Doutorada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde é professora auxiliar. Foi consultora e Diretora-Adjunta do Centro Jurídico da Presidência do Conselho de Ministros e vogal do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República. Foi Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública durante o XXII Governo Constitucional de Portugal e Secretária de Estado Adjunta e da Educação no XXI Governo Constitucional.

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A educação enquanto direito fundamental e obrigação de serviço público

No Estado social, os serviços públicos têm de ser universais e não destinados aos mais desfavorecidos no plano económico, social e cultural. Aí reside a diferença entre o Estado social e um Estado assistencialista. Por isso, a existência de escolas particulares e cooperativas não afasta nem substitui a obrigação do Estado de criar e manter uma rede pública de ensino.

Ensaio
14 Fevereiro 2024

A Constituição da República Portuguesa consagra no artigo 43º a liberdade de aprender e de ensinar, que inclui várias dimensões: a proibição de o Estado programar a educação segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas; a afirmação de que o ensino público não pode ser confessional; e a garantia do direito de criar escolas particulares e cooperativas. Trata-se de um direito, liberdade e garantia, numa dimensão essencialmente negativa, de defesa perante o Estado.

A liberdade de aprender tem também uma dimensão positiva, da qual decorre o direito de todos os cidadãos a exigir do Estado a criação de uma rede de escolas gratuita, acessível em condições de igualdade. Por isso mesmo, no quadro dos direitos económicos, sociais e culturais – mais concretamente, no capítulo III do título III da parte I, relativo aos direitos e deveres culturais –, a Constituição dedica os artigos 73.º a 77.º à educação e ao ensino.

Os artigos 73.º e 74.º consagram o direito à educação, devendo o Estado promover a democratização da educação e o direito ao ensino e à igualdade de oportunidades de acesso e de êxito escolar. Daqui decorre a dimensão de serviço público que se traduz num conjunto de tarefas para o Estado definidas no n.º 2 do mesmo artigo 74.º.

O direito à escola pública é um direito social, mas também um direito, liberdade e garantia em diversas dimensões, tais como a garantia de não confessionalidade, e na relação com o princípio da igualdade, com o desenvolvimento pleno da personalidade humana, com o reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, e a possibilidade de uma participação cívica e democrática na sociedade. Por isso mesmo é que o direito à educação está consagrado no artigo 26.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem em moldes amplos, enquanto direito e liberdade básica de qualquer ser humano.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

O acesso gratuito ao ensino obrigatório é instrumental relativamente à realização de todas estas dimensões do direito à educação. Parece-me, por isso, que seria politicamente errada e de duvidosa a constitucionalidade de uma lei que reduzisse a escolaridade obrigatória, devendo manter-se, como atualmente, até ao fim do ensino secundário ou até que o aluno perfaça 18 anos.

De facto, qualquer iniciativa legislativa no sentido de diminuir o nível de ensino considerado como universal, obrigatório e gratuito contende quer com o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 74.º da Constituição, quer com a alínea d) do mesmo preceito, que define como incumbência do Estado garantir a todos os cidadãos o acesso a graus mais elevados de ensino. Além disso, a redução da escolaridade obrigatória conduziria, inevitavelmente, ao aumento das desigualdades, em violação clara do disposto no n.º 2 do artigo 73.º da Constituição, sobretudo na sociedade moderna, em que a formação e a qualificação são absolutamente determinantes.

A imposição da escolaridade obrigatória implica para o Estado a obrigação de criar e manter uma rede pública de ensino até este grau de escolaridade. De facto, a efetivação do direito à educação é uma tarefa pública que implica para o Estado não apenas o respeito e a proteção desse direito, mas também a sua promoção e criação de condições para que todos tenham igual acesso a esse direito.

A existência de um sistema público de ensino universal e gratuito é uma imposição constitucional e consubstancia um serviço público, uma vez que o mesmo deve ser assegurado em condições de continuidade, igualdade, neutralidade e adaptabilidade– tudo características próprias do conceito de serviço público. Mais do que isso, é uma imposição constitucional que esse serviço público seja desenvolvido pelo Estado e não por privados.

A efetivação do direito à educação é uma tarefa pública que implica para o Estado não apenas o respeito e a proteção desse direito, mas também a sua promoção e criação de condições para que todos tenham igual acesso a esse direito.

Mas não só. A universalidade e a igualdade no acesso ao ensino implicam também a criação de outras condições, tais como a proximidade da escola, uma rede de transportes gratuitos ou a preços acessíveis, apoio social escolar, cantinas, fornecimento de material escolar gratuito ou a custos reduzidos. É aqui que se inscreve a distribuição
gratuita de manuais escolares aos alunos da rede pública imposta pelas sucessivas leis do orçamento de desde 2016, porque só assim a escolaridade é realmente gratuita.

É verdade que o n.º 4 do artigo 43.º da Constituição (aditado na revisão constitucional de 1982) garante também o direito de criação de escolas particulares e cooperativas e, correlativamente, o n.º 2 do artigo 75.º estabelece que cabe ao Estado reconhecer e fiscalizar o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei, tendo desaparecido, também na revisão constitucional de 1982, a referência à supletividade do ensino privado.

Contudo, a existência de escolas particulares e cooperativas não afasta nem substitui a obrigação do Estado de criar e manter uma rede pública de ensino, na lógica constitucional de completude do sistema público de ensino que é uma tarefa do Estado.

O Estado não tem obrigação, em nome da liberdade de escolha, de criar um mercado educacional para as escolas particulares e cooperativas, reduzindo, para esse efeito, a oferta pública. Pelo contrário, a obrigação do Estado é criar e manter uma rede pública de ensino que responda totalmente às necessidades do país.

A política pública de redução dos contratos de associação seguida pelo Ministério da Educação no XXI Governo Constitucional inscreve-se neste entendimento do que é o papel do Estado na educação.

Os contratos de associação têm como objeto a concessão de subsídios aos estabelecimentos do ensino particular e cooperativo com vista a possibilitar a frequência das mesmas em condições idênticas às do ensino ministrado nas escolas públicas, o que só faz sentido quando há carência de rede pública. Por outras palavras: quando há redundância entre a rede pública e a rede privada, os contratos de associação não podem e não devem ser celebrados pelo Estado porque ao Estado cabe em primazia a prestação desta tarefa.

A ideia de liberdade de escolha é, na educação, uma falácia. Porque pressupõe – erradamente – que todas as pessoas têm iguais condições para fazer opções informadas e esclarecidas.

É que um sistema de redução da rede pública em prol da oferta privada aumenta as desigualdades e a segregação, visto que as famílias têm diferentes condições económico- sociais e tendem a optar por escolas que apresentem afinidades com a sua própria realidade social, cultural e económica.

Por sua vez, as escolas particulares, podendo fazer seleção de alunos, optarão pelos mais favorecidos económica, social e culturalmente, dificultando a integração das crianças com mais necessidades.

Veja-se, apenas a título de exemplo, uma situação em que não houvesse numa determinada zona ou região alternativa pública às escolas confessionais, o que, além do direito à educação, violaria outros direitos, como a liberdade de aprender e a liberdade religiosa, bem como a imposição de não confessionalidade no ensino público.

A liberdade de criação de estabelecimentos de ensino particular e cooperativo constitucionalmente consagrada implica para o Estado um dever de respeito que se traduz na criação de um enquadramento legislativo para o reconhecimento e funcionamento daquelas escolas, a par das necessárias medidas administrativas de execução da lei, mas não o dever de conceder apoios financeiros às escolas ou às famílias com vista à frequência de escolas particulares ou cooperativas.

A existência de um sistema público de ensino universal e gratuito é uma imposição constitucional e consubstancia um serviço público, uma vez que o mesmo deve ser assegurado em condições de continuidade, igualdade, neutralidade e adaptabilidade. É uma imposição constitucional que esse serviço público seja desenvolvido pelo Estado e não por privados

A celebração de contratos de associação com estabelecimentos do ensino particular e cooperativo apenas em zonas onde haja carência da rede pública não resulta, portanto, de um “preconceito ideológico”, mas do estrito cumprimento da Constituição, que consagra uma clara preferência pela escola pública. No caso, por exemplo, dos contratos de patrocínio no âmbito do ensino artístico, a celebração de contratos é ainda necessária devido à escassez da oferta pública, mas não exime o Estado de prosseguir no objetivo de criar escolas públicas de ensino artístico especializado.

A ideia de liberdade de escolha é, na educação, uma falácia. Porque pressupõe – erradamente – que todas as pessoas têm iguais condições para fazer opções informadas e esclarecidas. E redundaria, na prática, num poder de escolha das escolas particulares e cooperativas que fariam seleção de alunos, como já hoje acontece, ficando a escola pública para os alunos que as escolas privadas não seleccionassem.

Por isso, os meios do Estado devem ser prioritariamente canalizados para a escola pública, que é a que assegura igualdade de oportunidades (a alteração ao despacho das matrículas em 2018 no sentido de incluir uma preferência aos alunos que beneficiam de ação social escolar foi nesse sentido), porque no Estado social os serviços públicos têm de ser universais e não destinados aos menos desfavorecidos no plano económico, social e cultural. Aí reside a diferença entre o Estado social e um Estado assistencialista.

Por outras palavras: é tarefa do Estado assegurar uma educação de qualidade, de forma universal e gratuita. Os privados assumem, neste âmbito, uma função supletiva quando há carência da rede pública, não podendo o Estado subsidiar privados em redundância por isso se traduzir num desvio de recursos públicos que devem ser prioritariamente canalizados para as escolas públicas. Em geral, a opção pelo recurso a privados para a prossecução de tarefas públicas cometidas ao Estado acarreta uma descapitalização da Administração Pública que, a prazo, conduz inelutavelmente à redução da qualidade dos serviços públicos.

Ensaio originalmente publicado na edição nº4 da Revista Manifesto, de 2019.

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