindíssimos, mas também um goleador vistoso, tão bom a jogar de calcanhar que Pelé, que ganhou três campeonatos do mundo, terá dito que Sócrates jogava melhor para trás que muitos para à frente. 

Sócrates capitaneou a seleção brasileira que participou no campeonato do mundo de 1982, em Espanha, tida por muitos como a melhor equipa de sempre a não vencer o torneio. O Brasil foi eliminado depois de uma derrota por 3-2 contra a derradeira vencedora Itália, na segunda fase de grupos — uma peculiaridade da altura — naquele que é descrito por Falcão, um dos companheiros de seleção de Sócrates, como “um dos maiores jogos da história do futebol”.

Quando a sua carreira terminou — a derrota contra a França no México ‘86 foi o seu último jogo contra o Brasil — Sócrates disse: “Enquanto fui futebolista as minhas pernas amplificaram a minha voz”. Usou essa voz para defender políticas radicais e denunciar injustiças no Brasil e no mundo. Ainda que o seu tempo na seleção brasileira o tenha tornado mundialmente famoso, a sua intervenção política mais importante aconteceu nos seis anos em que jogou pelo Corinthians, clube de futebol da cidade de São Paulo. Aí, tornou-se uma figura central da Democracia Corinthiana, um movimento que o pôs em direta oposição à brutal ditadura militar que governava o Brasil desde 1964.

Ao início, Sócrates era um dissidente relutante. Tendo crescido numa família de classe média em que o seu pai, Raimundo, era obcecado com a educação — daí ter sido nomeado em honra de um filósofo grego —, Sócrates viveu uma experiência formativa na sua infância ao ver o seu pai destruir os seus livros sobre política de esquerda quando os militares tomaram o poder.

Ainda assim, numa das suas primeiras grandes entrevistas, em 1976, com vinte e poucos anos, tomou uma posição apolítica perante a ditadura, afirmando até que a censura era necessária, porque as coisas poderiam, de outra maneira, “complicar-se para o governo”. Era, no entanto, um leitor voraz e continuou a educar-se sob o encorajamento do seu pai, tornando-se cada vez mais atento aos problemas sociais no Brasil e à intensa repressão do regime militar.

Assim que se juntou ao Corinthians, em 1978, começou a pender para a Esquerda. Não muito depois, Sócrates e o seu companheiro de equipa Wladimir dos Santos — aos quais se juntou depois e entusiasticamente Walter Casagrande — lideraram um movimento que, com o apoio do diretor de futebol Adilson Monteiro Alves e o presidente do clube Waldemar Pires, introduziu no clube uma forma de democracia direta. Todos votavam em questões sobre a gestão do clube, enquanto os jogadores decidiam tudo, desde os horários dos treinos às pausas para ir à casa de banho. Também atenuaram as restrições das concentrações, uma tradição do futebol brasileiro que obrigava os jogadores a ficar confinados num hotel ou num centro de treino antes de cada jogo.

Apesar do sequestro bolsonarista dos símbolos nacionais, a imponente figura de Sócrates recorda-nos que a extrema-direita jamais terá o monopólio sobre a herança da seleção nacional brasileira.

Lutar contra o autoritarismo dessas concentrações era especialmente simbólico, transformando o Corinthians numa metáfora da sociedade brasileira. Sócrates e os seus colegas de equipa não estavam apenas a desafiar a ditadura aos olhos de toda a gente ao adotar métodos democráticos numa instituição desportiva de alto nível. Mostravam também que rejeitar a apatia e o individualismo em favor de políticas coletivas podia ser significativamente eficiente.

O clube alcançou grandes sucessos sob a gestão da Democracia Corinthiana. Venceu o Campeonato Paulista duas vezes, em 1982 e 1983. “O nosso movimento tinha sucesso por muitas razões, mas a mais importante era o Sócrates”, afirmou Casagrande ao jornal Guardian, no ano passado. “Precisávamos de um génio como o dele, alguém politizado, inteligente e admirado. Era um escudo para nós. Sem ele, não teria havido a Democracia Corinthiana.”

O movimento rapidamente transcendeu o clube, com Sócrates e os seus colegas de equipa a desafiarem diretamente o regime. Em 1982, antes das primeiras eleições multipartidárias no Brasil, sob poder militar e a meio do processo gradual de abertura democrática, os jogadores do Corinthians entraram em campo com camisolas onde se liam as palavras: “Dia 15 Vote”. Antes de vencerem o Campeonato Paulista de 1983, os jogadores do Corinthians, liderados por Sócrates, entraram em campo com uma faixa gigante onde se lia: “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”. Marcou duas vezes ao São Paulo, numa final a duas mãos, levantando o punho cerrado nas duas ocasiões em celebração e em saudação ao povo brasileiro.

Sócrates participou depois no movimento Diretas Já, que, apoiado por sindicatos, trabalhadores, artistas, estudantes e largas fatias de toda a sociedade brasileira, levou milhões às ruas e espoletou a transição para a democracia em 1985. Num momento que se tornou definidor do seu folclore pessoal, quando era cobiçado por vários clubes italianos, Sócrates subiu a um palco e prometeu à multidão de manifestantes que não sairia do Brasil se a emenda constitucional que garantiria eleições democráticas fosse passada.

A emenda foi derrotada no que se veio a mostrar um revés temporário, mas Sócrates, num ato de provocação, partiu para a Fiorentina. Diz a história que, ao chegar a Itália, lhe perguntaram que estrela da Serie A ele mais admirava, se Sandro Mazzola ou Gianni Rivera. “Não os conheço”, respondeu. “Estou aqui para ler Gramsci na língua original e estudar a história do movimento trabalhista.”

Sócrates ainda é “um ídolo” para muitos brasileiros, incluindo para Rosie Siqueira do Fiel Londres, um clube de adeptos do Corinthians com sede na capital inglesa. “Era uma pessoa à frente do seu tempo, os seus ideais em termos de política e causas sociais iluminaram não só os adeptos do Corinthians, mas também muitos brasileiros”, afirma. “Também era um líder nas causas sociais, influenciando jogadores e dirigentes. Sócrates era de esquerda, resistiu à ditadura militar e defendia a liberdade e o direito à opinião… não é comum vermos isso no futebol, seja na América do Sul ou em qualquer lado.”

Embora as formas pelas quais Sócrates transformou o clube estejam bem documentadas, o significado da identidade do Corinthians, e dos seus adeptos,  é frequentemente esquecido no que lhe diz respeito. “Temos orgulho em ser um dos poucos clubes com um capítulo tão bonito na nossa história”, diz Siqueira. “A mensagem por detrás disso viverá para sempre com os corinthianos, e continua a lembrar-nos da nossa história, da nossa origem e do nosso propósito. Os corinthianos vêm de origens pobres, imigrantes, de classe trabalhadora. Não podemos esquecer isso. Ter a Democracia Corinthiana nas páginas da nossa história irá ajudar-nos a manter vivo esse ideal”.

Sócrates morreu em 2011, aos 57 anos, sofrendo com problemas de alcoolismo, no mesmo dia em que o Corinthians venceu o Brasileirão. O jogador continuou a apoiar políticas radicais e praticou medicina depois de se reformar do futebol. Também foi comentador televisivo, escritor e palestrante. Apoiou Lula da Silva, figura vital do movimento Diretas Já e, coincidentemente, adepto do Corinthians, durante o seu mandato presidencial, afirmando que o seu governo estava “sendo o melhor da história brasileira”. Sócrates nunca foi acrítico, todavia. Quando questionado sobre que nota daria à presidência de Lula, respondeu: “Não dou um 10, porque seria preciso mudar tudo ao mesmo tempo. Diria um sete ou um oito. É bastante bom”.

Hoje, quando se espera que vença um Campeonato do Mundo manchado, a seleção nacional brasileira tornou-se um símbolo de divisão política, danificada por fraturas e cortes ideológicos. Antes das eleições gerais de outubro passado, que Lula venceu, o presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro encorajou os seus eleitores a vestir a famosa camisola amarelo-canário da seleção nacional. A camisola foi há muito cooptada por apoiantes do presidente ao ser usada em comícios e protestos alinhados com Bolsonaro.


Diz a história que, ao chegar a Itália, lhe perguntaram que estrela da Serie A ele mais admirava, se Sandro Mazzola ou Gianni Rivera. “Não os conheço”, respondeu. “Estou aqui para ler Gramsci na língua original e estudar a história do movimento trabalhista.”

Consequentemente, muitos dos brasileiros que se opõem a Bolsonaro — cujos apoiantes mais acérrimos têm pedido uma repetição do golpe militar de 1964 depois da vitória de Lula — pararam de usar a camisola. Não ajuda que muitos dos internacionais proeminentes do Brasil, como Neymar Jr., tenham demonstrado abertamente o seu apoio a Bolsonaro, com Lula a afirmar que o avançado do Paris Saint-Germain apoiou o seu rival por razões fiscais.

“Com tudo aquilo que se passa, Sócrates é ainda uma figura muito importante”, diz Andrew Jonie, jornalista e autor do livro Doctor Sócrates. “Ouvimos muita gente, especialmente durante a eleição, quando houve tipos com o Neymar a dar o seu apoio a Bolsonaro, dizer coisas como: ‘Temos saudades de um jogador como o Sócrates, que apoiava causas sociais, os direitos humanos, a democracia e o progresso’. Era um homem que defendia o que ele achava estar certo”.

Muitos antigos futebolistas, todavia, demonstraram o seu apoio a Lula, especialmente Casagrande, velho amigo de Sócrates, e Raí, o seu irmão mais novo. Fantástico futebolista — e, ao contrário do seu irmão, vencedor de um campeonato do mundo —, Raí levantou a sua mão direita em forma de “L” enquanto apresentava o primeiro Prémio Sócrates na cerimónia do Ballon d’Or, antes das eleições presidenciais. “Todos sabemos de que lado ele estaria,” disse o irmão, com um sorriso.

Dada a intervenção agressiva da FIFA até contra as intervenções mais inofensivas pela igualdade no Qatar, este campeonato do mundo pede um jogador que evoque o espírito do México ‘86. Para os brasileiros que procuram reaver dos bolsonaristas a camisola da seleção — e os seus ícones nacionais, de maneira geral —, a imponente figura de Sócrates recorda-nos que a extrema-direita jamais terá o monopólio sobre a herança da seleção nacional. “Vencemos o Bolsonaro nestas eleições, mas isso não significa que o bolsonarismo desapareceu, e as ideias preconceituosas, sexistas e totalitárias ainda sobrevivem no país”, diz Siqueira. “Na minha opinião, o futebol, como sempre, tem um importante papel na sociedade e precisamos do espírito de Sócrates vivo dentro de nós.”

Artigo originalmente publicado na Jacobin Magazine.