Alexis Tsipras fez com que a esquerda grega atingisse mínimos históricos

O Syriza vai eleger um novo líder depois de Alexis Tsipras ter renunciado à liderança do partido grego. Deixa a esquerda grega no seu ponto mais baixo em décadas, enquanto a extrema-direita explora um sentimento generalizado de desespero social.

Ensaio
24 Agosto 2023

A renúncia de Alexis Tsipras à liderança do Syriza, a 29 de junho, simboliza o fim de uma era. Uma era que começou na primavera de 2010 com a imposição de uma terapia de choque neoliberal brutal e sem precedentes e a imposição de uma tutela da União Europeia (UE) sobre a Grécia. Mas foi também o momento de uma onda impressionante de mobilização popular e, em janeiro de 2015, da chegada ao poder de uma força da esquerda radical até aí nas margens do sistema político. Sete meses depois veio a capitulação dessa mesma formação aos diktats da UE  – e a destruição da esperança que este pequeno país representou nesses tumultuosos anos.

A demissão de Tsipras acontece depois dos pobres resultados do Syriza nas últimas duas eleições legislativas de maio e junho. Ambas reiteraram o fortalecimento das forças conservadoras e de extrema-direita, e uma marcada derrota da esquerda. Três elementos saltam à vista. 

Primeiro, o partido conservador Nova Democracia, do primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis, consolidou o seu domínio político. Depois, a agudização do declínio do Syriza, que perdeu o seu papel enquanto oposição capaz de regressar ao poder num futuro próximo. Enfim, o PASOK, velho partido social-democrata, não conseguiu, de maio para junho, aumentar o seu número de votantes. Sendo uma força inteiramente sistémica e internamente minada por estratégias contraditórias, o partido não consegue apresentar-se como alternativa de governo.

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A repetição das eleições, em junho e com um sistema eleitoral diferente do das eleições de maio, deu ao Nova Democracia de Mitsotakis uma maioria absoluta no parlamento. Os conservadores, em conjunto com a extrema-direita, conseguiram quase 55% do voto popular. Foi a primeira maioria absoluta da direita desde 1974, recuperando totalmente da queda sofrida depois da crise financeira de 2008.

A subida da extrema-direita, agora representada no parlamento por três partidos, é sinal da radicalização da direita tradicional. A sua expressão mais aguda é a reconstituição de uma força neonazi (Os Espartanos) e a consolidação de movimentos obscurantistas e conspiracionistas como o Solução Grega e o Niki (Vitória).

O progresso limitado do Partido Comunista da Grécia (KKE) e o alto nível de abstenção não são suficientes para contrapor, ou relativizar, esta tendência. O abstencionismo tem afetado o centro-esquerda e a esquerda mais do que a direita. A crescente abstenção nas últimas décadas reflete a crise de legitimidade dos partidos políticos. Mas, na falta de participação popular na ação política ou nos processos parlamentares, a abstenção alimenta o conservadorismo e não a radicalização social.

Porque ganhou a direita?

O principal fator por detrás do triunfo do Nova Democracia é o alargado impacto social da terapia de choque imposta pelos “programas de ajustamento estrutural” que a UE e os sucessivos governos gregos têm implementado desde 2010. Como resultado, o capitalismo grego estabilizou-se, ainda que o seu desempenho esteja bem abaixo dos níveis pré-crise. Os vencedores desse processo viram o seu peso político crescer, enquanto os vencidos sofreram perdas pesadas na sua representação política.

O resultado deste ciclo eleitoral é uma expressão combinada de tendências subjacentes que marcaram o período pós-2010. Por um lado, a balança económica do poder virou a favor do capital. Por outro, a presença do Nova Democracia na liderança do Estado grego permitiu a formação de um bloco social que reagrupou não só a burguesia como largas fatias da pequena-burguesia e certos setores das classes populares à sua volta.

Os conservadores, em conjunto com a extrema-direita, conseguiram quase 55% do voto popular. Foi a primeira maioria absoluta da direita desde 1974

No seu executivo anterior (2019-23), o Nova Democracia aproveitou o relaxar das políticas fiscais durante a pandemia, e uma atitude invulgarmente leniente da UE em relação aos gastos, para canalizar recursos substanciais (fundos europeus, excedentes acumulados pelo anterior governo Syriza, superávit primário) para estabilizar a sua própria base social. A maioria destes fundos tiveram como destino grandes empresas e as classes altas, mas uma parte foi reservada para os pequenos empresários e trabalhadores por contra própria. Ainda que de forma limitada, estes benefícios efémeros ajudaram a mitigar os efeitos diretos da crise entre a classe trabalhadora.

Os media tradicionais também tiveram o seu papel de destaque na manutenção da base eleitoral do Nova Democracia, apesar das suas políticas agressivas, dos seus grandes falhanços e de um escândalo de escutas a jornalistas e políticos da oposição. Pela primeira vez desde a queda da ditadura, a comunicação social apoiou o partido no poder em bloco, enquanto a oposição não dispôs de quaisquer órgãos de comunicação ou de acesso significativo aos media mainstream. Foi assim que o governo conseguiu requalificar a sua imagem depois do desastre ferroviário de Tempi.

Os erros cometidos pela oposição durante a campanha eleitoral sobretudo, mas não só, por parte do Syriza  tiveram certamente o seu efeito nos resultados finais, alimentando a insegurança perante fatias consideráveis do eleitorado que procurava “estabilidade e normalidade”.

A estratégia da classe dominante

Depois de 2015, todos os setores da burguesia grega têm apoiado uma configuração política baseada no domínio de um único partido de direita apoiado por dois partidos fracos de “centro” ou “centro-esquerda” sem qualquer plano de chegar ao governo, seja a curto ou a médio prazo.

O tratamento dado ao Syriza, apesar da sua total capitulação ao neoliberalismo, mostra que a crença maioritariamente aceite pela esquerda não se verifica em todas as circunstâncias: a burguesia não precisa, necessariamente, de um sistema bipartidário para manter a estabilidade com a alternância entre partidos do arco de governação.

Ao mesmo tempo, e durante este período, o bloco de poder na Grécia tem sido dominado por setores capitalistas que dependem menos, em comparação com o passado, de qualquer estratégia de desenvolvimento a longo prazo. Na última década, o aumento dos lucros não foi conseguido através do revivalismo da acumulação capitalista, mas com a desvalorização do trabalho assalariado e das oportunidades criadas pela venda de recursos naturais e bens públicos gregos, como exigiram os “programas de ajustamento”. As razões para o apoio burguês ao Nova Democracia estão, em parte, alicerçadas nesta tendência.

A repetição das eleições em junho acentuou também o declínio do Syriza, que perdeu, no total, 1,3 milhões de votos desde que chegou ao governo em janeiro de 2015, quando conseguiu 2,3 milhões. Apenas uma pequena fração deste eleitorado se moveu para esquerda, tendo a sua maioria virado à direita ou alimentado a abstenção. Isto foi particularmente visível nos quatro anos desde que o Nova Democracia voltou ao poder, em 2019, durante os quais a maioria dos eleitores que abandonaram o Syriza se viraram para a direita, mesmo em círculos eleitorais de classe trabalhadora.

O sucesso do Syriza foi alimentado pelo descontentamento popular. Largas camadas da população desejavam uma alternativa que travasse o declínio das suas condições de vida.

As interpretações que apenas atribuem a derrota eleitoral do Syriza à sua própria viragem para a direita são simplistas, pois não houve qualquer fortalecimento substancial de quaisquer movimentos políticos à sua esquerda. Dito isso, a traição do voto “Não” no referendo de 2015 e a sua subsequente viragem neoliberal tiveram influência nas tendências ideológicas e políticas que determinaram os resultados eleitorais deste ano.

Teria sido necessário regressar a 2015, ainda antes do referendo, quando a situação piorava a olhos vistos, e fazerem-se escolhas radicalmente diferentes para que o curso tomado fosse, também, radicalmente diferente e se pudesse construir uma alternativa. Em vez de uma aliança com os Independentes (ANEL, um partido de direita soberanista que entrou nos governos do Syriza entre 2015 e 2019), teria sido necessário convocar-se segundas eleições, parar as negociações com a troika, parar os pagamentos da dívida e procurar outras alianças económicas e políticas a nível internacional com os países emergentes do BRICS.

Como se viu, o Syriza não tinha nem a estrutura, nem raízes na mobilização social, nem pontos de referência internacionais que lhe pudessem granjear a força necessária para um conflito direto com o capital grego, o Estado e os poderes imperialistas. O sucesso eleitoral do Syriza foi alimentado pelo descontentamento popular. Largas camadas da população grega desejavam uma alternativa política que travasse o declínio das suas condições de vida. Mas o partido tinha limitações claras a nível político e ideológico: não estava preparado para o conflito a que se propôs.

O Syriza apresentou-se como solução intermédia, com riscos e custos limitados. Por um lado, assegurou aos eleitores que seria fácil negociar uma mudança de política com a UE e evitar um conflito maior com as autoridades europeias. Por outro, o seu apoio prévio à integração europeia ofereceu certas garantias não só à burguesia, mas também às camadas populares e pequeno-burguesas que almejavam uma mudança de política sem quaisquer mudanças radicais.

O papel do Partido Comunista

Para a esquerda radical, os resultados de maio e junho também sinalizam uma viragem conservadora, sendo que o seu único representante a emergir mais forte é o KKE (Partido Comunista da Grécia). É agora a única força política à esquerda do Syriza com representação parlamentar. 

A manutenção de uma organização de base foi uma das razões decisivas para o seu sucesso, porque lhe permitiu manter o contacto com os setores populares, apesar da generalizada viragem à direita. O KKE também beneficiou de um tratamento benevolente por parte da comunicação social, que o apresentou como partido de esquerda “sério e responsável”. É reconhecido pelo sistema como partido de protesto e de oposição que em todos os momentos críticos desempenha um papel estabilizador.

Uma das razões para o falhanço do MeRA25 foi a sua incapacidade em forjar laços com setores das classes populares. A promoção da mensagem do partido em grande parte da Grécia dependeu da sua presença nos media e nas redes sociais.

Sobre isso é reveladora a interpretação que o próprio partido faz dos resultados eleitorais. Vê-os como validação da sua estratégia para o período entre 2012 e 2015. Ou seja, a sua posição perante o movimento de ocupação das praças de 2011 (que renegou), o referendo de 2015 (para o qual pediu que se votasse em branco) ou do euro (é avesso à saída).

É, portanto, surpreendente que certas correntes da esquerda radical tenham clamado, implícita ou explicitamente, pelo voto no KKE quando passaram os últimos 13 anos a opor-se vocalmente às suas políticas. De qualquer forma, o partido atraiu uma pequena percentagem dos eleitores que se afastaram do Syriza. Apesar do seu relativo sucesso, a margem de manobra do KKE vai também diminuir à medida que os efeitos das políticas autoritárias e neoliberais se forem cristalizando, isto se não mudar de orientação política.

Falhanço da esquerda radical

Uma fração confusa do voto à esquerda fugiu na direção do partido de Zoe Konstantopoulou, o Rumo à Liberdade. Ao combinar uma postura anti austeridade com políticas identitárias nacionalistas e aproximação aos negacionistas anti-vacinas, o partido muito dificilmente pode ser descrito como sendo de esquerda. Ainda assim, beneficiou nestas eleições de uma desproporcional visibilidade na comunicação social, o que reflete o apoio de certas partes do sistema que não querem esperar para ver reduzida a influência do Syriza e de outros movimentos de esquerda radical, como o MeRA25 (Frente da Desobediência Realista Europeia).

O falhanço do MeRA25, que não conseguiu chegar ao mínimo de votos necessários para entrar no parlamento (3%), é um falhanço da esquerda como um todo. O resultado de junho foi amplamente determinado pelas dinâmicas negativas da primeira ida às urnas em maio, pois não foram ultrapassadas no curto tempo que separou as duas eleições. Neste contexto, manter um apoio um pouco abaixo dos 3% foi até um sinal positivo dentro de uma situação infeliz.

Uma das razões para o falhanço do MeRA25 foi a sua incapacidade em forjar laços com setores das classes populares, mesmo em pequena escala. Como resultado, a promoção da mensagem do partido em grande parte da Grécia dependeu da sua presença nos media e nas redes sociais. Isso fez com que fosse difícil contrapor a sua mensagem à constante estigmatização do MeRA25 levada a cabo pelos outros partidos e pelos media tradicionais.

Qualquer erro tático durante a campanha foi, assim, amplificado. Ter apresentado um plano quase-governamental, mesmo que contivesse elementos relevantes para um rompimento com o neoliberalismo (inverter despejos, nacionalização da banca, abolição da agência estatal de privatizações, renegociação da dívida pública), pareceu uma escolha imprópria para um pequeno partido de esquerda a lutar pela entrada no parlamento.

Para lá destas questões táticas, também houve erros estratégicos que afetaram tanto a esquerda radical como o Syriza. O ciclo eleitoral fez com que houvesse uma incapacidade profunda em se perceber as mudanças e os realinhamentos no seio da classe trabalhadora. Também revelou a ignorância perante o esmorecer da energia que, entre 2010 e 2015, alimentou o crescimento do Syriza e o voto do “Não” no referendo de 2015.

É necessário um trabalho programático a longo prazo, para desafiar o desenvolvimento do capitalismo grego e fortalecer a oposição aos projetos de integração imperialistas, como a UE e a NATO.

O sucesso da direita, o colapso do Syriza e o falhanço do MeRA25 apontam para a rejeição da possibilidade de uma crise como a de 2015 se repetir. Muitos gregos relembram esse momento como uma experiência traumática – não os mais ricos, mas aqueles com empregos relativamente estáveis e pensões decentes. Também simboliza o fim da esperança para os setores devastados pela crise e subsequente terapia de choque neoliberal. E a insistência do MeRA25, durante a campanha eleitoral de maio, na clivagem de 2015 não teve em conta as mudanças políticas e ideológicas dos últimos oito anos.

Estas eleições também representaram uma saturação do espaço político que emergiu do período anterior, afetando todas as organizações dissidentes, tenham vindo do Syriza ou do anticapitalista Antarsya. Ao recusarem juntar-se, ou mesmo apoiar, a reorganização proposta pelo MeRA25, certas partes da esquerda radical grega perderam a oportunidade de influenciar o equilíbrio entre forças políticas opostas. Cometeram o mesmo erro que o Antarsya em 2015: não conseguiram perceber que, na ausência de uma representação institucional da esquerda radical para lá do KKE, não há terreno fértil para uma alargada recomposição de forças.

O resultado abaixo do 1% conseguido pelo Antarsya confirma a erosão deste espaço político nos últimos dez anos. A teimosa insistência num discurso centrado na “revolução anticapitalsita” provou ser mais uma vez auto-referencial e ineficaz. No final de um período histórico de crise sociopolítica – na qual milhões de trabalhadores votaram à esquerda para depois virarem à direita ou se absterem de votar –, o Antarsya encontra-se numa situação de menor influência que as forças que o precederam nas décadas de 1990 e 2000.

Reorientar a esquerda

O atual equilíbrio de forças dá ao governo de Mitsotakis a oportunidade de acelerar a prossecução das suas políticas e, em determinadas condições, consolidar a sua posição dominante. Isto não significa que não haja contradições ou espaço para lutas sociais, nem que este equilíbrio não possa ser desafiado. A natureza agressiva e autoritária das políticas do Nova Democracia vão, inevitavelmente, causar descontentamento e resistência. Além do mais, a experiência recente mostra que as afiliações políticas e eleitorais gregas são caracterizadas por uma grande fluidez e que as relações orgânicas dos partidos com a sociedade se desintegraram.

A possibilidade de intervir neste terreno mais hostil exige um trabalho paciente e uma aposta decidida na construção da unidade. Esta estratégia deve centrar-se nas questões do dia a dia e abordar-se as frentes de luta consequentes, com uma linguagem simples e amplamente compreensível. E deve também reconhecer a posição defensiva em que se encontram os movimentos sociais. Isto significa recombinar as necessárias linhas divisórias políticas com uma intervenção decidida nas questões mais cruciais para as classes trabalhadoras, como a saúde pública, a educação, a inflação e custo de vida e a crise imobiliária.

É também necessário um trabalho programático a longo prazo, para desafiar o desenvolvimento do capitalismo grego e fortalecer a oposição aos projetos de integração imperialistas, como a UE e a NATO. Esta orientação deverá conduzir também a uma maior unidade de ação com a criação de plataformas unitárias nos movimentos sociais e nos sindicatos, para construir laços duradouros com setores das classes trabalhadoras. Outra frente, distinta, muito importante e que requer formas específicas de intervenção, é a luta antifascista.

Politicamente, a Esquerda precisa de construir uma rede de forças e organizações, com ativistas não afiliados e com aqueles que se afastaram da ação política – isto é, com todos os que procuram uma saída de esquerda para a crise do Syriza. Este espaço deve incluir todo o espectro, do o MeRA25 às organizações de esquerda radical dispostas a superar divergências do passado e a promover relações de justiça e respeito mútuo. Esse processo poderá começar a materializar-se nas eleições autárquicas previstas para outubro deste ano, criando condições favoráveis para uma plataforma comum nas eleições europeias de 2024.

Artigo originalmente publicado na Jacobin Magazine.