Durante 21 anos a Estação Ferroviária da Boavista, no Porto, caiu no esquecimento da governação portuguesa. Com um contrato que a mantém devoluta e em compasso de espera para a sua demolição, um centro comercial do grupo El Corte Inglés está em vias de dizimar um local com mais de 140 anos de história.
Teresa Maria Ribeiro não se lembra de ter partido do grande Porto para a zona que intitula como sua casa: a Boavista. É comerciante e dona das Lojas Ribeiro há 66 anos, localizadas na rua que dá acesso ao centro comercial Bom Sucesso. Recorda-se da Estação Ferroviária da Boavista como ponto de partida e passagem dos grandes comboios a carvão. Orgulhosa por a estação ter assinalado o início da ferrovia na zona norte, resgata memórias de um Porto que “não é mais o que era antes”. Chegou a hora da Boavista também deixar de o ser.
Viajamos no tempo para perceber a influência da Estação Ferroviária da Boavista na história portuense, quando ainda prestava serviço público. Nesta viagem cruzamos caminhos entre Póvoa e Famalicão. A antiga Estação da Companhia dos Caminhos de Ferro do Porto à Póvoa e Famalicão foi inaugurada a 1 de outubro de 1875, quando entrou ao serviço o primeiro troço da Linha da Póvoa, da Boavista à Póvoa de Varzim. Registando-se uma das primeiras estações da ferroviária histórica da cidade do Porto, a Linha da Póvoa foi também a primeira linha de um só carril (via estreita) no país.
Hoje, entaipada de uma cor que não é a sua, lê-se na única fachada que se mantém em pé e visível: “Jardim, sim. Betão, não”. Aquela que foi em tempos a Estação Ferroviária da Boavista, luminosa, barulhenta e ponto de referência para todos os que lá passavam, degrada-se drasticamente, ficando agora em compasso de espera para a sua demolição.
Assinalando 21 anos de abandono, os terrenos que aos olhos do investigador José Manuel Cordeiro foram casa de uma estrutura “simples e característica da sua época” serão a base de mais um centro de grande superfície do grupo espanhol El Corte Inglés (ECI). Um feito que se regista desde 2000, mas que até então ‘passou pelos pingos da chuva’. Rui Moreira, atual presidente da Câmara Municipal do Porto, opta por dizer que não há volta a dar. “Isto é um negócio entre a IP (Infraestruturas de Portugal) e um grupo privado. A Câmara Municipal do Porto não pode nessa matéria intervir. É inevitável”.
Não concordando com esta realidade, a comunidade local rapidamente se fez ouvir. Em 2019, o Movimento Jardim Ferroviário da Boavista lançou uma petição que conta com cerca de 11 mil subscritores. Os moradores e comerciantes pediam que fosse construído um jardim público para a Boavista e não mais um centro comercial.
“Isto vai abafar os centros mais pequenos, principalmente aqueles que já não estão bem. Mais um centro comercial vai ser a desgraça total”, queixa-se Maria Teresa Ribeiro.
Sentados no café Ponto 2, na Boavista, Hugo Pereira, investigador do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT), e Orlando Castro, arquiteto e membro do movimento, descrevem o presidente da Câmara do Porto como alguém com uma postura arrogante para com os seus concidadãos, desvalorizando as suas reivindicações por um espaço verde no terreno da antiga estação. “Ele [Rui Moreira] disse que também gostava de ter um jardim ao lado da sua casa, entre outras expressões de total desprezo por esta iniciativa de contestação popular”, recorda ao Setenta e Quatro Hugo Pereira.
Os moradores e comerciantes recusam-se a transformar o que resta da Estação Ferroviária da Boavista numa “selva de betão”, e mesmo depois de a petição se mostrar significativa, o presidente nada quis fazer. “Ele disse valia o que valia, porque também podia reunir até 50,000 assinaturas se fosse preciso”, acrescenta Orlando Castro.
Ao longo dos últimos três anos a contestação à venda e construção de um centro comercial no terreno da antiga estação tem-se feito ouvir por todo o país. Foi pedida uma auscultação pública por parte da comunidade, mas, de acordo com o movimento, nem o governo nem a Câmara do Porto fizeram questão que a mesma se realizasse. Questionado sobre a sua possível aprovação em Assembleia Municipal, Rui Moreira afirma “nada ter contra a realização da mesma”. Ainda assim, a questão mantém-se: quando é que acontecerá?
A este cenário juntam-se ainda as palavras de Pedro Baganha, do Porto, o Nosso Partido, vereador do Urbanismo. A 24 de maio de 2021, na Assembleia Municipal, esclareceu que “não faz sentido realizar uma discussão pública sobre um terreno com interesses privados” e que “a auscultação pública que interessa são as eleições autárquicas”.
Entre ‘calar’ a opinião pública e recalcar as memórias históricas, este local foi também casa e ponto de encontro para sem-abrigos, comunidades ciganas e para muitas outras pessoas que estariam naquele espaço de passagem. Passados dezoito anos, os encontros deixaram de acontecer. A estação ardeu em pleno inverno, numa noite cerrada e fria, como é costume no Porto.
“Curioso será dizer que aquele incêndio aconteceu numa altura em que estávamos a ser ouvidos”, sugerem os membros do movimento.
O Ministério Público abriu, em dezembro de 2020, um inquérito para determinar a razão do incêndio. Ficou sob a responsabilidade do Departamento Central de Investigação e Ação Penal da Comarca do Porto. O Setenta e Quatro tentou saber em que ponto estava a investigação, mas sem sucesso.
Em tempos, a estação escapou à ‘cinzentura’. Aqueles terrenos que caíram no esquecimento vergaram-se sob o silêncio durante os dias em que por lá passamos. O “casamento que pede há muito divórcio” – quem o diz é Maria Teresa – e que levanta tantas questões é o Contrato Promessa e Venda de Constituição de Direito de Superfície, assinado a 28 de julho de 2000, entre a REFER e o El Corte Inglés. Com um custo de cerca 20 milhões de euros, o grupo espanhol usufruía assim de um terreno com 37 mil metros quadrados.
Nas últimas duas décadas, foram feitos cinco aditamentos ao contrato. Apesar de o executivo camarário nem sempre deixar claro o seu posicionamento, é certo que a Câmara Municipal do Porto tinha o poder de enquadrar esta contratação no Plano Diretor Municipal (PDM), permitindo assim o seu avanço ou recusa. O mesmo acontecia com a aprovação, ou negação, do Pedido de Informação Prévia (PIP).
O PIP é um projeto submetido à apreciação da Câmara Municipal para que a entidade obtenha um parecer de viabilidade para construção. Com a sua aprovação na reta final de 2020, o discurso que Rui Moreira mantinha sobre a “inevitabilidade” caiu por terra. Mais um passo dado para que a construção do ECI acontecesse. Este PIP, muito semelhante em termos de dimensão de construção ao apresentado em 2003, já tinha sido negado, quando ainda era Rui Rio presidente da Câmara do Porto.
Apesar de a Câmara Municipal do Porto afirmar que o novo PIP, apresentado pelo ECI para a antiga estação, recebeu parecer favorável da autarquia com “a indicação das várias condições que deverão ser cumpridas no âmbito de um pedido de licenciamento da operação de loteamento”, o Movimento Jardim Ferroviário da Boavista e a população local não consideram esta alteração suficiente.
O atual presidente da Câmara do Porto referiu em entrevista o que já tinha sido dito na Assembleia Municipal: “este novo PIP apresentava alterações profundas, como uma grande redução no que toca ao estacionamento, que era uma das coisas que mais nos assustava, em termos de dimensões”.
Em carta aberta, o movimento expôs que até à data o PIP não reunia os elementos fundamentais para esta tomada de decisão e, por isso, não deveria ser válida.
“Falamos do relatório de estudo de tráfego que estaria a ser elaborado pela Divisão Municipal de Gestão da Mobilidade e Tráfego (DMGMT) para conhecer o impacto deste empreendimento no sistema de tráfego rodoviário, já altamente congestionado nesta zona da cidade e cujos resultados não eram conhecidos na altura (e continuamos sem os conhecer ainda hoje)”, lê-se na carta.
Apesar de a Câmara Municipal do Porto hoje se mostrar a favor desta construção, o cenário era outro em 2019. No final de novembro do mesmo ano, a autarquia aprovou por unanimidade uma recomendação ao Governo para reverter o contrato promessa do terreno da Boavista, onde o ECI tinha intenção de construir. Sugerida por Ilda Figueiredo, vereadora sem pelouro da CDU, a recomendação instava à reversão da decisão, exigindo que no futuro não se promovesse a construção de grandes superfícies na cidade sem previamente se articular com o município.
Foi no seu gabinete, no edifício da Câmara Municipal do Porto, que Ilda Figueiredo tomou conhecimento, através da comunicação social, da decisão do primeiro-ministro, António Costa. “Disse que não ia voltar atrás, porque já tinham sido pagos cerca de 20 milhões à empresa pública Infraestruturas de Portugal e o Governo não estava disponível para devolver esse dinheiro”, recorda a vereadora.
Questionado sobre este ponto essencial na história, Rui Moreira referiu publicamente que “a Câmara Municipal do Porto nunca foi contra nem a favor. Estamos aqui para perceber o que é melhor para a cidade. E é isso que temos feito também com este caso”.
Da Câmara do Porto passamos ao parlamento. No final de março de 2021, este tema foi alvo de debate na Comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação e Pedro Nuno Santos, ministro da Habitação e Infraestruturas, que acompanhou o caso nos últimos anos, reforçou que o Estado não vai rescindir o contrato alegando a necessidade de a IP ter de devolver os 20 milhões de euros– sinal já desembolsado pelo grupo ECI – ou até um valor superior.
“Se estivéssemos a falar aos dias de hoje, eu diria que o terreno deveria ser destinado, em primeiro [lugar], à habitação. Mas estamos em 2021 e há uma coisa que não vamos fazer: incumbir contratos, revogar ou rescindir que teriam um custo desproporcional para o Estado Português e para a IP”, disse o ministro.
Estes valores não eram totalmente desconhecidos. Na audição pública parlamentar de 16 de março de 2021, o presidente da IP, António Laranjo, referiu que o contrato assinado em 2000 entre a IP e o ECI previa o pagamento de 20,82 milhões de euros e que o grupo espanhol já tinha pago 19,97 milhões.
Tendo em conta estes esclarecimentos, Hugo Pereira contesta as posições do ministro e do presidente da IP quando se referem a uma possível indemnização além do sinal ou do pagamento deste em dobro. O membro do movimento recorre ao artigo 442.º, n.º 4, do Código Civil, que diz: “não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste”. O também investigador acrescenta que, “segundo o número 2 do mesmo artigo, a devolver algo, tendo em conta as circunstâncias, seria apenas o valor do sinal devido”.
Este argumento não se revela suficiente para que o ministro mude de ideias. O que também se aplica ao movimento que não pretende cruzar os braços perante esta situação.
A falta de transparência por parte do Governo e da Câmara do Porto, ao longo de todo o processo, tem sido uma das críticas apontadas pelos entrevistados nesta investigação. Falam em incongruências procedimentais no que diz respeito aos prazos regulamentados, informações nebulosas e indisponibilidade da consulta pública de documentação e informação que deveria estar disponível a todos os cidadãos.
O vereador sem pelouro Sérgio Aires, eleito na lista do Bloco de Esquerda, afirma que mais do que falta de transparência por parte do governo e do executivo camarário é até de incompetência e desentendimento.
“A falta de transparência já começa há mais de vinte anos. Tudo o que está a dizer agora vai demorar anos a acontecer”, garante.
Aires acrescenta que se o projeto já estivesse definitivamente nas mãos do ECI e a Câmara soubesse com o que contar para a sua gestão “estaríamos a falar de algo que mais uma vez se arrastaria por mais três ou quatro anos”.
Preocupado com as dificuldades de resposta aos pedidos de matéria-prima e ao preço de mão-de- obra, questões que têm inquietado os construtores por todo o país, o vereador denuncia que a Câmara poderá ter também este problema. “Tudo o que foi orçamentado há dois meses não está a acontecer, porque os valores que apresenta não são valores que o mercado esteja capaz de responder, dado ao preço das matérias-primas e de mão-de-obra”.
Prevendo que o custo de terreno por metro quadrado aumente tendo em conta o ‘boom’ imobiliário que se avizinhou, o vereador ressalva que aqueles terrenos, nos dias de hoje, valem bem mais do que 750 euros por metro quadrado. “É certo que as rendas nunca poderão ser acessíveis desta forma.”
Para Ilda Figueiredo, a falta de transparência vem desde a altura que levou a moção à Câmara do Porto para que o governo revertesse o processo de cedência do terreno. “Quando peguei neste tema e trouxe à Câmara a proposta para solicitar ao governo e às Infraestruturas de Portugal a reversão [da construção], foi quando descobrimos que o contrato tinha sido feito, porque até então não sabíamos dele. Portanto, houve aqui da parte do governo, ou melhor, dos sucessivos governos uma opacidade completa.”
Já o representante do Núcleo de Defesa do Meio Ambiente de Lordelo do Ouro – Grupo Ecológico (NDMALO-GE), Belmiro Cunha, refere com indignação que os “segundos interesses” sempre estiveram à vista de todos. “Falar de falta de transparência? É tudo muito evidente, aliás. Os envolvidos no processo foram sempre acalentando aquilo que hoje têm como adquirido, porque sabiam que iria haver uma alteração nos planos da Câmara. Tudo o que foi apontado de errado até então foi completamente desvalorizado, porque a maioria camarária assim o pretendia”, denuncia.
Quando o contrato-promessa foi assinado pela primeira vez, em 2000, entre o Estado, dono da REFER, e o grupo ECI, garantia durante 99 anos o direito de superfície dos terrenos ferroviários da Boavista. Sendo prorrogado ao longo dos anos, foi em 2007 que a terceira adicional terminou. No entanto, a ligação entre a REFER e o grupo ECI não cessa aqui. O contrato voltou a ser retomado em 2010 e foi prolongado por mais 18 anos, até abril de 2028. Quando em 2018 a REFER se fundiu com a Infraestruturas de Portugal, o prazo acabou da última adicional reduzido para julho 2021, extensível por mais um ano.
À primeira vista este processo não está muito distante do que acontece com contratos-promessa. No entanto, os terrenos teriam como objetivo principal a construção dos armazéns comerciais do ECI que, após recusa do PIP em 2003, ficaram sem efeito.
Em 2003 o contrato foi renovado pelo vice-presidente do conselho de Administração da REFER, José Osório da Gama e Castro juntamente com o administrador e engenheiro Luís Miguel Silva e os representantes do grupo espanhol, o administrador Alexandre Patrício Pinto Basto Gouveia e o diretor geral José Leopoldo del Nogal Ropero. O Setenta e Quatro entrou em contacto com o ECI , as Infraestruturas de Portugal e o Ministério das Infraestruturas e Habitação para perceber os termos deste contrato, mas não obteve qualquer resposta.
No meio disto tudo, o empreendimento ficou envolto em polémica. Desde a gestão socialista de Nuno Cardoso (1999 - 2001), que a pretensão do grupo espanhol referente à instalação de um centro comercial nos terrenos da Boavista vem sendo questionada. Depois de ficar em ‘stand-by’ na esperança de que após as eleições autárquicas a situação fosse desbloqueada, os mandatos do ex-autarca Rui Rio refutaram por completo esta ideia. Acusado de “desperdiçar uma oportunidade de ouro que permitiria a criação de 1500 postos de trabalho diretos e um investimento de 250 milhões de euros”, Rui Rio não cedeu. Manteve o seu discurso de que a Baixa seria a zona ideal para este investimento.
O grupo espanhol discordava desta hipótese por a sua linha de orientação comercial ser contrária à instalação de lojas suas no pleno coração das cidades. Considerava não haver vias de acesso rápidas capazes de trazer o maior número de clientes possível e de facilitar as operações de cargas e descargas, declarações dadas na altura em que o negócio voltou a ser destacado.
Estas condicionantes foram rapidamente ultrapassadas no lado de lá da ponte D. Luís I. Tendo Gaia como destino, o ECI concluiu a sua construção naquela zona, em 2005. Na altura, o presidente da Câmara de Gaia, Luís Filipe Menezes, estaria em condições de apresentar o projeto de execução da obra, porque o único entrave que existia à instalação de uma unidade comercial do grupo “foi desbloqueado autorizando o pedido de transferência da localização do El Corte Inglés do Porto (Avenida de França) para Gaia”, escreveu o Público em 2005. O antigo autarca da Câmara de Gaia referia ainda que se “bateu pelo projeto”, porque o único entrave até então era Rui Rio.
Para o Movimento Jardim Ferroviário da Boavista o contrato poderia ter sido cessado, uma vez que não havia acordo entre a Câmara Municipal do Porto e o ECI. O movimento acredita que o valor do negócio foi um dos motivos para que este contrato continuasse “sempre ligado às máquinas”.
Tendo ficado em “banho-maria” cerca de dois anos, uma vez que a terceira adicional não foi renovada, Hugo Pereira afirma que esse teria sido o momento ideal para que o interesse público fosse ouvido “se não fosse tudo feito sem o conhecimento dos cidadãos”. “Nós entendemos que, nessa altura (2007-2010), o contrato poderia ser rescindido pela IP sem que tivesse que pagar indemnização, voltando assim à esfera pública”, continua.
Sérgio Aires, por sua vez, considera que entre esse período de tempo poderia haver a necessidade de compensar o ECI, “ creio que essa tem sido até a chantagem pela outra parte (ECI), se bem que eu não sei se é explícita pela entidade. Eventualmente o ECI pode ter deixado de ter interesse naquele investimento”. O vereador reconhece ser “algo evidente” uma vez que o negócio não está a correr como previam, em Portugal. Ainda assim, deixar cair por terra o projeto do ECI na Boavista não fazia – nem faz – parte dos planos do grupo espanhol.
Depois de vários partidos destacarem a sua preocupação sobre a reavaliação dos terrenos, como foi o caso do PAN e do Bloco de Esquerda, que submeteram vários requerimentos às diversas frentes, o ministro da Habitação e Infraestruturas pediu à empresa pública Infraestruturas de Portugal uma reavaliação do terreno. O valor aumentou 155%, de 20,6 milhões para 52,6 milhões de euros.
A atualização destes valores levou largos anos e, até se chegar a esta decisão, a Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF) interveio com desagrado. Não concordou inicialmente com o valor apresentado pela empresa avaliadora por “não estar de acordo com as Normas Europeias de Avaliação.” Aos 44,8 milhões euros calculados acrescentou 7,8 milhões de euros. Da análise e recálculo do valor do terreno pela DGTF resultou “um valor unitário de 762 euros por metro quadrado de área bruta de construção acima do solo”. Valor esse que deixou a opinião pública desconfortável, atendendo aos valores luxuosos para a compra de habitação, cada vez mais escassa na zona da Boavista.
Para que o valor fosse saldado, a cadeia espanhola aceitou entregar à Infraestruturas de Portugal, dona do terreno, dois dos três lotes que eram objeto de direito de superfície a favor da empresa, juntando aos 20,6 milhões que já liquidou no âmbito do contrato celebrado.
Com esta reavaliação e o PIP aprovado, a capacidade construtiva aumentou substancialmente permitindo que o ECI fique com três vezes mais espaço de edificação.
Uma outra fração de apenas 254 metros quadrados ficará na propriedade do El Corte Inglés pelo potencial urbanístico. Poderá ser entregue ao Município como “dação em cumprimento de parte do pagamento de taxas urbanísticas”, disse ao Expresso Enrique Hidalgo, diretor-geral do grupo.
O Movimento Jardim Ferroviário da Boavista contesta a decisão dizendo ainda que “a Câmara está em vias de aprovar o projeto do ECI sem cedência de terreno para área verde pública e de querer receber uma taxa de compensação financeira.
Desprezando as medidas de cedência previstas no Plano Diretor Municipal (PDM)”, a Câmara abdicará assim da área total de cedência para equipamento público (passeios e arruamentos) e da área verde – passa de 31 mil metros quadrados para nove mil metros.
Tendo em conta estas intenções, o movimento contrapõe novamente com a importância de um jardim na área. Ainda assim, Pedro Baganha, vereador do Urbanismo, não quer ceder mais espaços verdes. Com base na sua recusa está o argumento de que a Praça Mouzinho de Albuquerque (uma rotunda) é um jardim.
Para José Manuel Cordeiro, presidente da Associação Portuguesa para o Património Industrial (APPI) e docente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, “esta praça não responde às fragilidades ambientais e falta de zonas verdes acima elencadas, nem é considerada um jardim”.
Os membros do Movimento Jardim Estação Ferroviária da Boavista partilham da mesma opinião.
Acrescentam ainda que a justificação não é válida, porque o próprio PDM não define esta praça como um jardim: para ser considerada como tal, deve ter uma área permeável igual ou superior a 35%. Mas o índice de permeabilidade da praça é apenas de 29,6%.
O movimento avançou com diversas queixas ao Ministério Público e à Procuradoria-Geral da República com o objetivo de contrariar os argumentos dados pela Câmara do Porto. E, para isso, o movimento recorreu ao relatório de caracterização e diagnóstico "Suporte biofísico e ambiente urbano”, o qual justifica o "interesse público" na preservação do espaço e promoção de áreas verdes no centro. Nele é percetível as diversas condicionantes ambientais e de saúde pelas quais a população poderá passar com a construção de mais centros de grande superfície.
Entre os eventuais custos para a população encontram-se a elevada probabilidade de degradação da qualidade do ar, probabilidade de ruído acima do admissível e, por fim, a Boavista transformar-se numa zona sem área de espaços verdes públicos, exteriores de recreio e lazer. Este estudo, realizado pela Universidade do Porto, foi encomendado pela Câmara da cidade para a elaboração do novo Plano Diretor Municipal (PDM), o que revela que a mesma tem conhecimento das realidades negativas que a construção de grandes superfícies trará aos cidadãos.
Ao longo da investigação, o Setenta e Quatro verificou que o discurso a que o executivo recorre para a não valorização de espaços verdes ou da possível classificação da estação como património cultural não é coerente com a informação que o PDM apresenta.
O Plano Diretor Municipal é um documento de planeamento estratégico e normativo que consagra as linhas de desenvolvimento urbanístico de um determinado município. Com as suas orientações e regras que regulam a qualificação e uso do solo, habitação, rede de infraestruturas, rede de equipamentos, entre outros, poderiam impedir a construção da grande superfície.
No entanto, com a sua revisão em agosto de 2021, essa possibilidade tonou-se exequível. De acordo com Ilda Figueiredo, que votou contra esta última revisão, “agora, a maioria do executivo municipal com o apoio do PSD, naturalmente, quer pôr em prática o PDM” e, isso poderá permitir a construção da infraestrutura.
Ainda assim, é possível perceber que, caso o projeto avance, irá ultrapassar algumas das medidas determinadas com a regulamentação do PDM. O Movimento Jardim Ferroviário da Boavista apresentou, no final de agosto de 2021, uma queixa ao Ministério da Administração Interna e à IGF - Autoridade de Auditoria na qual ressalva a aprovação do PIP pela Câmara Municipal. Destaca ainda a não cedência obrigatória de terreno para espaço verde e equipamento público conforme constava no documento autárquico, sendo o “grande ponto fraco” de uma atualização que tinha como objetivo possibilitar a construção do centro comercial.
Estas falhas no PDM não são novidade na Câmara do Porto. Desde 2006 que o documento tem sido alvo de refuta. Em janeiro do ano passado, a Câmara do Porto votou pela terceira vez na proposta preliminar PDM, cuja conclusão do procedimento de revisão foi prorrogado duas vezes.
O Núcleo de Defesa do Meio Ambiente de Lordelo do Ouro já destacara naquela altura “um claro retrocesso em termos de melhoramentos urbanísticos, patrimoniais e ambientais, infelizmente a exemplo do que já tinha acontecido com a revisão [do PDM] de 2006".
Belmiro Cunha, representante do Núcleo de Defesa do Meio Ambiente de Lordelo do Ouro ainda que a proposta preliminar "continua na mesma direção", retirando "áreas ainda classificadas no atual PDM como zonas verdes ou de proteção urbanística, para 'legalizar' novas ocupações urbanísticas já aprovadas ou até já em fase de construção (como os empreendimentos na marginal do Douro ou margens das ribeiras do Porto)". O mesmo aconteceu na revisão de 2006 que, segundo o núcleo, “é uma revisão que representa também as ilegalidades que tinham sido até aí cometidas, como ficaram provadas na Auditoria feita à Câmara do Porto da época".
Hugo Pereira, fundador do movimento em defesa da estação ferroviária, acrescentou que o mencionado nas respostas e intervenções em assembleias por parte da autarquia era sempre baseadas no argumento: “à Câmara Municipal do Porto cabia apenas enquadrar esta contratação no Plano Diretor Municipal (PDM) e aprovar”.
Assim como grande parte destes aspetos caem em esquecimento, a Estação Ferroviária da Boavista parece estar na mesma queda para a governação e a autarquia.
Num escritório distribuído por duas mesas, onde o telefone pedia constantemente a sua atenção e o sol invadia a papelada aglomerada na zona em que trabalhava, a representante da CDU dedicou-se a explicar ao Setenta e Quatro o porquê de não concordar com a invisibilização da antiga estação enquanto património.
Assim como os representantes do Movimento Ferroviário da Boavista, a vereadora apresentou uma proposta na Câmara para a classificação do edifício da antiga estação como património cultural - rejeitada - e ainda do monumento que simboliza a Guerra Peninsular, localizado na Praça Mouzinho de Albuquerque. Recorrendo a fatores como a importância histórica, arquitetónica e visual a classificação do monumento impediria que a antiga estação fosse destruída, no entanto, o processo prolonga-se há mais de dois anos, o que ultrapassa todos os prazos legais determinados para esta classificação.
Além de Ilda Figueiredo, Sérgio Aires e o Movimento Jardim Ferroviário da Boavista, as associações UNESCO Porto, Campo Aberto, APAP e Jardins Históricos têm estado na linha da frente para a preservação da antiga estação. Este grupo de cerca de 60 personalidades ligadas à academia e ao património ferroviário pediu a classificação como imóvel de interesse público e municipal daquele local, defendendo a importância da conservação da antiga estação ferroviária.
Além do jardim, quer a vereadora da CDU quer o vereador independente eleito pelo Bloco de Esquerda equacionam a possibilidade de fazer do terreno da antiga estação projetos maiores, para que a estação e os jardins sejam preservados e tenham uma utilidade social. Pensam numa possível biblioteca, um espaço cultural público, e equipamentos públicos que permitam o fácil acesso aos moradores. Pretendem dar vida ao conceito que serviu no século XIX para a construção da Estação Ferroviária da Boavista: serviço público.
As associações apresentaram ainda um parecer técnico da Associação portuguesa de património industrial, mas afirmam que a Câmara do Porto recusou o seu pedido inicial sem qualquer explicação. Tendo em conta os critérios de respostas a estes pedidos, é necessário que a Câmara discrimine o porquê da sua recusa. Assim, o movimento não só recorreu elencando os critérios que permitem a classificação da estação como salientou a obrigação de resposta detalhada. Posteriormente, recebeu a justificação da não classificação da estação.
A Diretora do Departamento Municipal de Gestão Cultural do Porto reagiu dizendo que o “conjunto em apreço não reúne as características de distinção necessárias conducentes à abertura do procedimento solicitado”.
De seguida, a Diretora do Departamento Municipal de Gestão Cultural enumera-as ressalvando que “sobre o contexto histórico e construtivo do imóvel, não há destaque que releve este bem e a sua matriz do conjunto construído em que está atualmente inserido. Sobressaindo a referência à origem da linha nacional de via estreita, o imóvel sobrevive isolado sem o seu contexto ferroviário envolvente”. Semanas depois a Câmara Municipal veio propor a transladação da estação para outro local.
Ao terminarmos a análise destes documentos, o telefone toca. É o presidente da Associação Portuguesa para o Património Industrial (APPI), José Manuel Cordeiro, quem está do outro lado. Numa breve videochamada, viajamos pelos anos setenta do século XIX para perceber a “graciosidade” de um monumento que “recai na sua simplicidade, cada vez mais escassa”.
“O eventual desaparecimento das instalações da Estação da Boavista não só representaria uma significativa perda para o património cultural do Porto, dado que para além da Ponte Maria Pia -numa incompreensível situação de abandono mais de um quarto de um século após a sua desativação -, e também da Estação de Campanhã e, mais tarde, a de S. Bento, a cidade não dispõe de muitos mais vestígios dos primórdios da construção da rede ferroviária”, argumenta José Cordeiro.
O também docente de História Contemporânea da Universidade do Minho recorda ainda que a lei no 107/2001, que estabelece as bases da política e do regime de proteção e valorização do património cultural, contempla a salvaguarda de bens de interesse arqueológico-industrial cuja importância seja reconhecida. A Estação da Boavista, segundo Cordeiro, constitui “um excelente exemplar da arquitetura ferroviária portuguesa do último quartel do século XIX”.
Questionados sobre os diversos critérios para que os monumentos sejam classificados como património cultural, Sérgio Aires, o movimento e toda a comunidade local destacam a importância de haver um local histórico próximo de quem ali vive e que lhes permita usufruir de um espaço que desde a sua construção foi pensado para a esfera pública.
A comerciante Maria Teresa Ribeiro em momento algum discorda. Viu grandes zonas da cidade do Porto enquanto ainda não passavam de quintas, nos seus primórdios. Ao perceber que na sua evolução, além do comércio, a falta de habitação condigna e acessível é cada vez mais um tema na ordem do dia, acredita que a Boavista nunca foi exceção: “Quem vai dar 300 mil, 400 mil por um andar, nunca na vida vem para uma zona tão movimentada. O que vai voltar a acontecer é a transformação de parques habitacionais em escritórios. E os preços dos escritórios estão tão altos que as pessoas se deslocalizam. Tudo isto interfere com a vida de quem aqui trabalha e vive”.
Agora, cabe à autarquia e ao Governo escolher: ouvir quem ali vive ou beneficiar em milhões de euros um grupo privado, retirando à população uma história, uma cultura e um direito que todos os que abraçam o ‘Porto bairrista’ não querem perder.