Mora no Rio de Janeiro. É jornalista, roteirista, pesquisador e mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Colabora com a Folha de S. Paulo, o Valor Econômico e as revistas Cult e Piauí. Correspondente no Brasil do Fumaça, colabora também para o Expresso. Autor da peça "Quem vai ficar com Juca?". Foi repórter da revista Época e coordenador de comunicação e editorial da Festa Literária Internacional de Paraty - Flip. 

A Argentina de Javier Milei: um novo Estado de exceção que pode virar regra

O presidente argentino vem impondo um regime inédito em âmbito global, por meio da união do ultraliberalismo com o autoritarismo, manifestado tanto pela repressão e pela suspensão de políticas sociais e direitos consagrados na Constituição do país.

Ensaio
22 Fevereiro 2024

Um corpo estranho se somou às centenas de manifestantes em frente ao Congresso Nacional argentino para pressionar os legisladores a derrubar a “Lei Ônibus”, um conjunto de propostas de desregulação econômica. Era uma quarta-feira, 7 de fevereiro. Vestidos de negro, policiais e militares cercaram a frente do edíficio do Legislativo, a praça diante do mesmo e as ruas próximas. 

O objetivo era impedir que a manifestação transbordasse para as ruas, desobedecendo o “Protocolo Bullrich”, como ficou conhecida a série de medidas da ministra de Segurança, Patricia Bullrich, para impedir o direito à livre manifestação. A repressão, entretanto, não se resumiu à presença intimidadora das forças de segurança.

Ouviram-se, de súbito, gritos. Atacados com balas de plástico, os manifestantes, entre os quais idosos e crianças, correram para os arredores. As forças de segurança, em carros e motos, os perseguiram e atacaram também com gás de pimenta. A cena se repetiu pelos dois dias seguintes. 

Na sexta-feira, 9 de fevereiro, a “Lei Ônibus” caiu, mas nessa altura já tinham sido contabilizados mais de 300 feridos. Quatro garotas da Unión Cívica Radical (UCR) – partido moderado – foram detidas. As detenções se somaram a outras ocorridas em dezembro, quando argentinos de diferentes partes do país ocuparam as ruas – e as grades do Congresso – em protesto ao anúncio do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) do presidente anarcocapitalista Javier Milei (Libertad Avanza). Foi o início do regime de exceção de Milei.

Por meio de 366 artigos que compõem o DNU, o presidente retirou do Estado o papel de mediador de conflitos e de regulador. De todos os pontos, até agora, apenas a reforma trabalhista foi revogada, por ação da Justiça. Os demais seguem em vigor. Entre eles, estão o fim da “Lei de Gôndolas”, que regulava os preços de determinados produtos alimentícios, de forma a impedir o desabastecimento e a especulação com preços de produtos, num contexto de inflação superior a 200% ao ano.

O fim da “Lei dos Aluguéis” também acabou com qualquer regulação no setor. A medida prejudicou entre 9 e 10 milhões de argentinos, num país com uma população de 47 milhões de pessoas. Agora, é possível que os alugueis sejam cobrados em dólar num país que sofre de escassez da moeda. Também é possível que a correção monetária, em decorrência da inflação, seja feita conforme o desejo do senhorio, que pode, inclusive, fazer correções mensais. No ano passado, a inflação argentina foi de 211%.

O DNU também abre de maneira indiscriminada a economia para o setor externo, prejudicando o segmento produtivo local, e promove uma desregulação da “Lei de Terras”, permitindo a aquisição de parte do território por estrangeiros. A “Lei Ônibus”, com 664 artigos originais, visava um aprofundamento desse projeto. Ante a derrota no Legislativo, Milei pretende emitir novos decretos, de modo a implementar as medidas à força.

Enquanto busca impor suas medidas, Milei tem cortado transferências de verbas às províncias, suspendido remédios e tratamentos para pessoas que sofrem de doenças crônicas, imposto aumentos de até 600% no transporte público e cortado o fornecimento de alimentos aos “comedores”, como são chamados os restaurantes populares e gratuitos, que atendem a uma população crescente de pobres e miseráveis. Em apenas dois meses, a pobreza e a indigência na Argentina aumentaram em mais de 20%, atingindo 27 milhões de pessoas.

Paulatinamente, Milei vem impondo um regime inédito em âmbito global, por meio da união do ultraliberalismo com o autoritarismo, manifestado tanto pela repressão propriamente dita quanto pela suspensão de políticas sociais e direitos consagrados na Constituição do país.

Para quem vive fora da Argentina, pode parecer que se trata de um problema menor e local. É preciso, todavia, colocar a história político-económica da Argentina em contexto mundial. Só assim é possível compreender a gravidade das ações de Milei e como elas podem, inclusive, impactar outros países. Como vem acontecendo desde os anos 1970.

Os anos 1970: o laboratório liberal-autoritário

O início da década de 1970 transformou o mundo no instante em que o governo do republicano Richard Nixon, em 1971, deu por encerrado o padrão ouro-dólar, que ligava a impressão da moeda norte-americana às reservas em ouro, consagrado em Bretton Woods (1944). Foi o início do fim do controle da política sobre a economia e, sobretudo, sobre o setor financeiro. Um padrão que viria a ser hegemônico a partir dos governos do republicano Ronald Reagan nos Estados Unidos e da primeira-ministra conservadora britânica Margaret Thatcher.

Antes que as políticas de desregulação do setor financeiro, de enfraquecimento do  setor produtivo e redução do Estado social fossem implementadas pela dupla anglo-saxónica em seus países, duas nações serviram como laboratório. Afinal, essas medidas têm também como finalidade aumentar a exploração dos países periféricos a fim de aumentar a riqueza e a influência dos países centrais.

O primeiro país a servir como laboratório foi o Chile do ditador Augusto Pinochet, em 1973. O outro, e este sim de maior impacto, foi a Argentina da Junta Militar. A razão da diferença de impacto é evidente: a economia argentina era cinco vezes maior que a chilena e contava com uma base produtiva mais diversificada.

Em 24 de março 1976, quando a Junta Militar levou a cabo  o golpe que derrubou  Isabelita Perón, vice-presidente que havia sucedido ao seu marido Juan Perón, o liberalismo económico e o autoritarismo já eram preponderantes na Argentina.

Em seu breve terceiro governo, Juan Perón buscou um pacto entre o capital produtivo e o trabalho na política económica e deu início à perseguição da esquerda armada, por meio da Aliança Anticomunista Argentina, a Três A. Com sua morte, em 1974, esse pacto ruiu, o liberalismo económico ascendeu e a repressão se intensificou. Os primeiros sequestros e desaparecimentos de militantes ocorreram já nesse período. Muitos argentinos exilaram-se no Brasil nessa época, acreditando nas promessas de “abertura lenta, gradual e segura” do governo do general Ernesto Geisel.

Entretanto, foi a partir do governo da Junta Militar, que tinha José Alfredo Martínez de Hoz à frente do comando da economia, que esse casamento entre o setor liberal-financeiro e o autoritarismo se tornaram uma política de Estado.

A abertura económica, a reforma financeira e a subida dos juros deram início ao desmonte do setor industrial e produtivo argentino e tornaram o setor das finanças como o mais poderoso da economia do país. Foi, na imagem do escritor liberal Marcos Aguinis, um período de “júbilo e tragédia”, no qual a população, mesmo a mais pobre, vivia da especulação financeira enquanto cerca de 30 mil pessoas foram sequestradas, mortas e desaparecidas e mais de 400 recém-nascidos roubados de suas mães encarceradas.

Para se ter uma ideia do impacto, 40% dos produtos exportados pela indústria de transformação brasileira naquela época iam para a Argentina. Cinquenta anos antes, o país tinha uma economia menor que a argentina. Nos anos 1980, tinha uma participação semelhante à dos Estados Unidos em sua economia.

O fracasso do modelo, entretanto, não foi suficiente para reverter a tendência. Nem na Argentina nem no resto da América Latina.

A “perestroika” à margem do Prata

Passada a crise do início dos anos 1980, a economia dos Estados Unidos descolou com uma política baseada na desregulação do setor financeiro, a redução das políticas sociais e da alíquota tributária e o aumento de gastos militares. O bom desempenho de Reagan, somado à influência dos Estados Unidos sobre a América Latina, em razão da crise da dívida externa dos países, fortaleceu a influência do ideário econômico que, em 1989, seria reunido no chamado “Consenso de Washington”, uma série de propostas liberalizantes para os países periféricos.

O fracasso do governo social-democrata de Raúl Alfonsín, derrubado em 1989, fortaleceu esse ideário na Argentina, levando o país a uma espécie de “perestroika” às margens do Prata. E a imagem não é uma hipérbole. Apesar da hegemonia do chamado “neoliberalismo” – preponderante em todo o mundo nos anos 1990, com exceção da China – nenhum país, ademais da Rússia, viveu um processo de abertura económica e desmonte do Estado como a Argentina dos anos 1990.

Ao longo da década governada pelo peronista de direita Carlos Saúl Menem, a Argentina privatizou ou fechou 68 empresas estatais, incluindo sua empresa de aviação e de petróleo, privatizou o sistema previdenciário, liberalizou o mercado de trabalho e abriu a economia, fragilizando ainda mais o setor produtivo. A série de medidas respondia ao consenso da época – de reduzir o Estado social, desmontar o Estado “empresário” e deixar que o mercado se firmasse como o regulador da sociedade. 

À parte a ideologia e os interesses económicos que ela buscava justificar, havia a necessidade de atrair dólares para manter a paridade entre o peso (a moeda local) e o dólar, determinada por lei. Uma medida fatal para o setor produtivo, como o Euro para os países periféricos da Europa, que não podem desvalorizar a moeda para estimular a economia a partir do setor exportador. Além disso, o governo permitiu a poupança em dólar.

A Argentina dos anos 1990 atraiu tanta gente interessada em suas riquezas quanto durante a da época da colónia. O sucesso inicial e aparente de Menem, que conseguiu baixar a inflação e gerar crescimento económico, teve bastante influência na região. Um exemplo é o Uruguai, que se tornou uma espécie de paraíso fiscal argentino. Mas também o governo liberal-autoritário de Alberto Fujimori no Peru. Assim como os governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso no Brasil, que só não viveram esse período com a mesma intensidade por causa do tamanho do seu setor produtivo e estatal, que barrou em parte esse processo. Ainda assim, o Brasil vendeu 69 empresas estatais. Tratava-se, entretanto, de uma economia três vezes maior que a argentina.

Foi tamanha a influência dessa ideologia que a Argentina a sustentou, apesar das crises cambiais dos países emergentes nos anos 1990, e a manteve até 2001. Em dezembro daquele ano, uma fuga de capitais externos acabou com o “Eldorado da Paridade”. Sem reservas, o governo de Fernando de La Rúa congelou as contas em dólar, deixando a população à mercê, sem condições de se sustentar e pagar as contas. Foi o início de uma rebelião. O país teve seis presidentes entre o final de dezembro e o início de janeiro. Três num mesmo dia.

A nova onda do liberalismo

Os “anos K” – como são chamados os 12 anos de Néstor (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007-2015) – buscaram e em parte conseguiram reverter parte das duas décadas e meia de abertura económica, financeirização e semi-dolarização. Pagaram a dívida externa, investiram nos setores produtivos, reestatizaram empresas e reestruturaram o Estado social. Mas foi como se tivessem erguido um edifício sobre uma terra em tremor. 

Após décadas de desindustrialização e fragilização do Estado, a Argentina, como os demais países da América Latina, havia se tornado um país mais dependente do setor agroexportador. Com a queda da demanda da China e as pressões dos Estados Unidos, a partir de 2011, o país começou a perder dinamismo, voltou a ter problemas inflacionários e a disputa política se radicalizou. Anteciparam-se, assim, processos que viriam a acontecer nos demais países do continente. No Brasil, com a Operação Lava Jato e o impeachment de Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores). No Equador, com a perseguição a Rafael Correa (Revolución Ciudadana). Na Bolívia, com o golpe contra Evo Morales (MAS, de centro esquerda). No Chile com os protestos massivos contra os governos da progressista Michele Bachelet e do conservador Sebastian Piñera.

A crise final dos “anos K”, que levou à ascensão do empresário Mauricio Macri, antecipou a crise que vemos acontecer nestes países. O governo da Proposta Republicana (PRO) retomou políticas semelhantes à da ditadura da Junta Militar e dos governos Menem e De La Rúa. Cortou direitos sociais, liberalizou o mercado de câmbio, enfraquecendo o peso frente ao dólar, e tomou o maior empréstimo da história do Fundo Monetário Internacional (FMI): US$44 bi, que deteriora a situação econômica e muda o patamar de inflação.

O fracasso do governo peronista que o sucedeu, o qual levou a inflação a um índice superior a 100% ao ano, abriu espaço para a ascensão de Javier Milei, até então visto como um economista excêntrico, sempre levado à imprensa para criticar os peronistas.

Milei chegou ao poder colocando-se como inimigo da “casta política”, do mesmo modo que Donald Trump e Jair Bolsonaro ascenderam afirmando-se defensores das pessoas comuns. Trump baixou para 14% os impostos dos ricos e Jair Bolsonaro foi sustentado pelo setor liberal-económico, que muito beneficiou do seu governo. Em nenhum caso, entretanto, chegou-se ao limite e à intensidade de Milei. Amparado na direita liderada por Macri, o anarcocapitalista busca desmontar a estrutura do Estado como regulador e mediador dos conflitos socioeconómicos, enquanto os macristas veem seus interesses  atendidos, por meio das desregulações econômicas e o arrocho social.

Se seu plano de desmonte do Estado se logra, os países periféricos – as nações da América Latina, da periferia da Europa, da África –, mas não somente, terão diante de si um novo modelo político e económico, como o “laboratório argentino”  dos anos 1970 e as políticas de Menem.

Estas políticas, por horríveis que fossem, resumiam-se a um desmonte parcial do Estado, como indutor e gestor da economia e promotor da igualdade socioeconômica. O que Milei implementa é algo maior e pior: o desmonte do Estado como estrutura, mantendo-o, basicamente, como um elemento de monopólio da violência, para reprimir a oposição à crise social. Se bem sucedido, será um farol para os anarcocapitalistas que vêm crescendo na cena política brasileira, portuguesa, chilena e afins. Se fracassar, será obra de um louco.

A questão é: estarão os outros países imunes à loucura? De qualquer modo, o método de ação está dado.