Professora de História e investigadora (Slhi/Cham). É doutorada em História das Ideias Políticas pela Universidade Nova de Lisboa e foi deputada à Assembleia da República. Entre as suas obras publicadas encontram-se o Espectro dos Populismos (2008, coord.), Mulheres Contra a Ditadura (2015), Manuel Fernandes Tomás 1771-1822 (2009), e em coautoria, Os Donos de Portugal (2010).

A disputa da memória: quando os extremos se tocam e o fascismo nunca existiu

A hegemonia neoliberal construiu-se sobre a falsa comparação entre o comunismo e o nazismo. Havia que expurgar o que há de emancipador e de libertador na ideia de socialismo. O inchaço do centro político explorou-o e o senso comum digeriu-o.

Ensaio
26 Outubro 2023

É provável que já se tenha defrontado com o dichote: “os extremos tocam-se”, ou “vocês são todos a mesma coisa!”. Respondeu ou ficou a moer em silêncio, mas sempre com um compreensível sentimento de indignação ou frustração. É natural, desmontar a (falsa) equivalência parece quase sempre defensivo, quando não se opta por outras vias.

Tenho optado por usar a expressão “nova extrema-direita” enquanto ela for útil para a análise; mas quando cientistas políticos, do alto da sua escadaria, abordam o meu campo político como “extrema-esquerda” tenho vontade, entre outras fantasias, de lhes dar a ler os alertas à população da Direção-Geral de Segurança do marcelismo contra os perigosos “comunistas” e elementos de “extrema-esquerda”, os mesmos/as que trabalharam para abater a ditadura e fazer a Revolução.

Este texto não é, pois, um argumentário de autodefesa, porque o melhor argumentário é o das propostas concretas para mudar a sociedade e a vida das pessoas. É uma breve abordagem histórica das razões do anátema dos “extremos que se tocam”, e do projeto de revisão da história.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

A memória da ditadura foi, durante décadas, preventiva da entrada da extrema-direita no parlamento nacional, e à memória da Revolução se deve o trabalho mais árduo – inscrever a missão coletiva de um povo que virou o seu destino do avesso. De repente, tudo mudou, demasiado rápido para escolhermos os melhores instrumentos de resposta. Mas não foi André Ventura quem escreveu o prefácio do Livro Negro do Comunismo, nem foi ele quem encontrou este precioso título: “comunismo, nazismo e fascismo: tudo a mesma fruta”.

Quero, assim, recordar que nem a sinonímia entre ideologias e sistemas políticos é novidade, nem é património da extrema-direita. Ao invés, a hegemonia neoliberal construiu-se, desde os anos 1980, sobre este anátema, o inchaço do centro político explorou-o, e explora-o, e o senso comum digeriu-o. 

Por exemplo, o Livro negro do comunismo (editado por cá em 1998 com prefácio de José Pacheco Pereira, “uma ofensiva dos liberais contra a ideia do socialismo” irmanava o comunismo ao nazismo na vertigem da contagem dos mortos, na mistificação da história, no buldózer sobre a Revolução de 1917 e sobre a contrarrevolução estalinista. Nada lhes interessava, desde que esconjurassem o que podia haver (e há) de emancipador e de libertador na ideia de socialismo.

De facto, foi o “centro vital” desenhado pela Guerra Fria (1947-1991) como eixo das democracias liberais que banalizou a equivalência entre os “extremos” para os expurgar e para baralhar as distinções entre os campos políticos, da esquerda e da direita. É em prol deste eixo que comentadores/as e políticos/as preservam a equivalência, que, por exemplo, não se cansaram de usar nos tempos da “geringonça”. À sua maneira, o PS explorou a sua eficácia, redesenhando a geometria política – a diabolização do partido de Ventura, empurrado para os braços do PSD, e a assunção da missão salvífica de libertar a pátria do abraço da extrema-direita alargou de tal forma o seu espaço ao centro e centro-direita que já nem se espera que diga algo de esquerda.

Passaram 25 anos sobre o Livro Negro, e é hoje menos febril a discussão sobre o reflexo especular das ideologias e sistemas políticos. Adolfo Mesquita Nunes quis reabilitá-la, evocando, em 2018, que as ideologias não são a mesma coisa, mas se fundem na identidade (autoritária e totalitária) e na realidade – fome, miséria, assassinos e assassínios, ditaduras - , e que, por isso, a fruta seria toda a mesma. Fica por perceber como é que alguém associa a imagem da fruta a mortos e fomes, mas talvez Adolfo Mesquita Nunes estivesse apenas a esforçar-se por agarrar o seu CDS, que não resistiu ao berbequim da nova extrema-direita sobre a direita tradicional.

Não que a discussão dos extremos esteja definitivamente enterrada. Basta recordar a resolução do Parlamento Europeu, de 2019, associando comunismo e fascismo. Aliás, quando Ventura quis limpar as expressões “sociedade socialista” ou “regime fascista” do preâmbulo da Constituição, em 2022, estaria apenas a ser um aluno aplicado, não fosse o seu compromisso com a revisão da História e o branqueamento do fascismo.

Para o menor fervor em torno da sinonímia dos “extremos”, contribuíram as tendências de moralização e emocionalização da política, destinadas ao seu esvaziamento. Assim, tornou-se mais apetecível criar inimigos vivos, e propagar ódio, a partir da cisão entre “bons” e “maus”, do que contar mortos em nome de falsas semelhanças.

Servem estas notas para reforçar o alerta face às propostas de revisão da História feitas pela extrema-direita, e que contaminam outros territórios. O ponto de partida é o “complot” onde se afixa o mapa dos inimigos. O caldo que dão a beber é o do medo, da raiva, do ressentimento, da destruição da política.

No debate de setembro de 2022 já referido, a recusa das palavras socialismo e fascismo pelo partido de Ventura inscrevia-se numa proposta de revisão da História: não houve fascismo em Portugal. Alerte-se que quer o partido de Ventura quer o CDS assumiram, em 2020 e 2019, a revisão da História, no quadro da “guerra cultural” e do ajuste de contas com o 25 de Abril. Como o segundo ganhou a batalha, relevam-se alguns aspetos programáticos.

No programa de Diogo Pacheco de Amorim, o ajuste de contas com a Revolução de Abril e a Constituição é assumido na fundação da IV República e na morte da Constituição. O “complot marxista” está presente na denúncia da “loucura marxista”, que não desarma e pode ser observada no quotidiano, ou na condenação da história política, social e económica dos últimos 250 anos, enquanto “ditadura do pensamento único igualitário contra a liberdade”. Defende-se a Criação do Museu dos Descobrimentos e a promoção da identidade nacional e do contributo de Portugal para a história universal, com destaque para as “gestas e feitos dos nossos heróis nacionais”, bem como a promoção do ensino da História de Portugal “sem interferências revisionistas e ideologias que a adulteram”.

Preferíamos acreditar que ninguém lê aquele programa, ou que isto não passa de um rodízio de fantasias rançosas que ninguém engole.  Mas quantas pessoas acham que o fascismo não existiu em Portugal? As mesmas que confiam no colonialismo “brando”?

50 anos depois, voltemos ao fascismo, ao antifascismo e à Revolução. Os programas de História são parcos na história do antifascismo, mesmo se muitas escolas e professoras/es se esfalfam para inscrever a memória, enquanto o conceito de totalitarismo pôs o chapéu em realidades que não se confundem, pois a “redescoberta teoria do totalitarismo fazia equivaler ideológica e politicamente comunismo e nazismo como as duas faces da mesma moeda”, ocultando “os laços entre o capitalismo e o fascismo” (…)”.

50 anos depois, todos os nomes, todas as lutas, contam. Não será uma efeméride consumida numa lista de eventos e de discursos oficiais. Vale a pena, por exemplo, folhear o Diário de Lisboa, dia a dia, depois de dia 25 de Abril, e ler e voltar a sentir a Revolução que se fazia dia a dia, nas ruas, nos bairros, nos sindicatos, nas fábricas, nos campos. Quem eram elas e eles? O que os movia senão a esperança de um futuro que tinham nas mãos? O que obtiveram com a luta e o que foi adiado, para um futuro que parece que nunca mais chega? Essa é a disputa que fazemos contra a revisão da História, contra o esquecimento, contra a fatalidade, em nome do Abril que redesejamos e podemos construir.