Estudou Comunicação e Gestão na Universidade Nova de Lisboa, trabalhou em consultoria estratégica durante cinco anos antes de regressar à academia para um doutoramento na área de Comunicação Política no ISCTE-IUL. Politicamente ativa, assumidamente feminista e naturalmente opinativa.

A comunicação política do Chega: Novelas, tragédias e messias

O partido de extrema-direita apela a emoções negativas e aproveita a curta capacidade de atenção das pessoas para ultra simplificar realidades complexas, propagando desinformação e estigmatizando minorias.

Ensaio
18 Maio 2023

O Chega fez esta semana um “cerco” à sede do Partido Socialista acusando-o de ser um partido corrupto. Esta acção focou-se em José Sócrates, que já nem é militante do PS, e contou com menos de duas centenas de pessoas, mas alimentou durante dias o circo mediático à volta do Chega e, por isso, cumpriu a sua função. 

Enganar-se-ão aqueles que, mais desatentos, acreditam mesmo que o Chega quer combater a corrupção em Portugal e que esse seria o objetivo da ação deste sábado. Não faltam exemplos disso: quando, no ano passado, André Ventura faltou à discussão de medidas anticorrupção na Assembleia da República para reunir com Marine Le Pen, antiga líder do partido de extrema-direita Reunião Nacional, e todos os casos revelados na imprensa sobre suspeitas de corrupção de dirigentes e financiadores do próprio partido.

A existência de políticos populistas não é uma novidade do século XXI, nem é exclusiva da extrema-direita. Não faltam definições de populismo, mas, como início de conversa, precisamos sempre de uma. O populismo baseia-se, usando a definição dos politólogos Daniele Albertazzi e Duncan McDonnell, numa ideologia que pretende criar um confronto entre as pessoas “virtuosas” contra as “elites” e os perigosos "outros" que, em conjunto, querem retirar o poder ao povo, os seus direitos, valores, prosperidade, identidade e voz.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

É relativamente fácil identificar nesta definição o tipo de política praticada por André Ventura e pelo Chega, nem que seja pela constante lembrança de que o partido defenderá os “portugueses de bem” contra tudo e contra todos.

Se o populismo ideológico do Chega é um dado adquirido, quais são as suas práticas comunicacionais? O populismo ideológico e o populismo comunicacional são duas definições distintas, como refere o sociólogo Gustavo Cardoso. É possível um político ter práticas comunicacionais populistas e não ser populista a nível ideológico. 

Um exemplo disso é o atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, mas dificilmente este tipo híbrido consegue concorrer com o “pacote completo”. Ora, o líder do Chega é esse mesmo “pacote completo” de populismo ideológico, mas também comunicacional, como procura provar a investigadora Estrela Serrano no seu trabalho sobre momentos de comunicação de André Ventura entre 2019 e 2020.

Se a estratégia comunicacional do Chega é populista, qual o contexto e técnicas que alimentam o seu sucesso? Como se operacionaliza os “quem”, “o quê”, “como” e “onde”?

Quem? O político-celebridade

Há vários perfis de políticos. Em 1978, o politólogo Roger-Gérard Schwartzenberg escreveu, em O Estado Espetáculo, sobre os diferentes tipos de "papéis" (quase teatrais) que os políticos podem adoptar. Um exemplo é a figura do “pai”, um dos papéis de preferência de líderes autoritários que, ao mesmo tempo que se apresentam como os “cuidadores” do povo, também se distanciam criando uma ideia de poder e mistério. O conceito que, diria, mais se aplica ao caso de André Ventura é o de “político-celebridade”, uma construção que, como refere Gustavo Cardoso, é tanto sua como dos media e do sistema capitalista que requer a constante criação de novas narrativas que prendam a atenção dos consumidores de informação.

Em 2018, num artigo de opinião, Daniel Oliveira escrevia no Expresso: “Se eu escrever que André Ventura é um perigo toda a gente sorrirá. Afinal de contas, o homem é um fenómeno do Correio da Manhã TV. Um comentador da bola. Um político de 12ª linha. Um tipo sem tropas, sem poder, sem influência. Um homem que apenas procura protagonismo, que ninguém leva a sério”. Que procura protagonismo já era claro, que é um perigo para a democracia tornou-se mais óbvio desde 2019, quando a extrema-direita entrou, pela primeira vez em democracia, no parlamento.

Ventura é mais que líder do Chega, é quase a identidade do partido, a tal ponto que é criada à sua volta uma mística de quase profeta. É, ao mesmo tempo, “a voz do povo” e uma entidade superior a este. Como acontece com as celebridades, é criada uma falsa sensação de familiaridade através das narrativas mediáticas, até com alguma informação mais pessoal – por exemplo sobre a relação de André Ventura e a Igreja, que o próprio alimentava (mas que agora parece evitar desde que o seu líder espiritual foi afastado por suspeita de abusos sexuais) ou com a sua entretanto falecida coelha Acácia. Mas mantém-se, ao mesmo tempo, verdadeiramente inalcançável e inacessível.

Ventura é mais que líder do Chega, é quase a identidade do partido. É, ao mesmo tempo, “a voz do povo” e uma entidade superior a este.

O líder da extrema-direita portuguesa não é o único “político-celebridade” em Portugal. Marcelo Rebelo de Sousa é outro exemplo, mas Ventura é aquele cujo culto de personalidade mais tem vindo a crescer e a ser alimentada. Prova disso mesmo é ter sido o segundo político com mais tempo de antena nos canais de informação em abril de 2023, sendo apenas ultrapassado pelo primeiro-ministro. Não é só o facto de aparecer muito nas nossas televisões, mas também o quando aparece e o impacto que isso tem na narrativa pública – por exemplo, quando foi à CNN no 25 de Abril de 2022. 

É importante referir que um estudo na Alemanha provou que a percepção de autenticidade dos políticos (um indicador muito importante para atrair o voto) aumenta significativamente com a sua presença nos media. Os resultados disto estão à vista: não só com a normalização da sua presença e dos temas que trata nos media - a normalização já é tanta que pouco nos parece chocar –, mas também com os resultados eleitorais: passou de um único deputado para terceira força partidária no parlamento ao eleger 12 deputados em 2021.

O quê? Más notícias e tragédias

Como o sucesso jornalístico da CMTV parece comprovar, é considerado quase conhecimento popular que o “povo quer sangue”. É uma expressão usada para descrever a apetência da população pelo consumo de conteúdos noticiosos que tenham uma ótica mais negativa, ou mesmo de “tragédias”. A este fenómeno a psicologia chamou de negativity bias.

Um outro estudo, que analisou os headlines nos EUA entre 2000 e 2019, concluiu que há um aumento da proporção dos títulos que denotam raiva, medo, tristeza ou nojo. Se, por um lado, parece que somos mais atraídos por notícias negativas (quase como no fenómeno em que é impossível não parar para ver um acidente de carro), por outro também acabamos por evitar as notícias por nos estragarem o humor. Esta é precisamente uma das conclusões do Digital News Report de 2022.

A extrema-direita conhece bem este fenómeno e usa-o em seu benefício de duas formas: 1) alimentando narrativas mediáticas e temas que apelem a emoções negativas; 2) aproveitando a curta capacidade de atenção e essa fuga para ultra simplificar realidades complexas, propaganda misinformation (ou mesmo desinformação). Se o tópico “quente” da manifestação desta semana foi a corrupção, outros temas preferidos são a sobrevalorização da comunidade cigana (relacionando-a com criminalidade) e da subsidiodependência, o tópico do crime e da segurança (Portugal é o sexto país mais seguro do mundo) e as soluções anti-constitucionais e sangrentas, como a castração química de pedófilos (sangue é sempre um plus, lembram-se?). Há, portanto, uma “lógica confrontacional, emocional, sensacionalista e simplificadora da realidade", como refere Gustavo Cardoso.

Somos mais atraídos por notícias negativas ou evitamos notícias, de todo, por nos estragarem o humor. A extrema-direita conhece bem este fenómeno e usa-o em seu benefício.

Novamente, não é só o Chega que usa esta estratégia. A Iniciativa Liberal já tem vindo a usar esta ultra-simplificação quando, por exemplo, aborda “as gorduras do Estado” e a necessidade de baixar impostos. Fá-lo ao mesmo tempo que critica a falta de qualidade dos serviços públicos financiados por esse mesmo meio. Recentemente também o PSD, por exemplo através de Carlos Moedas, tem também começado a abordar temas como a imigração de forma mais populista e, quando questionado, entra mesmo numa posição de confronto e de apelo à emoção.

Se, como já referi, a comunicação política populista não é suficiente para combater um partido populista na comunicação e a nível ideológico, devemos questionar-nos se (ou quando é que) a direita democrática se deixará contagiar não só a nível comunicacional, mas também programático.

Como? Novela noticiosa

Estabelecido o “quem” (político-celebridade) e “o quê” (temas que apelem a emoções negativas e que ultra simplificam realidades complexas), importa abordar o “como”. Este “como” requer um contexto mediático específico. 

Como argumenta o professor de Comunicação Política Gianpietro Mazzoleni, apesar dos movimentos populistas na Europa não terem sido criados pelos media (o eterno debate do ovo e da galinha), estes são sem dúvida fundamentais para a legitimação dos assuntos, palavras-chave e estilos de comunicação dos líderes populistas. São-no tanto no papel que têm na disseminação de conteúdos como na criação de uma atmosfera mediática de desconfiança e desapego.

Esta atmosfera mediática é criada através da “desordem comunicativa” que é a “novelização noticiosa”, como aponta Gustavo Cardoso. Esta “novelização noticiosa” prolonga o tempo narrativo, através da criação de histórias e dando palco a personagens paralelos, recorrendo a opinião e comentário sobre o tema. Cria “dinâmicas de alimentação e retroalimentação entre redações e públicos e entre estes últimos e os primeiros, ora usando o jornalismo, ora o comentário nas redes e medias sociais”.

Um exemplo claro desta “desordem comunicativa” é o acompanhamento noticioso das Comissões de Inquérito (CPI), mais recentemente à TAP, mas também a anteriores como a do Novo Banco. O acompanhamento noticioso da CPI é feito quase como se fosse um jogo de futebol, em que aos diretos se aliam comentadores e analistas que comentam não só a CPI, mas também (e às vezes, em particular) o que os comentadores dizem da mesma. O foco deixa de ser o tema da CPI, mas o empolar de situações políticas que contribuem para a narrativa dos “bons” e dos “maus”, que é levada à exaustão na análise.

Os líderes populistas ajudam na criação de uma atmosfera mediática de desconfiança e desapego; uma “desordem comunicativa”.

Mais uma vez, não é só o Chega que alimenta e se aproveita desta “desordem comunicativa”. Na CPI em que o foco é a gestão da TAP – em que os partidos à esquerda fazem questões sobre as decisões de gestão, compra de aviões, direitos laborais, etc. – os partidos à direita têm-se focado em explorar casos que possam acentuar uma crise política. O foco noticioso está, claro, no trabalho dos partidos da direita.

Uma oposição política baseada em casos (e casinhos), e não em programas e propostas políticas, contribui para a deslegitimação do regime democrático, o que favorece a estratégia da extrema-direita de revanchismo político. Além disso, o vazio programático (ou a crise programática e estratégica) à direita permite ao Chega continuar sem apresentar propostas e soluções concretas para os problemas do país, cavalgando o descontentamento popular. Mas, como parece resultar a nível do foco noticioso, também não há incentivo para fazer diferente.

Onde? Utilização das redes sociais para broadcast

Uma das principais características do estilo de comunicação populista é a procura de meios sem mediação. Ou seja, de comunicação direta, sem intermediários, com os eleitores – o que é, de certa forma, uma hipocrisia pela forma como vemos os média tradicionais alavancarem o Chega e André Ventura. As plataformas de redes sociais são os media perfeitos para esse tipo de comunicação, não só por ser uma forma de comunicação direta (sem passar por redações dos media tradicionais, por editores ou qualquer forma de gatekeeping), mas por permitir a viralidade dos conteúdos pela personalização dos algoritmos.

Um estudo de 2020 sobre a forma como o Chega utiliza as plataformas de redes sociais concluiu que o Facebook é usado como meio preferencial para difundir os conteúdos e atrair novos seguidores, enquanto o YouTube se debruça no culto ao líder e o Twitter é pouco utilizado – e é de relembrar que só entre 2021 e 2022 foi suspenso três vezes pelas suas publicações no Twitter.

Não foi, no entanto, o único estudo a debruçar-se sobre o uso das redes sociais pela extrema-direita portuguesa. Um outro estudo do MediaLab analisou em profundidade o fenómeno da viralidade mediática de André Ventura nas redes sociais desde os seus tempos de comentador de futebol até às eleições presidenciais de 2021. As conclusões referem a utilização de conteúdos controversos (castração química, por exemplo) reciclados de tempo a tempo para dar um boost nas interações, criando mais viralidade e atenção para as páginas, mesmo que seja a custo de críticas. Nos grupos de apoio no Facebook, menos de 1% dos membros do grupos são responsáveis pela quase totalidade das publicações, cabendo aos restantes a interação e partilha dos conteúdos.

O espetáculo que proporcionou com a manifestação no Largo do Rato é só mais um favor que Ventura, como "político-celebridade", faz aos media, dando conteúdo para encher os canais de informação 24 horas.

Em relação ao Twitter, resultados preliminares de um estudo em que estou a trabalhar no âmbito do meu doutoramento no ISCTE-IUL mostram que os deputados do Chega são os que menos interagem com outras contas – de forma muito diferente da média dos deputados dos restantes partidos. Outro fator de interesse na análise dos tweets é que André Ventura partilha vários links para websites de notícias, usando-as para alavancar a sua narrativa. Ou seja, cria-se uma espécie de ciclo em que os conteúdos são partilhados nas redes sociais do Chega e de André Ventura, são depois analisados pelos media e, consequentemente, essas notícias acabam por ser alvo de comentário nas redes sociais do Chega e de André Ventura.

Voltando à ideia do político-celebridade, a quase inexistente interação de André Ventura nas redes sociais acentua a ideia de familiaridade (estamos sempre a par do que está a fazer), mas ao mesmo tempo é inalcançável. Esta prática é o oposto do que é feito pelos deputados da Iniciativa Liberal, do Bloco de Esquerda, alguns deputados do Partido Socialista e, em particular, pelo deputado único do Livre, Rui Tavares.

Podemos dizer que as práticas comunicacionais do partido de extrema-direita, e de Ventura em particular, não são exclusivas, mas são o Chega e o seu líder quem as combina a todas de forma diferenciada. É Ventura que, como político-celebridade, foca a sua comunicação em conteúdos que apelem a emoções negativas, aproveita-se e alimenta o contexto de novela noticiosa e usa as redes sociais para disseminar a sua palavra, tal messias, mas sem verdadeiramente interagir com o povo que diz representar.

O espetáculo que proporcionou com a manifestação no Largo do Rato é só mais um favor que Ventura faz aos media, dando conteúdo para encher os canais de informação 24 horas que precisam sempre de algo a ser “mastigado”, sem que algo esteja realmente a mudar a nível prático ou político. Depois pode voltar a ser nomeado paladino contra a corrupção, especialmente se for em concursos em que os seus eleitores o possam nomear, para ele depois vender essa imagem como se tivesse sido um painel independente a fazê-lo. Passamos do “não basta ser, é preciso parecer” para o “não é preciso ser, basta parecer”. O problema? É que a estratégia resulta e exemplos disso não faltam pelo mundo fora.