Os garimpos ilegais de ouro na Amazónia contaminaram solos, rios e lençóis freáticos com mercúrio. O metal não radioativo, mas extremamente tóxico, está a matar lentamente os povos indígenas e a destruir ecossistemas. Nados-mortos, a proliferação de cancros e outras doenças em comunidades inteiras são os sinais mais claros da contaminação.
Foi nas margens do Rio Tapajós, na Amazónia brasileira, que a indígena Maria Munduruku completou, em maio, nove anos. Na aldeia, crianças como ela jogam bola, sobem em árvores, brincam com animais e correm pela floresta, mas Maria não: ela não anda, não fala e não consegue ganhar peso. Com malformações congénitas e problemas neurológicos, ela não consegue sequer frequentar a escola.
Maria é uma das dezenas de crianças Munduruku com malformações e atrasos no desenvolvimento, além de adultos que relatam tremores, fraqueza e perda de visão. Há vários anos que médicos e lideranças indígenas tentam explicar o problema que faz com que as aldeias habitadas pelo povo Munduruku, no estado do Pará, sejam as que mais solicitam cadeiras de rodas ao Ministério da Saúde do Brasil.
“Ela fez vários exames em hospitais da região, mas nunca conseguimos descobrir exatamente o que causou esse problema nela”, diz o professor indígena Eduardo, pai de Maria. “Chegamos a pensar que fosse algo espiritual, dos nossos deuses, mas sabemos que nessa região as águas estão contaminadas por mercúrio usados nos garimpos ilegais de ouro.”
Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.
Maria e o seu pai vivem na bacia do Rio Tapajós, de ocupação tradicional do povo Munduruku. Esta é a região do Brasil que mais concentra garimpos ilegais de ouro e onde estão os municípios de Itaituba, Trairão e Jacareacanga, os campeões de garimpagem, de acordo com um relatório da MapBiomas, organização que mapeia ações humanas nos biomas brasileiros.
Apesar de o problema ser conhecido entre indígenas e autoridades públicas, não há na região programas de combate ao garimpo ilegal ou sequer de testagens para verificar a possível contaminação de pessoas por mercúrio. Um dos poucos estudos sobre o tema foi feito em 2020, pela organização não governamental WWF e pela Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), ligada ao Ministério da Saúde do Brasil.
Os resultados foram aterradores: todos os 200 indígenas Munduruku testados, entre adultos e crianças, possuíam mercúrio no organismo - em média 60% deles com níveis acima do considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de 10μg/L. Entre as 57 crianças testadas, nove apresentaram problemas nos testes de neurodesenvolvimento.
No entanto, a média de contaminação varia entre as três aldeias analisadas. Em Sawré Muybu, 40% dos testados estavam com níveis de mercúrio no organismo acima dos limites toleráveis; em Poxo Muybu, são 60%; e em Sawré Aboy chegam aos 90%.
“Trata-se de uma geração inteira exposta ao mercúrio, que pode ter dificuldades de se desenvolver plenamente. Isso representa uma grande perda para o meio ambiente, para a saúde pública, para as cadeias económicas tradicionais e, sobretudo, para o futuro da Amazônia”, diz ao Setenta e Quatro o porta-voz do Greenpeace, Danicley de Aguiar.
A crise, no entanto, não se restringe aos Munduruku. Em janeiro deste ano, imagens de crianças Yanomami em estado de desnutrição profunda chocaram o país e expuseram uma realidade trágica, agravada pelo garimpo, que espalha fome e doenças também no estado de Roraima, na fronteira com a Venezuela.
Entre janeiro e fevereiro de 2023, o Ministério da Saúde registrou pelo menos 42 mortes na Terra Indígena Yanomami. As causas principais foram desnutrição grave, diarreia e pneumonia, doenças diretamente relacionadas à insegurança alimentar, já que os Yanomami não conseguem mais cultivar roças, caçar ou pescar com o avanço de 20 mil garimpeiros no território antes intocado.
A presença dos invasores provocou um aumento de casos de malária, desnutrição, infecções respiratórias e diversas doenças relacionadas com a fome. O governo brasileiro chegou a declarar estado de emergência sanitária na região e iniciou uma operação para retirar os milhares de garimpeiros da Terra Yanomami. Mas, por causa da dificuldade de acesso, o processo pode levar até um ano.
A realidade de quem vive nas áreas disputadas pelo garimpo ilegal é pouco conhecida até pelos brasileiros, mas, em janeiro de 2022, uma notícia correu o país e lançou luz sobre o assunto: uma enorme mancha de lama invadiu as águas verdes do Rio Tapajós na vila de Alter do Chão, no município paraense de Santarém e chegou a pelo menos 750 quilómetros de distância das áreas de garimpo. O local é um dos principais pontos turísticos do Brasil, popularmente chamado de “Caribe da Amazônia”.
Pesquisas confirmaram que parte dos sedimentos vieram de garimpos de ouro ilegais e que viajaram centenas de quilómetros até alcançarem a vila, contaminando peixes, crustáceos, algas e todo o complexo ecossistema da Amazónia. Até as andorinhas azuis, espécie migratória na região, já apresentam mercúrio nas penas, segundo um estudo do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).
Uma média de 21,3% dos peixes comercializados e consumidos em 17 municípios de três estados da Amazónia têm níveis de mercúrio acima dos toleráveis pela Organização Mundial de Saúde.
A substância é considerada o metal não radioativo mais tóxico para a saúde de pessoas e animais. Ela é usada nos garimpos para unir fragmentos de ouro, já que na Amazónia a maior parte do minério é encontrado em partículas muito finas, misturadas com o solo e sedimentos dos rios.
Para chegar até ele é preciso que grandes balsas cavem e suguem o fundo dos rios, retirando grandes quantidades de lama, que, misturadas com o mercúrio metálico, formam amálgamas. Elas, por sua vez, são queimadas para que o mercúrio evapore e sobre apenas o ouro. Depois deste processo, toda a lama contaminada é devolvida ao rio e o mercúrio vai parar ao solo, à água e aos lençóis freáticos. O ouro é comercializado sem dificuldade, como um produto da mineração legal.
Em média, e para cada quilo de ouro, os garimpeiros usam entre dois e oito quilos de mercúrio, que são despejados no leito do rio, atingem o fundo e sofrem transformações químicas até virar metilmercúrio. A substância entra então na cadeia alimentar, contamina os peixes, o principal alimento das populações da região, e permanece no ambiente por tempo indeterminado.
“Os indígenas vão reforçando a contaminação a cada refeição”, diz ao Setenta e Quatro o médico da Fiocruz Paulo Basta, um dos principais especialistas em saúde indígena do Brasil, que há anos acompanha o problema. “Cada vez que alguém ingere um peixe contaminado, o mercúrio vai para a corrente sanguínea e é distribuído para todos os órgãos do corpo, em especial para o sistema nervoso central, podendo causar diferentes problemas.”
O cenário é tão grave que uma média dos 21,3% dos peixes comercializados e consumidos em 17 municípios de três estados da Amazónia apresentam níveis de mercúrio acima dos toleráveis pela OMS. Os dados, divulgados em maio deste ano, são de uma pesquisa inédita da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Greenpeace, Iepé, Instituto Socioambiental e WWF-Brasil.
Assim, quem nasce nas comunidades ribeirinhas do Tapajós tem mais riscos de malformação congénita, paralisia cerebral e deformações em consequência da exposição ao mercúrio. Em alguns casos graves, grávidas contaminadas não conseguem levar a gestão ao fim, dão à luz bebés nados-mortos ou reforçam a contaminação dos bebés na amamentação.
O garimpo deixa uma chaga na floresta, com intenso desmatamento, abertura de enormes crateras, assoreamento de rios e circulação constante de pessoas nas terras indígenas. Tudo isso favorece também o surgimento de várias doenças, como malária, verminose, tuberculose, febre amarela, leishmaniose, hantavirose, sífilis e até a covid-19. Mais uma vez, as populações da Amazónia são as principais vítimas.
A indígena Munduruku Ilda tinha 36 anos quando começou a ter tremores, paralisia nas pernas, problemas de visão e esquecimentos. Depois de um longo período em hospitais, recebeu dois diagnósticos: mercúrio no sangue, em quantidades consideradas extremamente críticas, e cancro no pulmão, fígado e pâncreas. Os médicos disseram-lhe que o mercúrio é um dos metais mais cancerígenos do planeta.
“Ela lutou por três anos, chegou a pesar 29 quilos. Faleceu em abril do ano passado, deixando nossos quatro filhos”, conta o indígena Amaro, viúvo de Ilda. “Muitas pessoas na aldeia apresentam sintomas que parecem ter a ver com o mercúrio. Isso deixa a gente muito preocupado, porque sabemos que estamos comendo peixe contaminado.”
Histórias como a de Ilda e Amaro têm-se espalhado entre as aldeias indígenas Munduruku. São bebés, crianças, adultos e idosos que, apesar de não terem diagnóstico, apresentam sintomas de exposição ao mercúrio, como desmaios, dores de cabeça, visão turva e perda de memória.
“Os sintomas da contaminação não são fechados. Podem ser depressão, cegueira, distúrbios na fala ou aumento de pressão arterial, por exemplo. Nos adultos, o efeito não é imediato, pelo contrário, ocorre ao longo de anos”, explica ao Setenta e Quatro o médico neurologista Erik Jennings, que acompanha as populações indígenas do Rio do Tapajós. “O que notamos é que nas áreas mais impactadas pelo garimpo há pacientes com sintomas que indicam exposição ao mercúrio.”
E o problema não se restringe apenas às áreas onde ocorre a atividade garimpeira: o movimento dos enormes rios amazónicos espalha a substância por quilómetros, expondo à contaminação a população urbana da região.
Um estudo recente do Laboratório de Epidemiologia Molecular (LEpiMol), da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), testou a quantidade de mercúrio em 462 pessoas de comunidades ribeirinhas do Rio Tapajós, Rio Amazonas e da área urbana de Santarém. Ao todo, 75,6% estavam com níveis de mercúrio acima do limite considerado seguro.
“Nossos anciões viviam muito, chegavam perto dos 100 anos. Agora não. Temos muitas mortes nas comunidades, muitos casos de cancro e de crianças com deficiências. Nossa água ficou suja, a caça se afastou e os lugares de plantar foram destruídos”, relata Alessandra Munduruku, coordenadora da Associação Indígena Pariri, que defende os direitos dos povos originários do Brasil.
Pelo seu trabalho de combate ao garimpo e de defesa dos direitos indígenas, Alessandra Munduruku já teve a sua casa invadida e saqueada duas vezes. Em ambas foram roubados cartões de memória e documentos que comprovavam a extração de ouro na região. Hoje, ela só circula pelas cidades da região com segurança particular – afinal, os garimpos ilegais também deixam marcas brutais de violência.
Eles foram responsáveis por 90% das mortes por conflitos no campo brasileiro em 2021, de acordo com um Relatório de Conflitos no Campo de 2021, publicado pela Comissão Pastoral da Terra.
“As pessoas vivem em um ambiente de extrema tensão e sofrem com a presença de armas, drogas, com prostituição e de violência sexual contra mulheres e crianças das comunidades. Essa violência toda também impacta na saúde, nas relações sociais e no desenvolvimento das comunidades”, diz o médico Paulo Basta, da Fiocruz.
Quando se fala em exposição ao mercúrio, há um grupo que é especialmente vulnerável: as crianças Munduruku. A substância super tóxica pode causar danos irreversíveis no corpo delas, como problemas no desenvolvimento cognitivo, na fala e na visão – condições que impactarão toda sua vida futura.
Os danos na saúde começam antes mesmo de nascerem: quando a gestante consome peixes contaminados, o mercúrio entra na corrente sanguínea da mãe, ultrapassa a placenta e chega ao bebé. Neste processo, a concentração de mercúrio no cérebro do feto chega a ser entre cinco a sete vezes maior que em adultos. Até o leite materno, considerado o alimento mais saudável para os bebés até aos seis meses, se transforma num transmissor do metal pesado, reforçando a contaminação dia a dia.
Nem todos os problemas causados pelo mercúrio nas crianças são facilmente identificados. Muitas delas apresentam o que os médicos chamam de “manifestações subclínicas”: atrasos no desenvolvimento, demora para ficar de pé, andar, falar e, mais tarde, dificuldades para acompanhar os conteúdos ensinados na escola.
“As crianças das regiões de garimpo estão expostas desde sempre e para sempre. Quando começaram a ser gestadas já estavam expostas ao mercúrio e continuam na amamentação e na alimentação. Elas vão carregar essa marca por toda vida, na sua saúde, na capacidade de aprendizado e de trabalho”, diz o médico Paulo Basta.
O estado do Pará, onde estão as aldeias Munduruku, concentra 57,91% das áreas de garimpo do Brasil, muitas delas dentro de terras indígenas ou em áreas de conservação ambiental, o que é expressamente proibido pela Constituição brasileira.
Ainda assim, o número de garimpos de ouro em áreas indígenas aumentou 495% entre 2010 e 2020: passou dos 2.010 hectares para mais de 9.850 hectares, segundo um estudo do MapBiomas. O maior aumento deu-se justamente na Amazónia.
Os garimpeiros operam à revelia da lei, em garimpos com estruturas milionárias, usando máquinas pesadas como dragas, retroescavadoras, balsas e até aviões e helicópteros. O negócio é tão lucrativo que o prefeito do município de Itaituba, Valmir Climaco, se articulou para dar à cidade a alcunha de “Capital da Pepita”, enquanto aproveitava brechas na legislação para fortalecer o garimpo ilegal - o seu próprio, já que é também dono de garimpo, peacuarista e madereiro.
O ouro extraído ilegalmente da Amazónia brasileira é matéria-prima para equipamentos médicos, eletrónicos e jóias, que serão comercializados e até exportados para a Europa e Estados Unidos. Uma investigação do portal jornalístico Repórter Brasil comprovou que computadores e smartphones da Apple e da Microsoft, além de servidores do Google e da Amazon, eram compostos por filamentos de ouro extraídos, em parte, de garimpos ilegais da Amazônia.
E quem acompanha o problema reforça: a situação piorou durante o governo do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL), que esteve no poder entre 2018 e 2022: em 2021 a área garimpada em Terras Indígenas demarcadas aumentou 625% em comparação com 2020, segundo a organização MapBiomas.
Além disso, Bolsonaro articulou uma política de avanço do garimpo e assinou oito decretos que facilitaram a atividade ilegal. O ex-presidente chegou a enviar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 191 de 2020, que previa legalizar a mineração em terras indígenas. A pauta foi suspensa pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no seu primeiro dia de mandato, mas cabe ao Congresso aboli-la em definitivo.
“No governo Bolsonaro, os donos de garimpos não tinham medo. Eles se articulavam com deputados, senadores, vereadores, e acabavam ganhando muita força. Nós víamos helicópteros chegando e grandes quantidades de combustível sendo transportadas, em plena luz do dia”, conta Alessandra Munduruku. “Com a mudança de governo, eles estão mais discretos, mas continuam explorando ouro em nossas terras.”
Os especialistas ouvidos concordam que é urgente suspender a atividade garimpeira no Rio Tapajós e travar a exposição das populações ao mercúrio. Enfrentar o problema exige ações firmes do governo federal e uma intensa articulação entre os sistemas públicos de saúde, segurança pública e educação, o que na prática é bastante complexo.
Em nota, o Ministério da Saúde do Brasil informou que está a acompanhar o povo Munduruku da região do Tapajós e que uma equipe de profissionais de Vigilância, Saúde Ambiental, Saúde Indígena e Emergências foi deslocada para a região para formular um diagnóstico preciso da situação. A missão irá orientar as ações futuras da pasta.
O ouro extraído ilegalmente da Amazónia brasileira é matéria-prima para equipamentos médicos, eletrónicos e joias, que serão comercializados e até exportados para a Europa e Estados Unidos.
Além da assistência de saúde, uma das medidas mais urgentes é rastrear e monitorar a cadeia de produção e comércio de ouro ilegal, um dos mais ativos da economia brasileira.
Neste ano, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública colocou em prática três operações especiais para combater o garimpo em Terras Indígenas, em especial na Yanomami. Como resultado, foram apreendidas 76 balsas, 12 embarcações e 12 aeronaves - além de outras dez destruídas pelas forças de segurança. No balanço estão ainda a prisão de 279 pessoas e a apreensão de 127 armas de fogo e de toneladas de drogas.
No final do mês de julho, o presidente Lula assinou um decreto que institui o Plano Amas - Amazônia: Segurança e Soberania, uma medida para promover segurança pública na região e enfrentar crimes ambientais, com instalação de bases terrestres e fluviais, compra de lanchas blindadas e helicópteros e ações de fortalecimento das polícias.
Ainda assim, pouco foi feito ou planejado especificamente para os Munduruku, tão castigados pela presença do garimpo em suas terras. Mais do que nunca, eles dependem de compromisso político para terem garantido o direito humano à saúde, alimentação de qualidade e segurança.
“Nós somos teimosos. Não vamos desistir dos nossos idosos, das nossas crianças e do nosso povo”, promete Alessandra Munduruku. Ela, porém, como todos os povos do Tapajós, tem pressa. A Amazônia, o Brasil e o mundo também.
*Por questões de segurança, os nomes dos indígenas foram alterados e a identificação das aldeias e terras indígenas afetadas omitidos.