Jornalista desde 1998. Foi grande-repórter na Visão, no Público e no Diário de Notícias. Atualmente é presidente da cooperativa Investigate Europe, grupo permanente de jornalistas europeus criado em 2016. É autor de três livros de não-ficção sobre a oposição estudantil à ditadura, a crise bancária e a desinformação.

Como nasceu um projecto de jornalismo transfronteiriço

O Investigate Europe é uma equipa de investigação transfronteiriça de jornalistas que investiga temas de relevância europeia e publica-os simultaneamente em 15 países. Os nossos resultados comuns são publicados em cada país na sua língua nacional.

Ensaio
16 Junho 2022

Era uma tarde daquelas em que o reflexo do sol na calçada portuguesa nos encandeava. Eu cheguei, como sempre, dez minutos antes da hora marcada e sentei-me numa esplanada do Largo do Intendente, que era então o novo hype multicultural da cidade. O homem que me telefonara para combinar uma conversa chegou. De passos rápidos, alto, magro, tão louro que nunca chegará a ter cabelos grisalhos.

Foi assim que conheci Harald Schumann, jornalista alemão, nascido em Wuppertal, na Renânia do Norte-Vestfália, em 1957 e que, por isso, tinha muito mundo. Viu crescer e ser derrubado o Muro de Berlim (cidade onde vive agora), e tornou-se um repórter especializado nos anos 80, depois de ter sido ambientalista, quando os seus textos sobre Chernobyl mostraram toda a bagagem científica do arquitecto paisagista que ainda restava nele.

Em Junho de 2014 o tempo fugia-nos. Ainda havia a troika e, sem que o soubéssemos logo, estavam quase a desaparecer o BES e a PT. Portugal foi goleado pela Alemanha no campeonato do Mundo de futebol do Brasil e o PS preparava-se para eleger António Costa, depois de ter ganho por pouco à coligação PSD-CDS nas eleições europeias. Harald Schumann estava em Lisboa com uma equipa de filmagens a fazer um documentário para o canal franco-alemão Arte. Lera o que escrevia no Público sobre a crise financeira portuguesa e pediu-me uns minutos de conversa.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

Rapidamente percebemos que os nossos trabalhos nos levavam a conclusões semelhantes. Resumidamente, que não estávamos a ser capazes, como jornalistas, de contar a história toda daqueles anos de mudança brusca. Em Portugal, a explicação para a crise era conhecida: “vivemos acima das nossas possibilidades”. Na Alemanha, a voz corrente era parecida: “os contribuintes alemães estão a ajudar os países pobres como a Grécia, a Irlanda e Portugal a sair de uma crise que eles próprios criaram”.

O Investigative Europe é, desde 2019, uma das poucas cooperativas europeias existentes. Não pretendemos, nem podemos legalmente, gerar lucros e reparti-los entre nós. Somos um projecto sem fins lucrativos.

Eu e o Harald tínhamos passado os últimos anos a recolher provas de que nada disso era verdade. Como ele me disse numa entrevista que me deu nessa altura, “o verdadeiro objectivo dos ‘planos de resgate’ foi salvar os bancos - alemães, franceses, ingleses.” Eu acabara de publicar um livro que tirava essas mesmas conclusões. Isso tornava evidente o nosso maior problema. Estávamos a contar uma história que era global, europeia, e só depois nacional, invertendo a ordem de importância dessas escalas. As nossas histórias eram nacionais, locais, e ignoravam a dimensão fundamental que as explicava. Por isso, para além das reportagens para o jornal onde era editor especial, o Der Tagesspiegel, Harald Schumann estava a fazer aquele documentário que o levou, entre outros lugares, a Lisboa, a Atenas, a Washington e ao Chipre.

No jantar de despedida, que tivemos em Lisboa no final da rodagem, eu queixei-me disso: devíamos estar a fazer de modo permanente o que ele tentava neste documentário.

O que eu tinha na cabeça, nessa altura, era uma ideia errada, admito. Pensava numa espécie de The New Yorker europeia, uma publicação de grande reportagem para uma demografia inexistente — uma opinião pública europeia —, que não se entende numa língua franca, não tem uma sede óbvia e, rapidamente, como demonstraram as várias tentativas feitas nos últimos anos, se tornaria num meio de comunicação de uma bolha restrita de altos quadros, funcionários europeus, europeístas conquistados.

Na cabeça de Harald Schumann a ideia ficou e ganhou forma. Em Janeiro de 2016 tivemos a nossa primeira reunião, em Berlim. Em Julho chegámos a acordo sobre quase tudo o que precisávamos para arrancar. Estávamos em Bruxelas, reunidos na casa da nossa colega italiana Maria Maggiore - que ali vivia e trabalhava. A reunião terminou na tarde do dia 10 de Julho, o que me fez sobrevoar o Stade de France enquanto se jogava a final França-Portugal e aterrar em Lisboa a tempo de ver o golo de Éder na televisão. Já nos chamávamos Investigate Europe (uma longa discussão que nos dividiu quase até ao fim).

Tínhamos um manifesto, que é sempre um bom ponto de partida. “O mundo de hoje não se detém nas fronteiras nacionais. Os jornalistas também não o devem fazer.” Tínhamos também uma equipa base - Elisa Simantke, a mais jovem repórter do grupo, alemã, Wojciech Ciesla, polaco, Ingeborg Eliassen, norueguesa, Maria Maggiore, italiana, Nikolas Leontopoulos, grego, Brigitte After, alemã a residir na Dinamarca e Christophe Garach, francês. Desde então, Christophe saiu da equipa e foi substituído por Leila Miñano, de Paris, Brigitte é a responsável pelo grupo de aconselhamento editorial do projecto, e entraram para a equipa permanente Juliet Ferguson (Londres) e Nico Schmidt (Berlim). Temos agora um responsável administrativo, Oliver Moldenhauer.

O Investigate Europe é uma equipa de investigação transfronteiriça de jornalistas que investiga temas de relevância europeia e publica-os simultaneamente em 15 países. Os nossos resultados comuns são publicados em cada país, na língua nacional.

Imaginar como fazer isso era, já de si, uma tarefa ciclópica. Se vivíamos todos em pontas distintas do continente, seria preciso criar uma rede de comunicação eficaz. Decidimos que nos reuniríamos semanalmente, por videoconferência. Testámos vários sistemas, seguros e encriptados, e fixámo-nos num serviço de software livre, o Whereby. Mas teríamos também de ter um sistema de mensagens seguro e por isso instalámos o Mattermost, um chat que nos garante alguma inviolabilidade nas nossas conversas e um sistema prático que funciona tanto no computador como nos telemóveis. Para partilharmos tudo o resto (documentos, elementos de reportagem, entrevistas) temos um sistema editorial e uma cloud própria para armazenarmos a informação, no Next Cloud, com Only Office.

Nada disto é apenas técnico, ou uma escolha de ferramentas. Para terem uma ideia: eu vou entrevistar alguém em Lisboa, de seguida transcrevo a entrevista para português, como é normal, mas depois traduzo-a para inglês, crio um ficheiro de trabalho no sistema editorial da equipa, coloco lá a entrevista traduzida e toda a equipa a lê, aponta questões mal explicadas, pede que faça follow-up de algum assunto. Isto é o dia-a-dia de uma equipa deste tipo. Mas ainda se torna mais complicado… Nós partilhamos tudo entre nós e rapidamente chegamos a ter centenas de ficheiros sobre o tema em que estamos a trabalhar. Depois precisamos de extrair dessa enorme quantidade de informação uma história com lógica e relevância jornalística.

Geralmente, o debate sobre os temas é feito presencialmente, numa reunião de dois dias com toda a equipa. Dividimos entre nós responsabilidades pela edição de partes da história (capítulos, como lhe chamamos). Em regra, um de nós edita um tema, outros ficam responsáveis por capítulos desse tema, e no final cada um apresenta a sua parte das conclusões do trabalho. Entramos então na parte mais difícil: construir uma sinopse da história. Criamos uma wiki, que pode ter dezenas de páginas, em que todas as nossas principais descobertas, citações e dados são organizados e creditados uniformemente (com links e referências). Quando cada um de nós se prepara para escrever o seu texto, é na wiki que encontra a lógica do trabalho.

Mas cada um escreve o seu próprio texto. Dou-vos um exemplo. O nosso primeiro trabalho conjunto, em 2016, foi sobre a nova política europeia de fronteiras. Eu comecei o meu texto descrevendo o que vira no Cais do Sodré, em Lisboa, na discreta Agência Europeia de Segurança Marítima (EMSA). O meu colega polaco começou por explicar o que se passa na Frontex, em Varsóvia. E assim por diante. A colaboração permite-nos chegar a todos os cantos onde a mesma história ganha sentidos complementares.

O jornalismo colaborativo transfronteiriço é mais necessário do que nunca para explicar um mundo em mudança.

Para outra história desse trabalho, falei com o sub-chefe da Polícia Marítima Pacheco Antunes, em Lisboa. Ele tinha regressado de uma missão no Mar Egeu e contou-me a terrível história dos naufrágios de refugiados entre a ilha grega de Lesbos e a costa da Turquia. O meu colega grego, Nikolas Leontopoulos, tinha estado a fazer reportagem com os protagonistas gregos, e a minha colega Ingeborg Eliassen tinha viajado num barco norueguês que resgatava pessoas no Mediterrâneo. No final, a nossa história ficou muito mais completa, e densa, do que a que eu poderia fazer sozinho, visitando todos os lugares e falando com as mesmas pessoas.

Desde então já publicámos 15 grandes temas, divididos em muitas dezenas de publicações em cada país. Fronteiras, dependência dos estados da Microsoft, a influência da China na Europa, as campanhas de fake news anti-refugiados, o peso do novo gigante financeiro BlackRock, os segredos do Conselho Europeu, o dinheiro que os estados dão em subsídios aos produtos petrolíferos que põem em risco a nossa segurança ambiental. E, é claro, nestes últimos meses, todas as histórias relacionadas com a pandemia do covid-19 - da falta de acordo sobre a resposta à crise até ao “nacionalismo das vacinas”, que ameaça o futuro próximo.

Para que tudo isto seja possível, talvez seja o momento certo para falar da outra dimensão relevante deste projecto: a forma de financiar o jornalismo que fazemos. Nós somos, desde 2019, uma das poucas cooperativas europeias existentes. Isto significa que não pretendemos, nem podemos legalmente, gerar lucros e reparti-los entre nós. Somos um projecto sem fins lucrativos. Financiamo-nos de várias maneiras.

A mais óbvia é a venda dos nossos trabalhos aos media que os publicam (o que é, apesar de tudo, uma receita baixa, porque o normal, sobretudo no Sul da Europa, é que um trabalho grande, que demorou dois ou três meses a ser feito, seja comprado por menos de 500 euros). Tentamos colmatar esse problema com campanhas de crowdfunding em todos os países. Em poucos, como a Alemanha, os nossos leitores respondem ao apelo e fazem doações significativas. Na maioria, porém, como é o caso de Portugal, não chegamos a ter cinco pessoas que contribuam regularmente.

O financiamento maior vem de fundações europeias que nos atribuíram bolsas e doações. Embora estas fundações tenham estatutos e objectivos muito diferentes, todas elas apoiam a nossa abordagem. No entanto, isto não significa que as nossas histórias sejam, de forma alguma, sugeridas pelos doadores. Essa responsabilidade recai exclusivamente sobre nós, os jornalistas.

Esta forma de financiamento permite-nos tentar um modelo diferente, que procura refazer alguma da confiança perdida entre os cidadãos e os jornalistas. Na nossa opinião, o jornalismo colaborativo transfronteiriço é mais necessário do que nunca para explicar um mundo em mudança.

Paulo Pena escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

Este testemunho foi originalmente publicado no Manual de Reportagem REC, organizado por Pedro Coelho, Ana Isabel Reis e Luís Bonixe, e editado pelos Livros Labcom em 2021.