As casas autoconstruídas de Maria, Daisy e Ivânia foram demolidas pela Câmara de Loures em março. Cinco meses depois, denunciam a total ausência de oferta de alternativa habitacional, uma atitude persecutória por parte da Segurança Social e a insalubridade dos quartos da pensão onde dormem com os seus bebés.
No primeiro dia de março, ao voltar para casa do seu trabalho na cafetaria do Hospital Beatriz Ângelo, Maria Iolanda Mota encontrou um papel colado na porta: “AVISO ESTA CONSTRUÇÃO VAI SER DEMOLIDA A 6/03/2023 ÀS 9:00h”. Por cima das gordas palavras impressas a vermelho e preto, o pequeno logotipo da Câmara Municipal de Loures (CML). Soube assim que iria, novamente, ficar sem casa.
“A primeira barraca foi-me destruída enquanto eu estava a trabalhar e não me apresentaram qualquer tipo de alternativa.” Sem ter para onde ir ou onde ficar, voltou a construir uma habitação, com “muito sacrifício” e ajuda dos vizinhos, ainda que um funcionário da CML a tenha avisado que não era permitido fazê-lo. “Se ficasse na rua, não ia conseguir trabalhar, e se não conseguisse trabalhar…”
Maria suspende a frase e encolhe os ombros, deitando o olhar ao chão. À hora em que falamos já trabalhou oito horas, e gastou perto de três a ir e a voltar do trabalho. Só folga aos domingos. Está cansada e o pensamento esbarra nas contradições a que está sujeita desde aquela manhã chuvosa de março, no bairro do Talude, em Loures, junto à Estrada Militar. Foi a segunda vez em pouco mais de um ano que viu a sua casa ceder perante a força de uma retroescavadora alugada pela Câmara. “Não entendo porque é que demoliram a minha barraca para me pôr nesta situação”, suspira.
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Há cinco meses que Maria vive no quarto de uma pensão, partilhado com outra pessoa, primeiro no bairro do Restelo e agora no bairro de Sete Rios, em Lisboa. Não tem frigorífico, fogão ou máquina de lavar roupa. Na mesma situação, habitando quartos diferentes de outra pensão, na Avenida 5 de Outubro, entre o Campo Pequeno e o Saldanha, estão Ivânia Quinta e Daisy Espírito Santo, ambas com filhos recém-nascidos à sua guarda, desalojadas também nesse dia de março, e sem conseguir trabalhar. Para a Segurança Social, é delas a responsabilidade de encontrar um sítio para morar.
As três mulheres denunciam jamais ter havido alternativa de alojamento à demolição das suas habitações, negam a afirmação da Câmara de Loures de que “as famílias visadas foram previamente orientadas para a possibilidade de recorrer ao serviço de ação social, tendo em vista a obtenção de apoio na procura de alternativas habitacionais”, e queixam-se da insalubridade dos seus alojamentos. Mas também de serem alvo de um tratamento preconceituoso e persecutório pelas assistentes sociais encarregadas de as acompanhar.
Dizem sentir-se julgadas, desrespeitadas e desamparadas, colocadas à força numa situação da qual não conseguem sair, “com a vida parada”. “Quando ligo para um senhorio e digo que sou mãe solteira ou que estou com a Segurança Social, ou pedem três rendas adiantadas ou desligam-me na cara”, explica Maria.
Nos últimos três anos, a Câmara de Loures tem procedido a diversas demolições de habitações precárias ou autoconstruídas, desalojando dezenas de famílias. A 30 de julho de 2020, um casal ficou desalojado quando a CML mandou abaixo a habitação onde moravam há mais de dois anos, no bairro da Torre, em Camarate, depois de a ocupante original ter sido realojada. A única alternativa oferecida terá sido a de “dividir a família em camaratas distintas e só durante 15 dias”.
Seguiu-se pouco menos de um ano até que a primeira demolição no Talude acontecesse. Em meados de abril de 2021, 12 famílias, cerca de 40 pessoas, foram desalojadas e ficaram sem alternativa habitacional. Entretanto, em 2022, houve mais uma demolição no Talude. Foi quando Maria perdeu a sua primeira casa.
A Câmara de Loures afirma que a responsabilidade de procurar casa é das famílias, ficando o pagamento das "acomodações" a cargo da Segurança Social, que diz, por sua vez, que a atribuição de habitação social é competência do município.
Em junho de 2021, nove famílias que viviam na povoação de Montemor viram as suas casas demolidas, perdendo todos os seus pertences. Quase 30 pessoas ficaram sem casa e, uma vez mais, sem alternativa habitacional.
Depois das demolições de março no Talude, Sónia Paixão (PS), vice-presidente da Câmara Municipal de Loures, disse ao Observador que o executivo não teria qualquer tolerância para com a construção de novas habitações deste tipo. “Assim que detectarmos uma nova construção tomaremos todas as diligências para que tal não aconteça, para que as pessoas percebam, de uma vez por todas, que em Loures se fiscaliza o nosso território”, afirmou Paixão.
A 10 de março deste ano, fonte da Câmara Municipal de Loures disse ao SAPO24 que a responsabilidade de procurar habitação seria das famílias desalojadas. Acrescentou ainda que seria a "Segurança Social a assumir a responsabilidade no pagamento das acomodações das famílias". Por sua vez, a Segurança Social disse ao mesmo órgão de comunicação social que “a atribuição de habitação social é uma competência dos municípios”.
Antes das 9h da manhã daquela segunda-feira, 6 de março, já se juntavam no Talude moradores do bairro e alguns membros das associações Habita!, Stop Despejos e AMRT (Associação para a Mudança e Representação Transcultural). O objetivo era impedir as demolições.
Pouco depois, segundo Maria João Costa, da Habita!, chegaram duas assistentes sociais da Segurança Social e um contingente da Polícia Municipal que, vendo tanta gente aglomerada, cerca de 30 pessoas incluindo algumas crianças, chamou reforços. Já lá estava uma retroescavadora, guiada por um funcionário da Câmara, e, entretanto, chegou um corpo de intervenção da PSP, numeroso e devidamente equipado.
Só não havia “ninguém com quem se pudesse falar”, refere Maria João. Depois desta exigência feita pelas pessoas ali reunidas, formando uma barreira humana, chegaram duas chefes de divisão com uma grande “determinação em demolir aquelas habitações”, explica a coordenadora da associação de defesa do direito à habitação. Não adiantaram mais do que reiterar que as demolições eram “para fazer, que as pessoas estavam avisadas e que sabiam bem que não podiam construir ali”.
Ivânia e Daisy reconhecem que foram abordadas mais de uma vez por funcionários da câmara, que lhes disseram que não podiam estar ali. A Ivânia, cuja morada oficial ainda indicava que vivia em Sintra, disseram-lhe que teria de se ir informar à Segurança Social dessa cidade.
Daisy recorda um dia em que um desses funcionários entrou na sua casa e colocou a mão numa das paredes, ao lado de onde o seu bebé recém-nascido dormia, para sentir a corrente de ar frio que ali passava. “Perguntou como é que podia estar um bebé ali, naquelas condições, e disse que aquela barraca tinha de ir abaixo.”
Não lhes deram mais informações sobre quando isso iria acontecer, nem sobre eventuais alternativas de realojamento. “Ele disse que isso não era com ele, era com a Segurança Social”, afirma Daisy.
Em março de 2021, a câmara de Loures demoliu 19 habitações autoconstruídas no Bairro do Montemor. “Disseram que até ao fim do mês voltariam para demolir o resto”, explica Maria João. Os moradores, organizados e com o apoio da Habita!, conseguiram reunir com representantes da CML e chegar a um compromisso: não haveria mais demolições se não houvesse mais construções. Estávamos a meio da pandemia e o crescimento das construções ilegais naquele largo baldio refletia a aguda crise económica e social que se vivia.
“A câmara deixou crescer”, diz Maria João, “até porque não é um sítio onde passam os funcionários da câmara”. Depois, finalmente, quando confrontados com a situação, “foram demolir à bruta”. As pessoas continuaram a perder o emprego e, consequentemente, capacidade para pagar os arrendamentos, acabando despejadas.
As construções não pararam, incluindo no Talude. Ivânia construiu a sua casa, aos poucos, antes de novembro. Alguns moradores, especialmente jovens, ofereceram-se para lha construir, tal como a Daisy; outros deram “chapas, barrotes, tapetes, até dinheiro”. Por fora parecia uma “barraca”, mas a mulher de 38 anos garante que por dentro “era uma casa” e estava “muito bonita, toda forrada com pladur”. Depois, as demolições voltaram.
Já com câmaras de televisão presentes, o impasse durou até depois da hora do almoço. Quando a chuva começou a cair com mais intensidade, lembra Ivânia, as funcionárias da câmara e agentes da Polícia Municipal entraram em sua casa para se abrigar da chuva. Quando a chuva abrandou, começaram a tentar expulsá-la.
Esvaziaram-lhe a barraca, perdeu tudo o que tinha: “umas coisas compradas com sacrifício, outras dadas, outras em segunda mão… a minha vida — de pobre, mas minha”. Daisy diz que só ficou com os chinelos que traz nos pés. Maria tinha “fogão, frigorífico, camas” e ficou sem nada, sem conseguir perceber como foi possível fazerem-lhe aquilo. Marcando cada palavra com um toque na mesa, como se esclarecendo quem não o consegue ou não quer entender, sublinha que “barraca também é casa”.
Enquanto as pessoas presentes tentavam bloquear a estrada de terra batida, acesso principal àquelas casas, e impedir a retroescavadora de passar, quem ali habitava foi sendo despejado e o maquinista “fez um ‘corta-mato’ com a máquina, destruiu uma vedação e uma horta, e foi diretamente às casas”, explica Maria João. “Ninguém sentiu pena de nós”, adianta Ivânia. “Foram lá com a intenção de partir tudo e deixar-nos na rua”, diz, porque já as casas autoconstruídas eram só destroços e entulho e ainda não havia qualquer alternativa para aquelas sete famílias desalojadas.
Após três dias na Casa da Cultura de Sacavém chegou uma proposta única de alojamento, em quartos de pensão: “quem não aceitasse assinava um papel e deixava de ser da conta deles”.
Depois, as assistentes sociais terão começado a inquirir sobre a disponibilidade de aquelas pessoas irem para “um abrigo”, afirma Maria João, sem especificar muito mais do que algumas possíveis localizações: Figueira da Foz, Águeda, Caldas da Rainha. Ninguém aceitou. Surgiu outra opção, depois das seis e meia da tarde, já o sol estava posto: um auditório na Casa da Cultura de Sacavém. A câmara fretou uma carrinha para levar as poucas coisas que os moradores conseguiam carregar e pelas 23 horas já estavam todos acantonados, sem saber onde iriam dormir no dia seguinte.
Ao todo, sete famílias, incluindo uma mulher grávida, no fim da gestação e com um grave problema de coração, e um homem idoso com mobilidade reduzida, perderam o seu teto e a maioria dos seus pertences nesse dia. Passaram três dias no Centro Cultural de Sacavém. Nessa quinta-feira, à noite, chegou uma proposta única: “quem não aceitasse assinava um papel e deixava de ser da conta deles”, afirma Ivânia. Iriam para uma pensão, mas, garantiram-lhes, era uma alternativa temporária. Não tinham como dizer não.
Na sexta-feira, as famílias foram distribuídas por pensões da cidade de Lisboa sob a responsabilidade da Segurança Social. O idoso, o único homem, terá sido acolhido pela Comunidade Vida e Paz. Para Maria, “se não fossem as associações e as televisões, era só mais uma destruição de barracas e acabou”. Passados cinco meses, estas mulheres continuam a sobreviver em quartos de pensão.
Daisy e Ivânia chegam em parelha ao jardim que circunda a praça de touros do Campo Pequeno, vindas da Avenida 5 de outubro, empurrando cada uma um carrinho de bebé. Aproximam-se lentamente, não só tolhidas pelo calor e pelo cansaço, mas, soubemos depois, pela repetição: fazem este caminho, para cá e para lá, diariamente. Não há pressa.
Os seus bebés dormem tranquilos e bochechudos nas alcofas, na sombra do pano que cobre cada um. Ivânia começa a contar a sua história do princípio, pelo dia em que lhe apareceu um papel na porta, o pânico que sentiu. Daisy vai pontilhando com alguns pormenores e apontamentos à descrição rigorosa da sua vizinha, mesmo que diga estar cansada de se lembrar desse dia. Já contaram esta história tantas e tantas vezes, sem grandes consequências.
“Ali vivíamos em comunidade”, recorda Ivânia, com alguma indignação, sobre o seu desalojamento e a separação de todas as pessoas que ali viviam. Mantêm, ainda assim, um grupo de WhatsApp, para irem partilhando qualquer novidade, alguma dúvida, um pedido urgente.
Hoje, Ivânia e Daisy dormem em quartos iguais na mesma pensão. As suas crianças têm menos de um ano. Ainda mamam, mas já podem comer sopas e, brevemente, poderão começar a provar comidas sólidas, para irem ganhando o gosto de mastigar. São mães experientes e todas as objeções que levantam sobre as condições a que são sujeitas começam e terminam no bem-estar dos filhos.
“O meu bebé perdeu muito peso”, queixa-se Ivânia. Em março, no dia da demolição, o seu bebé, David, tinha três meses. Se fosse o seu primeiro filho, diz, “ele ia passar mal, podia até morrer”. Enquanto falamos, David acorda, os olhos brilhantes e atentos, e palra com convicção. Dois dos seus filhos rapazes, de seis e dez anos, que estavam com ela no dia da demolição da barraca, e que também lá viviam, estão agora em Sintra com o pai, de quem Ivânia se separou ainda em 2022.
Segundo ela, um médico terá atestado que David estava subnutrido, escrevendo um relatório que Ivânia deveria entregar à sua assistente social. Ao telefone, a assistente terá dito que “não precisava de ver relatório nenhum, que já tinha colocado no processo”.
A alimentação desadequada é um transtorno maior para estas mulheres que fazem questão de lembrar de que as suas habitações demolidas tinham fogão e frigorífico.
Daisy, que veio para Portugal durante a pandemia para ser acompanhada na sua gravidez de risco, considera indigno “nem conseguir cozer um ovo”, quando a comida que davam na pensão “nem servia para cão”. Ela saberá, era cozinheira antes de perder o trabalho.
A alimentação desadequada é um transtorno maior para estas mulheres que fazem questão de lembrar de que as suas habitações demolidas tinham fogão e frigorífico, ferramentas centrais da sua independência. Os seus quartos de pensão, cuja área útil não deve ultrapassar os dez metros quadrados, estão apenas equipados com um lavatório e um duche. A sanita mais próxima fica numa casa de banho partilhada, no meio do corredor. Uma única janela deixa entrar algum sol ao início do dia.
Não têm, então, como cozinhar, aquecer ou refrigerar comida ou lavar a roupa. Sentem-se aprisionadas nos seus aposentos temporários. Não há berço. Os bebés dormem ao seu lado. Já gatinham, não param quietos. E há sempre o perigo de, num momento de distração, tombarem da cama. Então, pegam nos bebés e saem. “Ando o dia todo na rua, como uma doida”, desabafa Ivânia. Pergunta-nos se achamos possível comer na rua todos os dias, porque ali nem dá “para guardar a comida de um dia para o outro”.
Então, ou comem aqui e ali, em cafés, pastelarias ou compram algo pronto-a-comer no supermercado. “Estou cansada de comer frango com pão”, atira Daisy, que admite por vezes jejuar até à tarde. Ivânia ensinou o filho mais velho, de 20 anos, que também vive com o pai em Sintra, a fazer sopa para o bebé. “Não tenho como fazê-la eu”, diz, “nem como aquecer leite ou fazer uma papa”. Naquele dia em que nos encontrámos às 10 horas da manhã de um dia quente de final de junho, o bebé ainda só tinha mamado.
Ivânia mostra um pequeno frasco de vidro de tampa azul, já sem o rótulo daquilo para que antes serviu. Compra uma sopa já feita no supermercado, que “vem cheia de sal”, dá metade ao bebé e guarda a restante no frasco, para ser comida mais tarde, sempre no próprio dia.
Como não há qualquer cadeira adaptada, ou sequer uma mesa adequada, têm de alimentar os bebés em cima da cama. Não é raro terem de dormir em cobertores sujos de sopa, porque também não têm como lavar a roupa. Há horários e dias específicos para o fazerem. Ou, então, gastam “uns dez, quinze euros” sempre que querem fazer uma máquina de roupa suja, algo que acontecesse pelo menos duas vezes por semana.
Ivânia também trabalhava, até à gravidez. Já fez limpezas, já fez camas, já deu serventia em obras. Quer voltar a trabalhar. Aliás, ambas planeavam, dizem, voltar a trabalhar assim que conseguissem colocar os rapazes numa creche. Presas neste impasse, sem morada fixa, não lhes é possível nem arranjar trabalho nem sítio onde, eventualmente, deixar o bebé no horário do expediente. Sem uma creche, não conseguem garantir um trabalho ou sequer ir procurá-lo. Um impedimento alimenta o outro: “não sei para onde vou amanhã, estou com a vida parada”.
A assistente social que acompanha Maria ter-lhe-á sugerido voltar ao seu país, São Tomé e Príncipe, ou então que parasse de enviar dinheiro para a filha de 16 anos que lá tem, alegando ser ilegal.
A Segurança Social, na figura de uma assistente social, continua a dizer-lhes que é sua a responsabilidade de arranjar um novo sítio para morar. Ainda assim, no último mês, apresentaram a Daisy duas opções de habitação, que esta recusou. A primeira seria um quarto para si, o seu bebé e a sua filha de 16 anos (que hoje habita “com estranhos e dorme numa cozinha”, segundo a mãe, na casa de um homem idoso).
A segunda seria a Casa da Luz, em Benfica, um centro de acolhimento temporário de emergência para meninas dos 12 aos 18 anos. Disseram-lhe que lá poderia cozinhar, o que não é verdade, segundo Maria João Costa. Maria também terá recebido a proposta para se mudar para este “abrigo”, como lhe foi descrito. A assistente social ter-lhe-á garantido que deixaria de estar sob a responsabilidade da Segurança Social assim que se mudasse para lá. Perguntou se poderia ir lá vê-lo antes de tomar uma decisão. Disseram-lhe que não. Recusou igualmente.
Sozinha, Maria tenta agora voltar a viver com a sua filha de 19 anos, que vivia consigo no Talude mas partiu em setembro do ano passado para Coimbra, para estudar. Segundo Maria, deram-lhe várias razões para não haver uma solução para realojar mãe e filha: primeiro porque a sua morada será a da residência de estudantes em Coimbra, depois por não estar lá no dia da demolição e, enfim, por ser maior de idade. A assistente social terá sugerido que Maria lhe arrendasse um quarto, “só para o verão”.
Em novembro de 2022, foi aprovada na Assembleia da República uma proposta que limita a quantidade de garantias que os senhorios podem exigir no arrendamento de um imóvel. Agora só podem pedir duas rendas adiantadas, além de caução e fiador. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, o valor das rendas na periferia lisboeta subiu cerca de 60% desde 2017. Só no último ano, o valor de uma renda mensal em Lisboa subiu 23%, fixando-se no valor médio de 1480 euros.
A mesma assistente social também terá dito a Maria que uma das suas opções poderia ser voltar ao seu país, São Tomé e Príncipe, ou então que parasse de enviar dinheiro para a filha de 16 anos que lá tem, alegando ser ilegal (não é), e o guardasse para pagar um arrendamento. “Às vezes sinto-me uma criminosa”, queixa-se Maria. “Elas [assistentes sociais] agem como polícias.”
Nos primeiros meses, as três mulheres tinham direito a algumas refeições, garantidas pelas respetivas pensões. Depois de se queixarem da fraca qualidade da comida, e de Daisy se recusar a jantar rissóis de camarão, por ser alérgica a marisco, não houve mais almoço nem jantar. Em vez disso, a Segurança Social passou a dar 400 euros a Ivânia e a Daisy para garantirem a sua alimentação. “Sem recibo, sem nada; baseado em quê?”, pergunta Maria João Costa, que há cinco meses acompanha estas mulheres.
Esse apoio não chegou logo. Como também recebe o abono para as crianças, num valor total que flutua entre os 100 e os 200 euros, Ivânia garante que teve de apresentar todas as suas despesas à assistente social, “uma por uma”, a sua comida e a do bebé, a comida dos filhos que vivem com o pai, a lavandaria, o passe dos transportes públicos, a roupa, o calçado. Depois, continua Ivânia, “disse-me que ao viver este tempo todo na pensão já devia ter dinheiro guardado para alugar uma casa”.
Maria, por sua vez, não recebe qualquer apoio. Continua a trabalhar de segunda a sábado, das 7 horas às 16 horas. Na pensão, tratam-na com desdém se quer lavar uma toalha ou um lençol fora do horário estabelecido. O que mais a incomoda, mais do que a insalubridade do alojamento, é ter de partilhar quarto, “sempre uma pessoa diferente”, num “entra e sai”. “Não tenho vida privada. Ontem, cheguei e vi que a colega de quarto tinha usado o meu copo. Não lhe consegui tocar mais. A minha saúde mental está muito má. Sinto-me um animal, sem paradeiro.”
Maria João Costa garante que as pensões e residenciais nunca serão uma solução formal, mas são uma solução recorrente, visto que a Habita! já acompanhou vários casos semelhantes ao destas mulheres. Recebem queixas de insalubridade, exacerbadas por bolor negro e infestações de percevejos. “A Segurança Social, pelos vistos, não tem grandes exigências, ou então as assistentes não conhecem os sítios para onde enviam as pessoas”, remata.
No meio de tudo isto, as mulheres de Talude continuam com a sua vida, e dos seus filhos e filhas, empatada. Ivânia, levantando as sobrancelhas e relembrando que já passou quase meio ano desde as demolições, pergunta-se como poderá o seu bebé, se tudo continuar assim, aprender a andar preso num quarto de pensão.
Contactadas pelo Setenta e Quatro, a Segurança Social e a Câmara Municipal de Loures não responderam, até ao fecho da edição, às perguntas que lhes foram colocadas.