Da referência ao aceleracionismo aos encontros internacionais de extrema-direita, passando pelos concertos e eventos digitais de doutrinação, o Setenta e Quatro olhou para o Relatório Anual de Segurança Interna 2021 e analisou os desenvolvimentos deste quadrante político.
As correntes aceleracionistas de extrema-direita têm granjeado crescente simpatia entre portugueses no espaço virtual, nota o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) referente a 2021. É a primeira vez que o RASI, acompanhando as preocupações da Europol, faz referência ao termo que tem inspirado a extrema-direita mais violenta nos Estados Unidos e na Europa.
“Ainda em ambiente virtual, continuou a registar-se, em diferentes plataformas e redes sociais, uma crescente simpatia de utilizadores portugueses pelas correntes aceleracionistas (terroristas) de extrema-direita”, lê-se no documento, divulgado na semana passada.
Um dos caminhos até ao aceleracionismo são as teorias da conspiração. “A extrema-direita manteve a estratégia de exploração da conjuntura pandémica online, tendo disseminado propaganda, desinformação e teorias da conspiração e aproximando-se do universo dos movimentos negacionistas, com o intuito de empolar uma narrativa antissistema na sociedade civil”, refere-se no relatório. O caso mais claro desta dinâmica entre extrema-direita e negacionistas é na Alemanha.
O aceleracionismo é uma corrente entre a extrema-direita violenta baseada no pressuposto de a degenerescência (racial, cultural, económica, política, social) das sociedades ocidentais ser incorrigível e, como tal, o seu colapso deve ser apressado pelo semear do caos e da tensão. O colapso das sociedades, acreditam os aceleracionistas, resultará numa guerra racial ou numa catástrofe de tal magnitude que será possível construir uma nova sociedade racialmente pura a partir dos escombros da antiga.
Os atos de violência, incluindo terroristas, sejam individuais ou em pequenas células, contra minorias étnicas e sexuais são uma das orientações estratégicas escolhidas para ‘acelerar’ os conflitos na sociedade.
É a primeira vez que o RASI, acompanhando as preocupações da Europol, faz referência ao termo que tem inspirado a extrema-direita mais violenta nos Estados Unidos e na Europa.
O norueguês Anders Breivik foi um dos primeiros aceleracionistas terroristas na Europa (matou 77 pessoas), e desde aí fez escola entre a extrema-direita mundial. O atentado aceleracionista mais recente aconteceu a 14 de maio deste ano num supermercado em Buffalo, nos Estados Unidos. O terrorista matou dez pessoas racializadas e feriu outras três, tendo planeado o ataque meticulosamente durante cinco meses. E, tal como Breivik e outros aceleracionistas terroristas, deixou um manifesto escrito a explicar as suas razões e difundiu o ataque nas redes sociais, numa tentativa de radicalizar mais pessoas.
Uma das tendências entre a corrente aceleracionista que tem ganho destaque é o ecofascismo - o terrorista de Christchurch, na Nova Zelândia, que matou 51 muçulmanos em 2019, era ecofascista. Ao contrário da maioria da restante extrema-direita, há aceleracionistas que reconhecem as alterações climáticas. Como solução, defendem o genocídio de populações não-brancas para resolver o problema da sobrepopulação e consumo de recursos escassos, salvando assim o planeta. Propõem ainda a construção de muros, fortemente armados, para impedir os refugiados climáticos de entrarem nos seus países, impedindo assim a alegada teoria da grande substituição populacional se tornar realidade.
Não é, no entanto, a primeira vez que documentos oficiais portugueses referem o aceleracionismo. Em 2020, o Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações alertava para a “entrada” das ideias “aceleracionistas” neste quadrante político. E, em dezembro de 2021, a Europol publicou o seu relatório anual concluindo, no que diz respeito à extrema-direita, que “extremistas de direita exploraram a covid-19 para apoiar as suas narrativas aceleracionistas e de teorias da conspiração que caracterizam a sua retórica antissemita, anti-imigração e anti-islão”. O relatório usa o termo 15 vezes em 113 páginas, quando nas suas três edições anteriores não aparece uma única vez.
O reconhecimento da presença destes movimentos aceleracionistas pelo RASI é de registar, considera Cátia Moreira de Carvalho, doutoranda e investigadora em fenómenos de radicalização e extremismo da Universidade do Porto. Mas, continua, “o mais notável ainda é o RASI pôr a palavra 'terroristas' à frente de ‘aceleracionistas’, porque é o reconhecimento de que estes movimentos de extrema-direita também são terroristas”. Ou seja, para si a grande novidade é a “conjugação do aceleracionismo com o terrorismo”.
Isto porque, argumenta ao Setenta e Quatro, “existe sempre alguma relutância por parte da comunicação social e até das autoridades em associarem os movimentos violentos de direita ao terrorismo”.
Desde as FP-25, na década de 1980, passando pelas bases logísticas da ETA, que a extrema-direita é uma das principais preocupações das forças e serviços de segurança portugueses, mas o destaque noticioso não tem ido nesse sentido, muito por causa da influência do foco no jihadismo no seguimento do 11 de Setembro de 2001. “O terrorismo islamita é inexistente em Portugal, foi sempre existindo alguma presença de estrangeiros que passavam por Portugal. Os movimentos de extrema-direita, neonazis, é que têm sido a maior preocupação”, explica ainda a autora do livro Da Radicalização Ideológica ao Terrorismo - Uma digressão.
Mas a violência de extrema-direita, como o assassínio de Alcindo Monteiro, em 1995, ou os vários espancamentos por elementos dos Portugal Hammerskins, chegando até a tentativas de homicídio, nunca é considerada no âmbito do crime de terrorismo. “Não consideramos a extrema-direita existente em Portugal como terrorismo, porque não a criminalizamos dessa forma”, refere ao Setenta e Quatro Raquel da Silva, investigadora no Centro de Estudos Internacionais do ISCTE. “A criminalização dos casos de extrema-direita em Portugal é sempre feita com o artigo 240.º [do Código Penal], o da discriminação racial.”
Um exemplo de contacto entre neonazis portugueses e a corrente aceleracionista proveniente do estrangeiro, através de plataformas e redes sociais, é o do jovem neonazi de 17 anos detido em finais de maio pela Polícia Judiciária. Foi detido por suspeita de ser o principal autor dos ataques racistas e neonazis que interromperam uma sessão virtual organizada pelos alunos do Liceu Camões em fevereiro do ano passado, disse a PJ em comunicado.
É com base neste exemplo que Raquel da Silva argumenta que existem dois pesos e duas medidas no que diz respeito à extrema-direita e ao jihadismo. “Se o zoombombing tivesse sido feito por alguém ligado ao Estado Islâmico, seria automaticamente considerado terrorista e criminalizado de acordo com as leis do terrorismo”, refere a professora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. “Se for ligado à extrema-direita não é automaticamente terrorismo, não é automaticamente falado como terrorista, nem sequer criminalizado como terrorismo.”
Esta opinião é partilhada por Cátia Moreira de Carvalho ao garantir que esta dualidade não se trata de um “fenómeno português, é de todo o mundo ocidental”. “Condena-se muito mais facilmente uma pessoa racializada por terrorismo islamita do que uma pessoa branca que tenha cometido de facto um atentado terrorista”, salienta.
O jovem de 17 anos assumiu-se como defensor da supremacia branca e divulgou propaganda da rede neonazi inorgânica aceleracionista National Partisan Movement (NPM), cujo principal alvo de recrutamento são jovens entre os 12 e os 19 anos. Um dos tipos de ações levadas a campo por elementos do NPM era precisamente o zoombombing, quando se entra anonimamente num evento em videochamada para o boicotar, representando mais um passo na radicalização de novos membros.
“Não consideramos a extrema-direita existente em Portugal como terrorismo, porque não a criminalizamos dessa forma”, refere ao Setenta e Quatro Raquel da Silva.
O NPM surgiu em novembro de 2020, na segunda vaga da pandemia de covid-19, no Instagram e no Telegram – o primeiro servia para recrutar (a conta foi entretanto banida pelo Instagram) e o segundo para se organizar. Aceitava inicialmente apenas recrutas com idades entre os 14 e os 19 anos, mas acabou por incluir membros com 12 anos, a par e passo com a presença de outros com cerca de 30 anos e que atuam como ideólogos.
Um dos ideólogos desta rede inorgânica neonazi era um português de 26 anos residente na República Checa, conhecido pela alcunha “Hatred” (Ódio, em português), como noticiou o Setenta e Quatro em julho de 2021. O português, natural de Lisboa, disse ter-se juntado ao primeiro grupo bonehead (skinheads de extrema-direita) aos 12 anos e, aos 15, já ser líder de um. Nas mensagens de Telegram a que o Setenta e Quatro teve acesso na altura, o português aconselhou os restantes membros a lerem o Mein Kampf e o Siege, um dos livros pioneiros do aceleracionismo.
Sobre se esta referência do RASI pode, nas entrelinhas, querer dizer que já existe um ecossistema aceleracionista em Portugal, Cátia Moreira de Carvalho salienta que “era uma questão de tempo até estes movimentos chegarem a Portugal, sobretudo por se disseminarem muito rapidamente através das redes sociais”. “Essa comunidade virtual já deverá estar mais ou menos formada, mas não creio que isso possa significar um aumento de violência, ou uma passagem dessas ideias para a prática”, afirma. Mas, reforça, é sempre a primeira fase para o aceleracionismo se instalar como corrente entre a extrema-direita.
Por sua vez, Raquel da Silva não tem como dizer que uma comunidade de aceleracionismo se está a formar em Portugal simplesmente pelo facto de “não haver estudos que o comprovem”. A investigadora do CEI-ISCTE reforça que a investigação académica já demonstrou que “existem ecossistemas destes, há estudos de outros países que comprovam isso de alguma forma, mas em Portugal não temos estudos”. “Precisamos realmente de fazer estudos independentes. O RASI não é um relatório independente.”
A pandemia de covid-19 atuou como travão para as atividades presenciais da extrema-direita, fossem nacionais ou internacionais, e o RASI nota isso mesmo. “A pandemia ainda condicionou, em diferentes períodos do ano, as suas atividades tradicionais, obrigando ao cancelamento de algumas iniciativas ou à sua migração para o ambiente virtual (recorrendo por exemplo a ações de doutrinação)”.
Lisboa deveria ter acolhido em meados de maio de 2020 um concerto com quatro bandas neonazis internacionais, do Canadá ao Japão, passando pelo Reino Unido e Espanha, mas a pandemia de covid-19 e o estado de emergência, com o encerramento de fronteiras, obrigou os organizadores a cancelá-lo. “Acho que não teremos alternativa a adiar o evento até maio de 2021”, lê-se na página de Facebook da organização, que desde aí não fez mais nenhuma publicação.
O evento foi promovido pela Hostile Class Records, sediada em Burbank, Ellinois, Estados Unidos, e com uma filial em Valência, Espanha. A editora está na lista dos grupos de música de ódio da Southern Poverty Law Center. Não se sabe, no entanto, qual a facção de extrema-direita que organizou o concerto, mas a divulgação e as bandas convidadas estavam ligadas ao movimento Rock Against Communism, com fortes ligações à rede neonazi Blood & Honour, considerado terrorista pelo Europol. Além disso, um dos sites que promoveu o concerto foi o Rock Against Communism.
Era suposto este concerto internacional ter-se juntado no calendário a um outro organizado a 2 de Novembro de 2019, no Porto, pelo Blood & Honour Portugal. O cartaz contou com duas bandas neonazis alemãs, uma britânica, outra norte-americana e uma francesa. A maior parte destas bandas está ligada ao circuito do neonazi Rock Against Communism.
Com as restrições da covid-19, a extrema-direita migrou, como refere o RASI, para o espaço virtual.
Com as restrições da covid-19, a extrema-direita migrou, como refere o RASI, para o espaço virtual. Uma das ações de doutrinação em espaço digital foi organizada por um novo grupo de extrema-direita, a Força Nova, cuja figura mais destacada é Alexandre Santos, que esteve na neonazi Nova Ordem Social de Mário Machado. A sua primeira conferência nacional virtual, em abril de 2021, contou com a participação de João Martins, intelectual de extrema-direita e condenado a 17 anos de prisão (cumpriu nove anos e quatro meses) pelo assassínio de Alcindo Monteiro, no Bairro Alto, em 1995, para falar sobre a unificação do nacionalismo português.
A conferência foi, por assim dizer, o consumar da aproximação entre dois grupos que estavam em campos opostos, ainda que individualmente pudessem ser dialogantes, da extrema-direita nacional: de um lado João Martins, do outro Mário Machado. Nos meses que se seguiram, a Força Nova difundiu publicidade e organizou uma tertúlia com a editora de extrema-direita Contra-Corrente, na qual João Martins colabora ativamente.
Tornada pública em fevereiro de 2021, meses depois da desmobilização da Resistência Nacional, responsável pela manifestação com tochas e máscaras brancas em frente ao SOS Racismo, a Força Nova tem estreitado ligações internacionais, integrando uma campanha internacional contra o Pacto das Nações Unidas para a Migração. Chegou a organizar, em maio de 2021, um evento internacional sobre este tema com um representante da Europa Terra Nostra e membro do partido neonazi alemão NPD, Sascha A. Rossmüller.
Meses depois, mais três eventos virtuais se seguiram: uma conferência internacional com Yiannis Zografos, membro do partido de extrema-direita grego Elasyn, fundado por antigos dirigentes do neonazi Aurora Dourada. Depois, ainda se realizou uma terceira sobre as presidenciais francesas com um partido de extrema-direita francês, Os Nacionalistas, de Yvan Benedetti.
Ao mesmo tempo, a figura mais destacada da Força Nova, que também tem ligações à extrema-direita búlgara, por lá ter vivido vários anos, tem-se desdobrado em viagens e encontros internacionais com forças de extrema-direita, participando em eventos em Itália (Roma), Espanha (Madrid) e França, este último em maio deste ano. Mas, em termos de mobilização, este novo grupo de extrema-direita não destoa dos que lhe antecederam: mobiliza poucas dezenas de pessoas, se tanto.
À semelhança do RASI 2020, o relatório deste ano volta a destacar a proximidade entre a extrema-direita e o universo negacionista “com o intuito de empolar uma narrativa antissistema na sociedade civil”, seja nas redes sociais seja no mundo real. “A extrema-direita manteve a estratégia de exploração da conjuntura pandémica online, tendo disseminado propaganda, desinformação e teorias da conspiração e aproximando-se do universo dos movimentos negacionistas, com o intuito de empolar uma narrativa antissistema na sociedade civil”, lê-se no RASI.
Um dos exemplos desta aproximação nas ruas portuguesas foi quando os neofascistas identitários do Escudo Identitário se juntaram a protestos contra as restrições derivadas da pandemia de covid-19, aliando-se inclusive ao neonazi Blood & Honour, de acordo com o relatório da Europol de 2021. Esta adesão aos protestos foi uma réplica do que os identitários italianos, no qual o Escudo Identitário se inspira. Em Itália, juntaram-se a protestos negacionistas contra o governo e as restrições sociais.
Mais tarde, a 10 de junho de 2021, Escudo Identitário e Blood & Honour Portugal voltaram a cooperar com uma concentração em frente ao Monumento aos Combatentes do Ultramar, indo depois para uma concentração no Largo Camões organizada pelo Ergue-te! (antes Partido Nacional Renovador, PNR). No primeiro evento, menos de 20 pessoas marcaram presença; no segundo não ultrapassaram as 50. A capacidade de mobilização da extrema-direita marginal, como refere o RASI 2021, continua frágil.
“A extrema-direita manteve a estratégia de exploração da conjuntura pandémica online, tendo disseminado propaganda, desinformação e teorias da conspiração", lê-se no RASI 2021.
Um outro exemplo aconteceu em novembro de 2020. Na manifestação negacionista que se juntou ao protesto dos empresários da restauração no Rossio, em Lisboa, elementos da filial portuguesa da rede internacional Proud Boys, com sede nos Estados Unidos, marcaram presença. O seu presidente, Pedro Lopes, então com 21 anos, fez questão de envergar o colete com o símbolo do grupo. O grupo usava um discurso antissistema e anti esquerda para reforçar a radicalização e apelar, ainda que camufladamente, à violência.
O caso mais preocupante desta aliança entre extrema-direita e negacionistas aconteceu na Alemanha, isto se excluirmos os Estados Unidos com o movimento QAnon. A extrema-direita violenta alemã tomou conta dos protestos, chegando até a tentar invadir o Bundestag em agosto de 2020, e usou os seus canais para difundir ódio racial e teorias da conspiração, recrutando entre os negacionistas. A corrente aceleracionista ganhou uma nova dimensão no país, transformando-se na principal ameaça para a segurança interna alemã.