Dedica-se a causas ligadas aos Direitos Humanos e ao Feminismo. É psicóloga, de esquerda e, para si, há uma frase de que nunca abdicará: "A história da humanidade é a história da luta de classe". 

Estamos fartas que nos digam o que as mulheres podem ou não ser

As mulheres continuam a ser trituradas pela dupla jornada e pelo sistema patriarcal. A mulher chega exausta a casa depois do trabalho e é sempre igual: dá banho aos filhos, cozinha, dá-lhes de comer. A sociedade, a família, todos exigem demais às mulheres. 

Ensaio
17 Agosto 2023

Assobiar é coisa de menino. Não podes sentar-te de pernas abertas. Cruza-as. Mas não deixes a perna de cima muito alta, fica deselegante. E, se não queres que olhem para as tuas pernas, não uses saia. Se vais sair de mini saia já sabes que os homens olham. E não fales alto. As mulheres querem-se a falar baixinho. As que falam alto são histéricas. E não bebas cerveja, é feio. Não bebas álcool. 

Não fumes, que isso é coisa de oferecida. Nem faças tatuagens, que isso é coisa de gandula. E não fales a seguir a um homem. Um homem não é de ferro, e tem necessidades. Elas provocam. E não revires os olhos, isso é coisa de menina mal comportada. Se ele se meteu contigo, alguma tu fizeste. As mulheres hoje em dia usam saias tão pequenas que parecem cintos, e depois queixam-se que os homens as assediam. Não sabes que isso é da natureza dos homens? E olha para esse decote, esconde essas mamas, depois queixas-te. Agora também são todas assediadas. Como é que vais casar se nem sabes estrelar um ovo? Mulher honrada não tem ouvidos e ainda menos dá respostas. Comporta-te! Recatada e do lar. 

DEPENDEMOS DE QUEM NOS LÊ. CONTRIBUI AQUI.

Estes comportamentos e exigências vêm de um lugar: a raiz biológica da supremacia masculina. Susan Brownmiller, jornalista norte-americana, não baixava os braços quando falava de feminismos. Cedo percebeu que a ameaça de violação tinha afetado profundamente a sua vida, e de uma forma que preferia ignorar. Foi por volta de 1975 que o termo “violência sexual” se introduziu nas conversas de dia-a-dia norte-americanas e, mais tarde, europeias. 

O final da década de 1970 viu a violência sexual surgir como tema na sociedade e isso ficou ainda mais claro na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, habitualmente conhecida como Convenção CEDAW. Foi adotada pela ONU no final do ano de 1979. É um dos “grandes tratados” de Direitos Humanos e frequentemente chamada de Carta dos Direitos Humanos das Mulheres.

Mas não nos esqueçamos de Mary Wollstonecraft. Esta feminista anteviu este acontecimento em 1792, dois séculos antes, com a obra Reivindicação dos direitos da mulher, a “primeira” Carta dos Direitos Humanos das Mulheres. Naquele pequeno texto - na altura, longo, tendo em conta a realidade das mulheres, perto do final da revolução francesa - Wollstonecraft defendia que as mulheres deveriam ter o mesmo direito à educação que os homens, que não estudassem apenas para se tornarem “esposas ideais”. 

No seu entender, a educação tinha como objetivo exclusivo permitir o livre desenvolvimento da Mulher como ser racional, fortalecendo a virtude por meio do exercício da razão e tornando-a plenamente independente. Isto parece-nos demasiado claro nos dias de hoje e talvez já não seja a maior preocupação dos movimentos feministas deste século. 

Estranha-se serem sempre mulheres a ter o trabalho de cuidado; estranha-se ver uma mulher negra numa posição de poder; estranha-se o facto de vermos maioritariamente homens na política, a comandar os destinos do país, que podemos nós fazer?

Mas talvez seja uma preocupação a ter, uma cada vez mais urgente. Basta lembrarmo-nos da petição contra as aulas para a cidadania de há bem pouco tempo. Conservadores que pretendem manter o status quo a seguir em frente. Em Portugal, e no cumprimento da Constituição, devemos seguir o caminho do progresso e não abdicar das aulas de cidadania. 

O conjunto de direitos e deveres dos seres humanos, independentemente de qualquer variável, tem de ser para todos, e é precisamente isto que se ensina nas aulas de cidadania. Ser contra isto é ser contra a igualdade e ser contra a igualdade é ser a favor dos privilégios de uns e das opressões de outros. A educação para a cidadania é uma das formas de combate à exclusão social e à violência de género, podendo ser um factor de mudança social da sociedade.

Quando Wollstonecraft exigia o acesso de mulheres à educação talvez não tivesse em mente as aulas de cidadania, mas o objetivo estava no mesmo pensamento: o livre desenvolvimento da Mulher como ser racional tornando-se plenamente independente. Todas as mulheres. 

Como uma carta tirada de um baralho de cartas, há sempre qualquer coisa que remete as mulheres para o lugar delas. Que não existe. Que é fabricado pelos preconceitos e por esta ideia, mais ou menos explícita, de que quanto mais vassalagem se presta aos homens melhor mulher se é. Quanto mais deixamos um homem brilhar e fazemos as coisas todas à sua maneira - isto pode ser visto na crónica infantilização masculina - a mulher, esse ser que não se importa de ter dupla jornada porque é tão abnegada que se mata a trabalhar dentro e fora de casa. Isto tudo com cheiro a bafio, mas é o cheiro com que muitas de nós crescemos.

Assim se aprende que a um homem tudo é permitido. Tudo. Incomodar uma mulher, violentar uma mulher, bater numa mulher. Há um mundo desigual, surgem sempre argumentos para relativizar as suas ações e desvalorizar as suas consequências. Abre-se a janela e vê-se, por exemplo, as vizinhas atarefadas com os filhos ao colo, e os sacos das compras numa mão, e mulheres que vão estoiradas. Chega-se a casa e é sempre igual: a mãe cozinha, exausta, a jornada dupla, óbvio, depois de um dia de trabalho e perguntamos porque o pai não ajuda, mas entretanto vamo-nos habituando e até replicando na nossa vida. 

O feminismo branco, europeu, que luta pela inserção das mulheres e acesso igualitário não pode compactuar com as estruturas de opressão.

A subjugação das mulheres, nas formas características de uma sociedade capitalista, tem sido a chave para este processo de atomização social, cultural e de classe. Não é a primeira vez que ouvimos isto. Angela Davis, Ella Mahony (mais próxima das gerações jovens), bell Hooks, Djamila Ribeiro, entre muitas mulheres, ativistas, feministas, alertam-nos para a necessidade de os movimentos perceberem que o feminismo é composto por várias camadas. Deixemos as críticas ao feminismo essencialista, porque não podemos tomar o modelo europeu para designar as lutas feministas. Hooks não deixou margem para dúvidas no livro Teoria feminista: da margem ao centro já trazia questionamentos a partir do feminismo negro.

A interseccionalidade faz parte dos feminismos. Eles não existiriam sem ela. Ao ler o conto  “Terra Santa”, de Djamila Pereira de Almeida, incluído no livro Mães que tudo, uma das frases que me ficou gravada na memória toca exatamente nesta realidade das “camadas”. Uma mãe diz a uma filha algo como: “diretora-executiva, vê lá, se vais ficar gorda. Não quero cá gordos nem malucos. Nós já somos pretos, não dá mais para ser gorda nem doida”. 

Historicamente, as tentativas de omitir “classe” e “raça” da luta feminista, em prol de um discurso homogenizador, descortinaram o racismo dos movimentos feministas. O feminismo branco, europeu, que luta pela inserção das mulheres e acesso igualitário não pode compactuar com as estruturas de opressão. Tem de problematizar as desigualdades e os fundamentos que as produzem. 

Em Contra o Feminismo Branco, de Rafira Zakaria, estas opressões vão ainda mais longe. A desigualdade está em todo o lado, se nos propusermos a vê-la. Quando se desconhece a igualdade, torna-se mais difícil ver os problemas que daí advêm e é importante ver o mundo através dos olhos de outras mulheres - a tão relevante interseccionalidade. 

Como Zakari refere no seu livro, este é um desafio individual e coletivo, e devemos começar por perceber que diversas mulheres têm sido submetidas ao mesmo pela necessidade de sobreviver. Não há justiça quando o acesso à mesma se torna inacessível a milhares de pessoas, dada a desigualdade económica que permanece. A pobreza afeta desproporcionalmente pessoas que se encontram nas classes sociais mais vulneráveis. Este é um dos problemas que se relaciona muito bem com a insegurança, o contexto laboral, a falta de habitação, uma maior dificuldade na Educação. Se a raça e o género determinam de forma direta o tratamento dispensado a um indivíduo numa sociedade, então o mesmo acontece com a classe. 

São as mulheres que estão mais isoladas. Há ainda uma existência familiar cada vez mais privatizada (mesmo quando trabalham fora de casa)

Os feminismos só serão claros quando englobarem as várias lutas, para que todas as mulheres sejam livres e combatam as raízes patriarcais e o pensamento estruturalmente machista e que sempre alienou o empoderamento das mulheres num contexto social, cultural e político. As contas são simples, na verdade, mas, quando estamos a ser trituradas para caber num sistema, nem damos conta. Já só sorrimos e acenamos. 

Há uma ligação fundamental entre a luta das mulheres e o que é tradicionalmente concebido como luta de classes. Nem todas as lutas das mulheres têm um impulso inerentemente anticapitalista, mas todas aquelas que constroem a coletividade e a confiança coletiva entre as mulheres revelam uma importância vital para a construção da consciência de classe. Mesmo que nem todas as lutas de classes tenham uma premissa inerentemente anti-sexista, as que procuram construir a autonomia social e cultural da classe trabalhadora estão necessariamente ligadas à luta pela libertação feminina.

A reivindicação delas próprias

Estranha-se serem sempre mulheres a ter o trabalho de cuidado, mas somos muito pequenos para mudar alguma coisa. Estranha-se ver uma mulher negra numa posição de poder; estranha-se o facto de vermos maioritariamente homens na política, a comandar os destinos do país, que podemos nós fazer? Estranha-se as mulheres apressarem-se a reduzir os sinais do envelhecimento e esses sinais serem de charme para os homens. Estranha-se as conversas da vizinha a culpar a mulher pelo alcoolismo do marido, mas segue-se em frente, ninguém pode mudar o mundo. Estranha-se as mulheres divorciadas serem olhadas de lado, como se tivessem cometido um crime. 

Mulheres, precisamos de estar à escuta: “precisamos de um combate digno das mulheres mais exploradas, das empregadas domésticas, das profissionais do sexo, das queer, das mulheres trans, das mulheres migrantes, das que fogem e procuram refugio, e de todas aquelas para quem o termo mulher assume uma posição social e política, não estritamente biológica”. Vergès, politóloga, historiadora e ativista alertou para este pensamento. Tanto que o publicou, em 2021, no ensaio exaustivo “Uma teoria feminista da violência: por uma política antirracista da proteção”

Estranha-se o facto de toda a gente falar como se uma mulher tivesse nascido para ser mãe, e algumas até para cumprir um desígnio imposto pela sociedade. Estranha-se o facto de se ouvir dizer que temos de nos dar ao respeito quando arranjamos namorado, mas o  certo é que passamos a escolher a roupa com mais cuidado e a sentirmo-nos culpadas por alguma importunação. Estranha-se alguns comportamentos de homens relativamente a mulheres e estranha-se, acima de tudo, a culpa ser sempre da mulher - alguma ela fez, se não queria não tivesse dançado com ele, ela é que casou com ele, agora aguente-se. 

São as mulheres que estão mais isoladas. Há ainda uma existência familiar cada vez mais privatizada (mesmo quando trabalham fora de casa). Os filhos, a casa. Os homens têm mais disponibilidade para tudo, para se tornarem quem quiserem, para ir ao sábado à tarde ao futebol ou a reuniões de trabalho ou de um partido político, por exemplo, tem muito mais facilidade em aparecer em qualquer lugar, porque a sociedade do país não lhes cobra nada. O filho está doente, é a mãe que fica em casa. A mãe vai buscá-lo à escola, o pai está a trabalhar. Mas a mãe também trabalha. Mas a mãe tem obrigações. A sociedade, a família, todos, exigem demais a uma mulher. 

A subjugação das mulheres, nas formas características de uma sociedade capitalista, tem sido a chave para este processo de atomização social, cultural e de classe.

A carreira do homem corre de vento em popa, a mulher cozinha porque gosta mais. Pois claro, como no tempo da outra senhora, quando o “gostar mais” era para parecer bem à sociedade. Pena que este vento não seja suficiente para mandar abaixo todos os maus hábitos que se criam com a masculinidade tóxica. E depois perguntámos porque existem diferenças salariais, porque existe violência doméstica, porque existe tanta depressão. Cada mulher tem a sua história de opressão, mais ou menos grave, com mais ou menos danos para a sua vida. 

Como é que uma menina aprende a sair quando é maltratada se é educada com estes e outros chavões? Como é que uma menina aprende a lutar, quando lhe dizem que tudo o que sabe fazer é bordar? Como é que uma menina pode aprender a não aceitar violência num relacionamento se tudo o que a ensinam são coisas que as meninas aprendiam no tempo da outra senhora? Como é que uma mulher pode aprender a ser livre? 

Recatada e do lar, que não se mostre, que não fale, que não duvide, que não refile, que não seja impertinente e, sobretudo, não seja de cabeça levantada. E é uma luta ser tudo ao contrário do que nos ensinaram a ser. Tomar a nossa vida nas nossas mãos, não depender de ninguém, andar de cabeça erguida. A reivindicação de nós próprias é a melhor conquista que pode haver. 

O facto de sempre ter sido assim não faz com que tenha de continuar assim. Salazar deixou-nos uma herança pesada no que se refere à igualdade, sendo a desigualdade de género gritante. As mulheres eram afastadas da esfera pública e eram assim remetidas para o trabalho doméstico e de cuidado, ficando dependentes financeiramente, mãe, esposa, dedicada à família e ao marido. A ideologia de género do Estado Novo preparava as mulheres para a maternidade, para o trabalho do cuidado, para o trabalho em casa. Haviam creches onde as meninas iam aprender a ser mulheres, ou seja, a ser serviçais de um homem toda a vida. Se levassem pancada do marido, tinham de comer e calar, as leis protegiam o chefe de família. 

Isto condicionou a prosperidade da mulher, e o seu futuro. Claro que hoje a desigualdade se pauta por coisas diferentes, mas em muitas casas ainda se vê os mesmos problemas que se viam nos tempos sombrios da ditadura. Muita coisa mudou, logo em 1976 com a aprovação da nova Constituição, onde a igualdade é lei. Mas não chega, claro que não chega, as desigualdades estão internalizadas. E é preciso gritar, gritar bem alto, que não ficaremos mais caladas. Que denunciemos cada forma de opressão, de desigualdade. Que resistamos.