Os caminhos são múltiplos e as respostas estão a ser ensaiadas, com todas as complexidades e potencialidades, perigos e receios que isso implica. Seja na indústria da música, nas instituições culturais, nas estruturas que há muito fazem do digital o seu viveiro. Mas uma coisa é certa: é preciso proteger o presencial, o palco, o corpo-a-corpo.
Com a pandemia da Covid-19, e a respetiva migração de múltiplas experiências e vivências para o plano digital, várias dimensões do nosso quotidiano passaram a ser determinadas pelo online de uma forma ainda mais intensa, praticamente inescapável. Um dos territórios onde isso aconteceu de maneira mais explícita – com entusiasmo e receio, inventividade e aborrecimento em doses iguais – foi o das artes e fruição cultural.
De repente, com tudo de portas fechadas, com artistas e programadores em casa, a cultura passou a estar maioritariamente no mundo virtual, o que simultaneamente trouxe à tona e acelerou um processo já em curso: a transição digital da produção artística e, por arrasto, de um ecossistema financeiro, curatorial, social, afetivo que a sustenta e que está a ser reconfigurado neste outro plano, em moldes ainda pouco consolidados, alguns deles obscuros e armadilhados, mas definitivamente em fase de experimentações e possibilidades várias.
Esta transição não se materializa numa substituição do presencial pelo digital, como vimos e vemos pela continuidade de atividades culturais em espaços físicos – ainda que com uma série de limitações e percalços –, à medida que as restrições sanitárias foram, e vão sendo, aliviadas. Mas sim naquilo que é o grande hot topic, e dilema, do momento: uma realidade híbrida, uma coexistência entre os dois mundos, sobretudo na música, nas artes performativas, nas artes visuais e na arte multimédia, que já andava a ser construída e ensaiada, porém sem a projeção e a abrangência registadas nos últimos tempos.
Em Portugal, onde o debate sobre estes tópicos ainda é prematuro, encontramos algumas instituições culturais que já assumiram levar avante esta complementaridade.
“Estamos a aprender a lidar com o digital como meio de exposição de conteúdos artísticos e como meio de criação", disse Luís Fernandes.
O Teatro Municipal do Porto, por exemplo, vai passar a ter dupla existência, no digital e no presencial, depois de uma série de experiências ao longo da última temporada, incluindo uma edição mista do DDD – Festival Dias da Dança. O Gnration, em Braga, lançou um novo ciclo de programação com periodicidade mensal, o Órbita, pensado exclusivamente para o formato online e alimentado por obras encomendadas de raiz onde são estabelecidas pontes com o programa presencial, cruzando música, arte e tecnologia, adianta o diretor artístico Luís Fernandes.
“Estamos numa fase que deu, dá e dará origem a utilizações menos felizes da tecnologia, mas acredito que também abrirá caminho para coisas super interessantes. Estamos a aprender a lidar com o digital como meio de exposição de conteúdos artísticos e como meio de criação.”
“O hibridismo veio para ficar, sem dúvida”, declaram Guilherme Marques e Natália Machiavelli do MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. A pandemia fez com que a equipa do festival brasileiro concretizasse uma ideia que já andava a germinar nas suas cabeças há vários anos: uma plataforma digital que funcionasse como um tentáculo do evento e onde coubesse o seu acervo, desde espetáculos filmados a cenas de bastidores e entrevistas com criadores, mas também como uma extensão reforçada da vertente pedagógica do projeto, com seminários, aulas abertas, oficinas, olhares críticos.
Assim nasceu a MIT+. Depois de uma experiência-piloto no ano passado, transmitindo online os espetáculos que não puderam subir a palco na reta final do festival por causa do raiar da pandemia, esta plataforma foi lançada oficialmente em Março. Continua ativa, com acesso gratuito e pondo em prática políticas de acessibilidade como a linguagem gestual e a audiodescrição (políticas essas que se têm tornado mais comuns nas programações online). Para novembro está previsto uma pequena mostra com espetáculos inéditos brasileiros e uma retrospetiva de peças, também nacionais, das três últimas edições do evento.
Sem ter como objetivo “fazer um festival virtual”, até porque “o teatro no presencial é insubstituível”, Guilherme Marques e Natália Machiavelli querem fazer crescer esta plataforma. “Eu e a Natália estamos conversando sobre a possibilidade de ter um banco de espetáculos – espetáculos históricos, que quase já não circulam – que o público possa ver de forma acessível e que as companhias possam ser remuneradas por isso”, revela Guilherme, criador do festival juntamente com Antonio Araujo.
“A plataforma terá de ficar muito mais completa para podermos passar a cobrar uma mensalidade, por exemplo, mas teremos sempre conteúdos gratuitos”, informa Natália, artista multimédia e responsável pela plataforma. “Por outro lado, a ideia é também criar uma ferramenta de busca que seja útil para pesquisadores do teatro e académicos, ao mesmo tempo que o público não especializado consiga navegar por várias temáticas”, acrescenta. “Eu vejo a MIT+ com o mesmo peso em termos de cultura e pedagogia.”
Em relação a estruturas e eventos culturais do circuito institucional, que gozam de estabilidade financeira, é certo que a entrada no digital passou muito pela banal e pouco recompensadora transmissão de espetáculos, gravados ou em live streaming. Contudo, aquilo que alguns conseguiram trazer de minimamente diferenciador foi, por um lado, o tratamento online e a disponibilização ao público dos seus arquivos (a Culturgest criou uma biblioteca virtual através da qual se tem acesso a micro-sites temáticos, vídeos de conferências e espetáculos, áudios, fotografias ou documentação), e, por outro, a aposta redobrada, ou mesmo triplicada, em atividades com um pendor altamente pedagógico e reflexivo que cruzam as artes com a produção e a partilha de pensamento em vários espectros (como aconteceu no Teatro do Bairro Alto).
“Com algumas excepções, as instituições culturais sempre foram conservadoras no que toca à internet. Ou seja, sempre a utilizaram como um órgão de comunicação, uma vitrine, e com a pandemia ela teve de passar a ser a plataforma produtora e apresentadora de conteúdos”, observa o português João Fernandes, diretor artístico do Instituto Moreira Salles (IMS), que se desdobra em três unidades no Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Poço de Caldas).
Tem sido um dos bons exemplos de como reperspetivar as atividades de um museu/centro/organização cultural no plano online, a par de entidades como o New Museum (EUA), Centro Cultural São Paulo (Brasil), Kiasma (Finlândia), FACT Liverpool (Inglaterra) ou a plataforma LUX (Inglaterra), pioneira na ponte entre o físico e o digital. “É fundamental, hoje, uma instituição ser produtora de conteúdo cultural e artístico online e não apenas uma transmissora ou retransmissora. Essa é a grande transformação que está a acontecer nas instituições culturais e julgo que não vai parar.”
Para o ex-diretor artístico do Museu de Serralves e ex-subdiretor do Reina Sofía, esta transformação terá de ser manobrada sempre numa dinâmica “de enriquecimento recíproco” entre o digital e o presencial – “porque isso cria maiores possibilidades de riqueza de conhecimentos” –, sublinhando que a vida online ao longo deste período “mostrou-nos muita coisa”.
“A pandemia confrontou as instituições com a sua forma de estar, de trabalhar, de agir, e esta quase ignorância e este desdém em relação às culturas online têm de ser do passado.”
Não é por acaso que o debate sobre os museus e as galerias enquanto espaços elitistas, para os mesmos de sempre (sejam estes artistas, curadores e espetadores), tem vindo a ganhar tração no último ano e meio, em grande medida turbinada por quem esteve e está na dianteira desta discussão: criadores, investigadores e outros dinamizadores da arte digital, agora com maior visibilidade.
“A acessibilidade da arte digital fora do cubo branco tem mostrado que há novos públicos a que as galerias, museus e institutos de arte não conseguem chegar nem conetar-se com. Isto é algo que não podem ignorar”, considera Zaiba Jabbar, artista multimédia, curadora independente e fundadora da HERVISIONS, agência curatorial online e offline centrada no cruzamento entre arte, tecnologia e cultura, e orientada para mulheres e pessoas não binárias.
“Enquanto mulher racializada da classe trabalhadora, eu nunca tive a sorte de me poder considerar artista num sentido tradicional. Por isso é que comecei a olhar para as margens, para estas práticas multidisciplinares e antidisciplinares, e quis explorar a arte nos novos media e nas redes sociais”, continua Jabbar. “A mudança em direção ao digital, intensificada pela pandemia, foi atiçada por artistas digitais que já existiam em comunidades de nicho, a par do apelo a artistas que trabalham em disciplinas mais tradicionais para começarem a explorar este tipo de espaços.”
Se, por um lado, há uma maior democratização nestas plataformas, este novo foco de atenção pode adubar terreno para replicar e perpetuar hierarquias e desigualdades do IRL, considera a curadora. E isso mete ao barulho a nova economia criativa que se tem vindo a desenvolver no online, ancorada, em parte, nas promessas da Web3, uma nova era da Internet em teoria mais descentralizada e horizontal.
S4RA, artista digital com base em Lisboa, assinala que “o obstáculo do digital em aceder ao circuito mainstream da arte” tem-se devido, em parte, “à dimensão imaterial e à dificuldade em monetizar estas obras, que muitas vezes estão acessíveis online e daí não terem estatuto de propriedade/autenticidade”. Nota que os NFTs vieram “resolver parte deste problema, mas acentuar e perpetuar ainda mais o desnivelamento entre quem capitaliza e os artistas que alimentam a blockchain na esperança do cripto milagre”.
“A dinâmica de mercado é muito semelhante e desmoralizadora na perspetiva de um futuro próximo sustentado num sistema descentralizado. No entanto, parece ser o passaporte para a validação da entrada no mercado da arte porque materializa um suporte que pode finalmente ser comercializado”, aprofunda S4RA. Zaiba Jabbar também partilha da visão de que há vários flancos e possibilidades em confronto. “O mercado dos NFTs ainda é muito dominado pelos bros da tecnologia, mas acredito, ao mesmo tempo, que há uma oportunidade gigante para que os artistas digitais possam monetizar a sua força de trabalho e o valor do digital.”
Do lado das instituições culturais mais tradicionais, estas movimentações poderão ser também uma ocasião para pensar o digital não só enquanto espaço de exposição, criação e promoção, mas também como ferramenta de monetização. Estamos, portanto, num momento em que está tudo em aberto. Para o bem e para o mal, entre múltiplos prós e contras.
“Embora se esteja a assistir a uma fetichização em torno dos valores astronómicos de vendas sem precedentes, a espelhar o lado menos bom do mercado IRL, também se potenciou o aparecimento de plataformas geridas por artistas e o desenvolvimento de criptomoedas mais ecológicas”, refere S4RA. “Outros modelos foram adotados em espaços virtuais como o Cryptovoxels, onde é possível adquirir uma galeria virtual e transacionar NFTs ou videojogos em que se ganha tokens e se compra assets em criptomoeda. Da necessidade de criar exibições online desenvolveram-se plataformas virtuais, como a New Art City, geridas por artistas de forma a serem o mais inclusivas possível e acessíveis para quem quiser ter o seu próprio espaço navegável online no Mozilla Hubs, VRChat ou AltspaceVR. Deste metaverso, ou processo de replicar a realidade através de meios digitais, ainda há espaço e potencial de expansão em ambos os sentidos.”
Num meio em que o espírito de comunidade é reivindicado e nutrido com especial cuidado, tanto S4RA como Zaiba Jabbar defendem que as pontes entre o digital e o presencial devem ser arquitetadas sem antagonismos, de modo a permitir uma interseção de várias identidades e backgrounds nas duas dimensões e evitar que se caia numa mera virtualização da cultura.
Nesse sentido, S4RA – neste momento a colaborar com uma equipa interdisciplinar numa performance ancorada “num formato híbrido entre o real/material e o virtual em palco”, a estrear num teatro de Lisboa – sublinha que é preciso apostar na “criação de projetos multidisciplinares, ou transmedia, que se estendam ao virtual e dêem espaço a outras vozes que são também outros contextos”.
Entre vários exemplos, destaca o videojogo/ arquivo online interativo Black Trans Archive, de Danielle Brathwaite-Shirley.
Dentro do circuito musical, o setor mais afetado pela pandemia, festivais como o Rewire, Unsound, No Ar Coquetel Molotov e CTM (que em 2022 terá um modelo híbrido) montaram edições online em que as conexões entre tecnologia, música e as potencialidades artísticas e comunitárias do digital foram trabalhadas diligentemente.
Fizeram-no através de concertos transmedia, performances audiovisuais colaborativas, ambientes 3D, projetos interativos, workshops, programas de mentoria, clubbing em plataformas virtuais, filmes, videoarte, programas de rádio e conversas que ecoaram as transformações e experiências em curso na indústria musical nesta transição digital. Ao mesmo tempo, abrindo espaço para refletir e debater em conjunto sobre as implicações sociais, políticas, culturais e psicológicas da pandemia.
“Na primeira edição do Coquetel Molotov.EXE fizemos uma programação que durou 12 dias com oficinas, masterclasses, uma festa surpresa inaugurando a plataforma SpatialChat e um dia de música com quatro ‘palcos’ imersivos pelo Zoom e salas surpresa”, conta a diretora Ana Garcia. “Mais de quatro mil pessoas participaram. Foi ótimo receber mensagens de pessoas de todo o Brasil falando como foi incrível a primeira experiência no Coquetel Molotov.”
Sem querer simular “o físico”, mas mantendo “a identidade do festival”, foram criados outros desdobramentos do evento, como a série audiovisual Coquetel Molotov - Etapa Minas Gerais, que deu protagonismo a artistas da cena contemporânea local, e o segundo round do Coquetel Molotov.EXE, em formato revista digital, com performances musicais gravadas, oficinas, textos, trabalhos de fotografia, podcasts ou videoarte de artistas pernambucanos (descobrir em coquetelmolotov.com.br.exe).
“Este projeto nasceu de um edital que foi aberto para socorrer a cadeia cultural local”, explica Ana Garcia. “Focamo-nos em obras inéditas e priorizamos novos criadores: muitos deles se lançaram durante a pandemia, não podendo circular pelos palcos locais e também não podendo chamar a atenção de um festival online padrão”, observa. “De certa forma, isto reverbera no princípio de um bom festival de música, que é ser palco para novos nomes.”
Também com o objetivo de estimular os criadores e apoiá-los financeiramente numa fase particularmente dramática – não só devido ao abismo sociopolítico do Brasil agravado pela crise pandémica, mas também por causa do desmonte da cultura levado a cabo pelo governo de Bolsonaro –, o IMS lançou, em Abril do ano passado, o programa Convida, comissionando novas obras para o seu site de 171 artistas e coletivos das periferias das grandes cidades brasileiras e de regiões fora do eixo São Paulo-Rio.
Ventura Profana, Leona Vingativa, Grace Passô, Takumã Kuikuro, Ajeum da Diáspora ou o Coletivo Afrobapho foram alguns dos contemplados. “Partindo dos nossos saberes e experiências na instituição, e tendo em conta que o IMS programa e tem acervos nas áreas do cinema, fotografia, iconografia, música, literatura, mais a programação de artes visuais, juntamos todas as áreas, inclusive a educativa, para construir um programa online que fosse um incentivo aos artistas e que se pautasse por critérios de diversidade racial, de género, de orientação sexual e também regional”, contextualiza João Fernandes. “Se nós tivéssemos de nos movimentar para ir ao encontro de todos deles, em tantos lugares, isso teria sido impossível sem o online.”
Por cá, festivais de música como o Boom e o Semibreve ensaiaram, de maneiras distintas, uma presença no digital. No caso do primeiro, a estratégia passou essencialmente por “pegar no lado do Boom associado ao conhecimento e dar ferramentas às pessoas para lidarem com a questão pandémica”, diz Artur Mendes, co-manager do evento.
No site do festival é possível encontrar um conjunto de rubricas, entre elas a série de vídeos Boom Toolkit for Covid-19, em que promotores, artistas, terapeutas, cientistas e outros profissionais de diversas valências refletem sobre temas como a saúde mental na indústria da música (e fora dela), a sustentabilidade e a biodiversidade (marcas identitárias do festival), a natureza e a arte enquanto ferramentas terapêuticas, ou a vigilância digital no capitalismo. Mais uma vez, tal como noutras entidades ligadas à cultura, a produção de pensamento e reflexão revelou-se um dos principais pontos de intervenção neste período.
Houve ainda “uma parte de celebração”, com um streaming realizado a partir da Boomland, “em que o conceito era juntar arte, música, natureza e a arquitetura paisagística do festival, além das suas memórias”, e também a co-criação da plataforma colaborativa internacional de livestream UNITE – Let the Music Unite Us.
Contudo, o responsável insiste que, “mais do que dar divertimento às pessoas, o importante é dar-lhes ferramentas numa fase de tanta instabilidade”. Até porque decidiram, desde logo, que não queriam “entrar na nova moda da virtualização da experiência” de um festival.
“Não somos contra quem o faz, mas o Boom, pela sua essência, não é de todo replicável num ambiente digital e, ao mesmo tempo, não nos revemos nesta videogamificação dos festivais e da música”, atira Artur Mendes. E a verdade é que há indicadores de que esta “videogamificação” possa vir a tornar-se numa tendência em crescimento – como notou investigadora Cherie Hu no seu Twitter, grandes agentes da indústria musical, como a Sony Music, já estão a investir em mundos 3D e a abrir vagas para profissionais ligados à área do gaming.
Já no Semibreve 2020, festival bracarense voltado para a música eletrónica e a arte digital, a aposta foi desenhar um modelo híbrido, mas de uma forma contida, sem tentar “replicar formatos” e ceder ao facilismo do live streaming. Pela primeira vez, e além das habituais conversas centradas na indústria musical, apostaram “numa linha temática” que valorizou a escuta e uma certa ideia de reclusão.
Por um lado, através de encomendas de obras sonoras a artistas como Beatriz Ferreyra, Kara-Lis Coverdale, Ana da Silva ou Jim O’Rourke, tendo em conta as caraterísticas acústicas e espaciais do Mosteiro de Tibães, onde estas peças puderam ser ouvidas em loop por um número reduzido de público, ao mesmo tempo que ficaram disponíveis no site do festival. Por outro lado, através de filmagens de performances (sem público) de nomes como Klara Lewis, Laurel Halo ou Oliver Coates, que estiveram em residência artística em Mire de Tibães. Os registos das atuações foram exibidos online e no Mosteiro.
João Fernandes alerta que as estruturas culturais não se devem “dedicar de uma forma entusiasta ao culto dos algoritmos” por reproduzirem "sistemas de saber e da economia dominantes”.
Estas performances, nota Luís Fernandes, foram transmitidas em parceria com o Canal 180 e a Fact Magazine, atingindo visualizações “em torno dos cinco, seis mil” por cada vídeo. “Seria impossível chegar a esses números num espetáculo presencial, mas a relação que as pessoas estabelecem com o conteúdo online é totalmente diferente. É muito menos profunda, é mais de consumo rápido. Este ano houve carradas de conteúdos online e isso cria confusão; é muito difícil estar a par de tudo”, observa o programador, também diretor artístico do gnration. “No fundo é uma falácia, porque a medição em números talvez não reflita a força da tua proposta artística. E depois há os algoritmos… É uma experiência mediada por muitos fatores que estão fora do nosso controle.”
Para Artur Mendes, “os algoritmos são mais potentes do que qualquer conteúdo”. Por isso acredita que o maior alcance geográfico da internet não é, necessariamente, sinónimo de um acesso mais democrático e transversal. “Infelizmente existem as barreiras das grandes corporações tecnológicas, ligadas à mercantilização do acesso à informação.”
João Fernandes aprofunda o dilema. “A democracia dentro de uma instituição cultural tem de responder a questões éticas da acessibilidade, que excluem tantas pessoas da vida social e cultural. Isso continua a ser um dos principais problemas de qualquer instituição cultural”, considera. “A grande questão é como é que esta cria os utensílios para ser questionada, interpelada, e para construir uma visão crítica sobre aquilo que faz, e sobre o mundo em que se insere, juntamente com os seus visitantes e utilizadores. E isso a tecnologia não garante por si só: a tecnologia pode ser a expressão dos velhos sistemas de manipulação, de imposição de imagens e de discursos.”
O diretor artístico do IMS confessa que é “assustador” pensar em como os algoritmos funcionam. “Nós já percebemos que se transmitirmos um espetáculo que tenha um conteúdo patrocinado em plataformas virtuais, o algoritmo trabalha a favor do evento e algo que chegaria a 10 mil pessoas chega a 40 mil. Mas o problema é como se chega a essas 40 mil e para o que é que se chega. A questão não pode ser apenas ter milhões de seguidores; tem de ser aquilo que se faz com as pessoas.”
João Fernandes – tal como Ana Garcia do Coquetel Molotov, tal como os responsáveis do MITsp – acredita que a disseminação geográfica ampliada pela internet é extremamente importante num país de dimensões continentais como o Brasil, onde poucos têm condições materiais para se deslocar aos eventos que acontecem nas principais cidades. Porém, Fernandes alerta que as estruturas culturais não se devem “dedicar de uma forma entusiasta ao culto dos algoritmos”, mas sim desempenhar “um papel importante nessa discussão” junto dos públicos, já que estes mecanismos “também reproduzem sistemas de saber e da economia dominantes, bem como as consequentes exclusões determinadas por eles”.
Além das possibilidades supostamente mais participativas que estão a ser desbravadas na Web3, incluindo uma “economia da interdependência” que pode aliar o offline ao online [ver no final a conversa com Mat Dryhurst], contrapor esta ditadura dos algoritmos com “cadeias de cumplicidade, solidariedade e contato” com artistas, em que estes possam ser também “propulsores” dos seus pares – como sucedeu no programa Convida do IMS, como tem vindo a suceder com a inspiradora mobilização internacional de rádios comunitárias online, entre elas a palestiniana Radio Alhara e libanesa Radio Karantina – é uma “das reflexões e práticas diárias” que devem ser ensaiadas, sugere João Fernandes.
E se isso não implica subestimar as redes formadas no digital, também é certo que tem de passar, necessariamente, pelas comunidades presenciais. No caso específico da música, pelo ao vivo.
“Tivemos um alcance maior de público com as transmissões das performances, mas claramente foi unânime esta sensação de perda, de saudade do presencial. Por isso decidimos logo no início do ano, sem saber se iria ser possível por causa das regras sanitárias, voltar a fazer um Semibreve físico em Outubro, ainda que com um complemento digital”, afirma Luís Fernandes.
Também a equipa do Tremor, na ilha de São Miguel, nos Açores, decidiu ir em frente com a edição deste ano. “Achamos mesmo importante as coisas acontecerem. Mesmo que seja num formato diferente, mesmo que tenhamos de lidar com contingências em termos de booking e de público, mesmo que tenhamos de perder coisas como o clubbing ou a circulação entre vários espaços”, declara Márcio Laranjeira, um dos responsáveis pelo festival.
Em compensação, conceberam um programa expositivo em que “usam a ilha como uma galeria”, com instalações artísticas ligadas à música; desenharam trilhos pedestres acompanhados por composições sonoras site-specific; fortaleceram a aposta em artistas portugueses, o que permitiu “concretizar desejos antigos”, como ter os Clã no line-up, além de com isso sublinharem que “as bandas portuguesas não servem só para abrir cartazes de festivais”. A continuação das residências artísticas com comunidades locais como a Escola de Música de Rabo de Peixe, ondamarela e a Associação de Surdos da Ilha de São Miguel adquiriu, este ano, uma relevância redobrada.
“Perderam-se muitos primeiros concertos, perdeu-se muita promoção com pés e cabeça. No entanto, o futuro parece vir a beneficiar de estruturas que se foram criando entre os pingos da chuva da pandemia", disse Alexandra Vidal.
“Várias instituições e associações que realizam um trabalho muito significativo na ilha estiveram quase abandonadas durante a pandemia, de portas fechadas, e o festival serviu também para reativar essas estruturas com o pouco que podemos fazer”, explica Márcio Laranjeira. Não é por acaso que o Tremor se autodenomina como “um evento de pessoas, caras e comunidades”. “Antes da pandemia falava-se muito, de forma depreciativa, da parte social da música, e acho que hoje percebemos que esse fator é muito importante, mesmo nos festivais em que a curadoria é a bandeira. Não é só ver concertos: é estar com pessoas, conhecer pessoas, e isso é essencial para o ser humano.”
A preservação, criação e renovação de comunidades presenciais também faz parte do ADN, do metabolismo das salas independentes de programação de música ao vivo: as chamadas grassroots music venues, que passaram o último ano e meio a tentar sobreviver sem políticas de apoio realmente estruturadas e estruturantes. Mesmo quem pôde abrir portas para funcionar a meio-gás, na maior parte dos casos sem poder levar a cabo a sua atividade programática habitual, sentiu que continuou a servir de âncora para os seus públicos.
“A comunidade artística que sempre nos rodeou continuou a fazê-lo, mas de outra forma. Foi mais uma salvaguarda de afetos mútuos, de conversas, de desabafos, de partilha de perspetivas”, conta Alexandra Vidal, co-fundadora e co-programadora das Damas, em Lisboa. “Fomos mais um consultório de psicologia do que uma sala de concertos no último ano e meio. De certa maneira, ainda bem que assim foi.”
No Village Underground (VU), também na capital, a pandemia acabou por fazer com que a programação ganhasse um cunho mais autoral, em parte “virada para uma comunidade que gosta de música nova, por descobrir”, refere Mariana Duarte Silva. “Nesta nova fase” dão palco, de terça a domingo, “a talentos das mais variadas famílias musicais”, e isso, assinala a responsável, “veio mesmo para ficar”. Paralelamente, o VU pôs em marcha a Skoola, que tem como missão cardeal estimular a criação de comunidades através do ensino não formal de música.
Para Pedro Azevedo, programador do Musicbox Lisboa, da Casa do Capitão e do festival MIL, a partir de agora as grassroots music venues vão ter de começar “a pensar seriamente” em como “pôr os putos a fazer música” e a “torná-la numa profissão mais viável” no futuro. “Claro que isso tem de ser reforçado ao nível mais institucional, mas também vai ter de passar por nós, programadores destas salas”, analisa. “O meu trabalho vai ser apostar no circuito local, incentivá-lo e desafiá-lo. A questão das residências artísticas é fulcral: ou seja, pôr pessoas a trabalhar umas com as outras.”
Este diagnóstico, nota Pedro, surge da constatação de que a pandemia provocou “danos profundos” no tecido da criação musical independente, inclusive na estabilidade emocional dos músicos e na vontade em continuar a fazer o que fazem.
“Os danos são muitos, sejam eles na forma de ausência de oportunidades para a comunidade artística, na diluição das comunidades em espaços que programavam, mas sem ter grandes capacidades de profissionalização, ou toda a música que devia ter sido apresentada e não foi”, reforça Alexandra Vidal. “Perderam-se muitos primeiros concertos, perdeu-se muita promoção com pés e cabeça. No entanto, o futuro parece vir a beneficiar de estruturas que se foram criando entre os pingos da chuva da pandemia.”
O programador do Musicbox acrescenta outro ponto. “As próximas gerações não vão ter confiança para seguir uma carreira musical. E se antes já não era bem visto pela família, agora ficou tudo ainda mais exposto com a pandemia. Os músicos tiveram ou zero apoios ou apoios muito insuficientes.”
Pedro Azevedo diz ainda que, no caso da música ao vivo, em particular nestes circuitos locais, é preciso olhar com cautela para as implicações do digital. Se nas artes visuais e intermédia, e em parte nas artes performativas, a discussão parece mais polissémica, neste setor específico a desconfiança sobressai. “Há toda uma nova forma de os artistas trabalharem conteúdos, de se mostrarem, de interagir com os fãs e até de conseguir a atenção das majors, mas isso vai desaguar onde? Ou devia desaguar onde? Num palco. Em Portugal tens uma nova geração de músicos super talentosos, com 50 mil ou mais seguidores no Instagram, que não tocam ou quase não tocam ao vivo e ficam por trás destas plataformas. As bolhas assim ficam cada vez mais fechadas: as dos artistas, as dos públicos, as dos programadores.”
Pedro Azevedo admite que pode estar a ser “um velho do Restelo”, mas não consegue ver que outro formato possa ser melhor “do que um palco”. “A transição digital traz muita coisa boa, mas, nesta área, temos mesmo de pensar em como não dar cabo daquilo que resta do setor da música ao vivo.” Terminemos, talvez de forma enviesada, com as palavras de Mat Dryhurst, artista, investigador e um declarado entusiasta dos novos caminhos da tecnologia, que não é, com certeza, um velho do Restelo.
“A música é, fundamentalmente, sobre congregação. As pessoas numa sala são aquilo que interessa”. Diz-nos, sem rodeios: “A experiência musical ao vivo é o pináculo para mim. É a dimensão da música que é a inveja de todas as outras formas de arte, e não admira que a economia da música ao vivo seja o principal sistema de apoio para os músicos mais interessantes que conheço. Precedeu a indústria discográfica e sobreviverá a tudo aquilo que pudermos imaginar. Para ser sincero, é um dos principais motivos pelos quais faço música, e sem a promessa de haver concertos acho que perderia o interesse.”
Parceria MIL Magazine/Setenta e Quatro.