A nova empresa do antigo presidente do SL Benfica dava os seus primeiros passos quando começaram a surgir artigos apresentando-o como especialista em assuntos de economia mundial. As mais recentes contas da Kunst Global mostram dívidas superiores ao valor da empresa, mas João Vale e Azevedo garante ter receitas de milhões de euros.
Na segunda metade de 2021, quando o mundo se confrontava com a pandemia de covid-19, um empresário português via a sua opinião de especialista publicada em órgãos de comunicação social pelo mundo. Em todos foi apresentado como presidente de uma empresa chamada Kunst Global, “uma das maiores empresas de capital de risco do mundo”.
Os artigos alternam entre o que parece publicidade encapotada à empresa do português (“as operações da KUNST incluem investimentos em diversas áreas, tais como energia, bens transacionáveis, telecomunicações, propriedade, turismo, moda, retalho e entretenimento”) e citações do empresário com vagas previsões sobre o que acontecerá à economia global com um olho no investimento público. “Se os governos apoiarem empreendedores e negócios, tenho a certeza de que conseguiremos transformar a crise em oportunidade de formas que, por enquanto, nem conseguimos imaginar”, lê-se num dos artigos.
Entre março de 2021 e março de 2022, aquela que era descrita como “uma das maiores empresas de capital de risco do mundo” apresentou um saldo positivo de pouco mais de 50 mil libras (perto de 60 mil euros) e, no seu último relatório de contas, de 13 de julho, um prejuízo de cerca de 20 mil. O seu diretor e presidente, citado como perito em economia mundial, chama-se João Vale e Azevedo.
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Ao Setenta e Quatro, através da sua advogada em Portugal, Vale e Azevedo apresentou números diferentes. Diz, sem apresentar documentação, ter acumulado mais de um milhão de euros ao longo dos três anos de vida e ter faturado mais de cinco milhões de euros no mesmo período. No entanto, a empresa apresentou contas este ano que mostram mais dívidas do que ativos. Ao contrário da informação fornecida ao Setenta e Quatro, estes números são oficiais, verificáveis e públicos. Consciente do mau desempenho da empresa, Vale e Azevedo diz dever-se a problemas de saúde e a “razões meramente conjunturais” já ultrapassadas.
São muitos os casos judiciais que, ao longo dos anos, foram envolvendo o antigo Presidente do Benfica. Em 2002 foi condenado por peculato e branqueamento de capitais depois de ter desviado cerca de um milhão de euros do Sport Lisboa e Benfica, em 2005 foi condenado por falsificação de documentos, em 2006 foi condenado a sete anos e meio de prisão por burlar o empresário Dantas da Cunha e, por fim, no ano seguinte foi condenado a mais cinco anos de prisão por burla.
Enquanto cumpria pena, apresentou garantias falsas no valor de 1,3 milhões de euros para sair em liberdade e foi para Londres. Entregou-se em 2012 para cumprir mais quatro anos de prisão mas, tendo sido de novo condenado a mais dez, recorreu da decisão e foi de novo para Londres onde, até hoje, reside.
Em março de 2020, dias depois de se saber que não iria a julgamento, por prescrição do alegado desvio de 1,2 milhões de euros dos cofres do Benfica, Vale e Azevedo submetia nos registos empresariais britânicos a papelada necessária para criar a empresa Kunst Global. Numa altura em que há mais de um ano que a Justiça portuguesa o tentava notificar, o ex-presidente do Benfica declarava o Reino Unido como seu país de residência e indicava como morada uma residência no centro de Londres.
A casa foi comprada em 2017 por 5,7 milhões de euros e é propriedade de Christopher Heine, um empresário reformado, e Pauline Chen, ambos com morada em Hong Kong, segundo o registo de propriedade.
Em dezembro de 2021, Vale e Azevedo mudou a sua morada no registo empresarial passando para um apartamento duplex também no centro de Londres, comprado no mês anterior por 2,6 milhões de euros por Heng Sokha, cidadã do Camboja. Não é possível estabelecer se se tratará da mesma pessoa mas, pela mesma altura, Heng Sokha, mulher milionária de um ex-ministro do Camboja, aparecia nas notícias, ligando-a a negócios fraudulentos em Londres. No mesmo edifício, um apartamento semelhante, também duplex, é arrendado por dez mil euros por mês. Mas, em declarações ao Setenta e Quatro, Vale e Azevedo disse não ter qualquer tipo de relação com os senhorios e arrendar a casa através de uma agência com os fundos gerados pelo seu negócio.
É também por volta desta altura que começam a surgir artigos citando João Vale e Azevedo como especialista em assuntos de economia mundial. Algumas coisas unem estes artigos. Em primeiro lugar, o tom da escrita é sempre idêntico e o nome da empresa aparece sempre em maiúsculas.
Vale e Azevedo assinou, como diretor e único funcionário da Kunst Global, o relatório de contas no dia 11 de julho. A empresa está registada numa morada que partilha com outras 685 empresas, nuns escritórios que alugam o endereço para que outras empresas o usem como morada oficial.
Depois, seja em inglês, em espanhol ou em italiano, os artigos tratam sempre de apresentar a empresa, ainda que muito pouca informação exista sobre ela e não haja, sequer, uma página oficial. Há, no entanto, pormenores que parecem indicar que os textos têm uma única fonte: ainda que em línguas diferentes, há frases que se repetem, como “Kunst Global é uma empresa de capital de risco baseada em Londres, Geneva e Luxemburgo. A companhia investe em diferentes setores da economia tais como energia, telecomunicações, moda ou entretenimento.”
São dezenas de artigos em várias línguas, em todas elas Vale e Azevedo é apresentado como presidente da Kunst Global e todas as suas ligações a processos judiciais mega mediatizados são ignoradas. Talvez porque em todos estes casos se trate de plataformas que aceitam conteúdos externos desde que pagos. Em alguns casos, aparece como conteúdo patrocinado, outros tantos são assinados como se fossem produto de um trabalho jornalístico e, finalmente, outros, talvez mais cautelosos, fazem questão de acrescentar notas dizendo que não se responsabilizam pelos conteúdos publicados.
Os artigos proliferam por 2022 afora, altura em que começam a mencionar a guerra na Ucrânia. De que forma a nova vida profissional de Vale e Azevedo e a sua nova empresa estão relacionados com estes temas não é certo, uma vez que é escassa a informação disponível sobre a natureza destes negócios.
Uma pesquisa nos registos empresariais do Reino Unido mostra-nos que esta não é a primeira empresa inglesa em que Vale e Azevedo está envolvido. Em abril de 2009 tornou-se diretor de uma empresa chamada Momentum Interiors Limited, segundo os mesmos registos. Oficialmente, tratava-se de um negócio de instalação de equipamentos de construção. Em 2010 a empresa tinha 800 libras no banco e, em 2011, dois anos depois da entrada de João Vale e Azevedo, entrou em processo de insolvência.
O empresário diz, através da sua advogada, desconhecer até ao momento em que foi contactado pelo Setenta e Quatro ter o seu nome envolvido nesta empresa, acrescentando ter a intenção de denunciar às autoridades competentes o que diz ser o uso indevido do seu nome. É, de facto, possível e fácil fornecer informação falsa a este registo. No entanto, o documento de nomeação de diretor contém o seu nome completo (com uma gralha de uma letra trocada), data de nascimento, morada (que estava associada a ele) e indica ainda a outra empresa em que o empresário exercia funções de direção: a V & A Capital Limited.
Aliás, a entrada numa coincide com a saída de outra, que tinha sido mais estrondosa e que tinha resultado em duas insolvências: na da empresa e na do próprio. O relatório de contas de 2007 anunciava lucros na ordem dos 2,6 milhões de euros, mas no ano seguinte, em novembro de 2008, começava o processo de insolvência da empresa.
É no relatório do agente de insolvência, já de 2021, que é pintado um retrato dos esforços de Vale e Azevedo em esconder bens. Perante a insistência de Vale e Azevedo em afirmar que a empresa não tinha ativos relevantes, o agente decide investigar.
A primeira coisa que descobre é que, de facto, aquilo que a V & A Capital declarava possuir não tem qualquer valor. Grande parte do valor da empresa estava nas ações que declarava deter de duas outras empresas portuguesas. No entanto, num caso a empresa tinha dívidas que a tornavam completamente desvalorizada, ao passo que simplesmente não era verdade que detivesse ações da segunda empresa.
Se, por um lado, não havia qualquer valor naquilo que o deveria ter, por outro, havia um conjunto de ativos, esses sim, valiosos, que haviam sido escondidos. Entre estes estava todo o conteúdo dos escritórios da empresa - incluindo quadros valiosos - que Vale e Azevedo tinha armazenado. Lê-se no relatório: “Fui contactado pela Imaved - Investimentos Imobiliários SA alegando que todos esses conteúdos eram, na verdade, seus e que só tinham estado nas instalações da V & A Capital a título de empréstimo”.
Ora, a empresa que alegava serem seus os equipamentos está registada em Portugal e ainda hoje está ativa. Não era na altura possível aferir a quem pertencia esta empresa, uma vez que as suas ações eram emitidas ao portador, uma modalidade entretanto ilegalizada segundo a qual elas pertenciam a quem quer que as tivesse fisicamente em sua posse. No entanto, já era possível ver em 2010 que dois dos três membros do conselho de administração eram Filipa Vale e Azevedo e Francisco Vale e Azevedo, mulher e filho de João Vale e Azevedo.
Sendo já impossível manter este tipo de ações por causa da sua natureza obscura, pode ver-se que, hoje, o dono desta empresa é o luxemburguês Claude Faber. Faber é sócio de uma empresa luxemburguesa que oferece, entre outros serviços, o de acionista nomeado. Trata-se de um serviço legal em que, mediante um pagamento, o nome de alguém é usado para aparecer oficialmente como dono de uma empresa quando, na realidade, ela pertence a outrem. Apesar de a empresa nos ter confirmado que esse seria um cenário possível com a Imaved, não confirmaram se era o que de facto acontecia neste caso.
Havia ainda os fundos que Vale e Azevedo tinha recentemente arrecadado de investidores e que podiam ascender a mais de dois milhões de euros. “As [minhas] investigações revelaram que até à data em que o tribunal ordenou a liquidação da empresa, o Sr. Azevedo estava ainda ativo procurando quem comprasse ações da empresa", lê-se ainda no relatório de insolvência.
Com efeito, foi descoberta uma angariação de fundos no valor de 2,75 milhões de euros ainda que, devido à falta de registos, tenha sido impossível aferir se todos os investidores já teriam efetivamente transferido o dinheiro. A lista de investidores inclui médicos portugueses como José Maria Tallon, mas também homens de negócios e até políticos como o então Presidente da UNITA Isaías Samakuva. Samakuva aceitou investir um milhão de euros na empresa de Vale e Azevedo como sinal de boa fé para que, por sua vez, o empresário português investisse 50 milhões em Angola. Este investimento nunca aconteceu.
Há, finalmente, a empresa no Luxemburgo, Sipor Holdings, que Vale Azevedo primeiro disse ser sua, depois disse ser apenas seu gerente e, finalmente, disse não ter qualquer valor. Sobre esta empresa pouco ou nada se sabe por causa da opacidade que caracteriza o Luxemburgo no que diz respeito a estes assuntos.
Segundo documentos do processo no Reino Unido, quer a Sipor Holdings quer uma outra empresa chamada Sipp SA tinham como diretor o mesmo empresário luxemburguês, Claude Faber. Apesar de os credores afirmarem que se tratava tudo de empresas que pertenciam verdadeiramente a Vale e Azevedo, o tribunal, perante a opacidade do sistema luxemburguês, não deu essas alegações como provadas. Isto apesar de, por exemplo, a Sipp SA deter propriedade em Portugal na qual residiam membros da família Vale e Azevedo.
A empresa foi finalmente dissolvida em abril de 2021, mas em março de 2020, já João Vale e Azevedo constituía a nova Kunst Global. No entanto, e no espaço de três anos, a empresa que começou com um saldo positivo de mais de 400 mil euros está agora a operar no negativo com dívidas de mais de meio milhão de euros.
Vale e Azevedo assinou, como diretor e único funcionário da Kunst Global, o relatório de contas no dia 11 de julho. A empresa está registada numa morada que partilha com outras 685 empresas, nuns escritórios que alugam o endereço para que outras empresas o usem como morada oficial.
A Justiça portuguesa tenta há quatro anos notificar Vale e Azevedo para que possa ser julgado por uma burla de 25 milhões de euros, mas não tem sido capaz de o notificar. Isto apesar de o diretor da Kunst Global apresentar duas moradas nos registos de empresas do Reino Unido, ambas em zonas nobres de Londres e avaliadas em milhões de euros.
Naquele que é, até agora, o último artigo que cita Vale e Azevedo para fazer uma avaliação da economia mundial, o antigo presidente do SL Benfica é descrito como “uma voz influente na finança internacional”. Vai falando dos impactos da covid-19 e da guerra na Ucrânia, mas termina numa nota positiva em tom motivacional de elogio do “poder do coletivo”. “O facto de termos tido menos oportunidades de interação,” diz o presidente da Kunst Global, “significa que estamos agora mais conscientes do valor dessas interações e provavelmente também da vida humana”. “Somos uma comunidade forte,” remata. “Os desafios que nos esperam são muito difíceis, mas juntos estamos muito mais bem preparados para os enfrentar.”
A natureza da nova empresa de Vale e Azevedo é de contornos difíceis de identificar. Segundo o próprio, “A KUNST GLOBAL é uma empresa de consultoria empresarial. Os seus clientes vêm através da rede de contactos de JVA de mais de 40 anos como profissional e empresário”, mas não é claro como um empresário com o seu historial de encontros com a Justiça tenha conseguido, à conta dos seus contactos, montar uma empresa de consultoria com receitas na casa dos milhões logo no seu primeiro ano.