A invasão da Ucrânia mudou a geoestratégia da energia. A Europa quer acabar com a dependência do gás natural russo e os Estados Unidos aproveitam para vender o seu excedente de gás de xisto. Criam-se novas dependências e aumenta-se o investimento num combustível fóssil.
Nas últimas semanas, uma das preocupações que mais tem ocupado os encontros entre líderes de Estados-membros da União Europeia é a longa dependência dos combustíveis fósseis provenientes da Rússia. Desde que começou a invasão da Ucrânia pela Rússia, a 24 de fevereiro deste ano, que a comunidade internacional acordou para uma complexa situação geoestratégica criada por países que se distanciam ideologicamente de autocratas, mas que se aliam a eles para negócios de compra e venda de gás, de carvão e de petróleo.
Uma das coisas que parte do mundo ficou a perceber desde o início da invasão é que estava iminente a abertura do Nord Stream 2, um gasoduto que iria ligar a Rússia à Alemanha pelo Mar Báltico, para duplicar o fornecimento de gás. Este grande empreendimento não era mais que uma confirmação da tal dependência. Seria para durar, caso a invasão não tivesse acontecido.
Chegámos a um ponto em que, por um lado, se debatem os esforços para reduzir os combustíveis fósseis - seja na cimeira do clima (COP), seja nas diferentes negociações internacionais - e, por outro, se estimulam as importações de gás, de carvão e de petróleo. Esta dicotomia não é uma novidade, mas a guerra veio dar-lhe uma nova dimensão. Veio expor as relações promíscuas não apenas com a Rússia, mas também com a Arábia Saudita, o Azerbeijão, a Indonésia ou com a China.
O lóbi do gás é tão forte na União Europeia que as próprias empresas que constroem e operam as infraestruturas de gasodutos e terminais de gás natural liquefeito (NGL) foram integradas na Rede Europeia de Operadores de Sistemas de Transmissão de Gás (ENTSOG, sigla em inglês), criada pela Comissão Europeia. Os novos projetos aprovados são em proveito dos próprios Estados-membros.
Prova de que nada é apenas uma relação comercial é o facto de um dos administradores da empresa russa Gazprom ser o antigo chanceler Gerhard Schroeder.
Pascoe Sabido, membro da ONG Corporate Europe Observatory, explicou num artigo publicado em abril como as relações de interdependência têm evoluído nos últimos anos e o que se projeta para o futuro. Cerca de 45% do gás, 25% do petróleo e 45% do carvão fornecido aos países da União Europeia são importados da Rússia. Na Alemanha, o grande importador europeu, 35% do seu petróleo vinha da Rússia, número que nestes meses já foi reduzido para 12%. Este país está abaixo da média europeia no investimento das energias renováveis, no entanto, é o maior consumidor e importador da Europa - antes da invasão, Berlim encerrou três das seis centrais nucleares que tinha, mas agora fala-se na sua reabertura.
A exportação de combustíveis fósseis tem sido o grande trunfo da Rússia desde que começou a invasão. Aumentaram as receitas e são uma arma de chantagem por parte do Kremlin. Por enquanto o certificado ao Nord Stream 2 está embargado pelas delegações alemãs. Por outro lado, a Comissão Europeia avalia alternativas a longo prazo, ou seja, chegar a 2030 sem importar gás russo. Mas, por agora, não há grande alternativa à compra de gás russo e a Comissão Europeia está a delinear um plano para respeitar as exigências russas sem violar as sanções aplicadas a Moscovo.
O impasse a que assistimos (visível pelos diferentes pacotes de sanções) passa pela decisão de embargo. Será a Europa a encontrar uma forma de não comprar combustíveis fósseis à Rússia, ou será o presidente russo, Vladimir Putin, a cortar o fornecimento? Seja como for, estamos na iminência de uma crise energética caso o embargo se concretize.
As negociações internacionais ganharam nova amplitude depois de a Rússia ter cortado o fornecimento de gás à Bulgária e à Polónia, que se recusaram a fazer o pagamento em rublos, exigência da Rússia com o objetivo de travar desvalorização da sua moeda no mercado internacional. Agora também cortou à Finlândia, depois deste país ter formalizado o pedido de adesão à NATO.
Os EUA sempre foram contra a construção deste gasoduto (por comprometer o seu aumento de exportação de gás para a Europa) ao mesmo tempo que a Alemanha e a Rússia sempre insistiram que era apenas uma relação comercial. Prova de que nada é apenas uma relação comercial é o facto de um dos administradores da empresa russa Gazprom ser o antigo chanceler Gerhard Schroeder. O próprio já declarou que não tem qualquer razões para pedir desculpa depois de ser duramente criticado, inclusive por dirigentes do seu partido, o SPD.
Com a parceria transatlântica ficaria reforçado o aumento de 50 mil milhões de metros cúbicos de GNL enviados anualmente dos EUA.
O financiamento do projeto Nord Stream 2, com um custo estimado em 10,5 mil milhões de de dólares (9,9 mil milhões de euros), é resultado de um consórcio da russa Nord Stream AG (com 51% do negócio) e mais quatro companhias europeias: a ENGIE (França), a Wintershall (Alemanha), a N.V. Nederlandse (Holanda) e a E.ON (Inglaterra).
Como resultado da atual crise despoletada pela guerra, os esforços da União Europeia são sobretudo no sentido de uma maior diversificação na importação. Em março, a Comissão Europeia apresentou uma iniciativa chamada RePowerEU, onde são desenvolvidas medidas “que se destinam não só a dar resposta ao aumento dos preços da energia na Europa, como também a salvaguardar as reservas de gás para o próximo inverno”, como expressa a declaração de interesses.
Isto significa que pode haver um álibi para uma maior importação de carvão, para a nova construção de gasodutos (onde o gás é transportado na forma gasosa) e para o aumento de navios terminais de GNL (gás natural liquefeito), com origem em vários pontos do planeta, mas sempre com o intuito de se evitar a Rússia. No entanto, a forma como esta diversificação de fontes se vai concretizar ainda é uma incógnita.
O GNL é um gás natural condensado de forma líquida para que seja mais facilmente transportado em navios metaneiros. Após o descarregamento para tanques de armazenamento, fica em espera até ser regaseificado, ou seja, voltar à forma gasosa para ser distribuído.
Portugal é um dos países da Europa que está na linha da frente das fontes renováveis, mas isso não quer dizer que a dependência de combustíveis fósseis seja atualmente muito menor. A Rússia é o maior abastecedor de petróleo em Portugal, mas no que toca ao gás natural iniciou transações apenas em 2019 (10% do total importado). O grande volume das importações deste combustível vem essencialmente dos EUA e da Nigéria. Têm como destino o porto de Sines. O primeiro carregamento de GNL que chegou à Europa vinda dos EUA atracou precisamente neste porto, em 2016. Desde aí, a importação de gás tem vindo a aumentar.
Num encontro em abril entre a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e Joe Biden, o presidente dos EUA prometeu “ajudar a Europa” a libertar-se da dependência em relação à Rússia. Garantiu que Washington forneceria mais GNL. Mais concretamente, com a parceria transatlântica ficaria reforçado o aumento de 50 mil milhões de metros cúbicos de GNL enviados anualmente dos EUA. Este reforço vai traduzir-se, ainda este ano, em mais de 15 mil milhões de metros cúbicos. Sines, e vários outros portos de países da Europa, principalmente da vizinha Espanha, vão aumentar a sua capacidade de receção e armazenamento de gás, para ser depois redistribuído.
O gás natural liquefeito é constituído por 90% de metano, um gás com efeito de estufa que contribui mais para o aquecimento global do que o dióxido de carbono.
Como mostram os dados divulgados pelo semanário Expresso, o rumo das importações já está estabelecido, e novos negócios milionários estão a ser estruturados. A Galp será cliente da norte-americana Venture Global LNG, com um contrato de 20 anos. A EDP tem um contrato com a Point Fortin e faz parte de um conjunto de compradores para adquirir GNL à norte-americana Cheniere, também com um contrato a 20 anos.
Por outro lado, e apesar da diminuição da importação de gás da Argélia, a EDP comunicou um contrato com a argelina Sonatrach, também fornecedora da Galp. A Endesa, empresa espanhola, importa gás para Portugal vindo da Nigéria e iniciou em 2019 um contrato por 20 anos com a norte-americana Cheniere. Todos os contratos são por 20 anos, mais ou menos aquilo que se ambiciona para diminuir para metade as emissões de gases com efeito de estufa.
A Europa tem liderado (ainda que com duras críticas, principalmente isentar de impostos o consumo de combustíveis fósseis e por lacunas na lei) o processo de transição para as energias renováveis, mas o processo é lento e não homogéneo, com muitas contradições que neste momento se acentuam. Por muito que se alerte para a urgência climática, e em vez de se investir e aumentar a produção energética proveniente de fontes renováveis, a dependência de combustíveis fósseis duplicou na última década.
Há quem considere que, tal como a energia nuclear, o gás natural liquefeito é considerado uma fonte favorável para a transição energética. No entanto, trata-se de uma fonte poluente, constituída por 90% de metano, um gás com efeito de estufa que contribui mais para o aquecimento global do que o dióxido de carbono. Se o objetivo é apostar no gás natural como combustível de transição, os investimentos revelam um carácter muito definitivo.
Em entrevista ao Setenta e Quatro, Francisco Ferreira, da associação Zero, diz que, apesar deste gás ser “apresentado como essencial para a transição energética”, não é uma fonte renovável. “É melhor do que o carvão, mas não deixa de ser um combustível fóssil.”
No contexto em que vivemos, o ambientalista defende que, “quer no gás, quer no petróleo, o que interessa é fazer uma mudança que aposte na independência energética”. Na COP26, realizada em novembro de 2021, em Glasgow, no Reino Unido, um dos compromissos foi precisamente a redução das emissões de metano.
“Quando se diz que o metano tem um potencial de aquecimento global 28 vezes maior do que o CO2”, explica Francisco Ferreira, “olhamos para um horizonte de 100 anos, mas [no caso deste gás] na primeira década em que está na atmosfera é capaz de absorver [calor] 80 vezes mais do que o dióxido de carbono”.
A divisão do mundo em dois blocos antagónicos poderá dar origem no curto prazo a uma crise de segurança energética na Europa e a uma crise climática planetária a longo prazo.
Além disso, nas equações não entram as fugas de metano, muito frequentes tanto na produção como na utilização nos transportes. Num comunicado emitido pela associação Zero em abril, é apresentada uma investigação conduzida pela Federação Europeia dos Transportes e Ambiente (T&E) no porto de Roterdão, na Holanda, onde se revelam imagens do metano “invisível” que é lançado para a atmosfera em grandes quantidades pelos navios movidos a GNL.
“Por mais que estes navios sejam ‘pintados de verde’”, diz o comunicado, “a verdade é que, para lá da superfície, a maioria dos navios movidos a GNL atualmente no mercado são piores para o clima do que os navios movidos a combustíveis fósseis que pretendem substituir”. O abastecimento norte-americano de GNL para a Europa vai obrigar à circulação de vários navios todos os anos.
Há ainda “outras questões em cima da mesa”, diz Francisco Ferreira. Relativamente ao gás natural, “o governo português tem vindo a reafirmar que esta é a altura de avançar com um projeto que foi chumbado pelos reguladores espanhóis e franceses, que é um gasoduto para melhorar a ligação entre a Península Ibérica e a França”. Esse empreendimento, que teve inicialmente o nome de MidCat e que iria atravessar os Pirinéus, foi recusado pelo regulador espanhol dos mercados e concorrência (CNMC) e pelo regulador francês de energia (CRE).
Para mudar a estratégia de obtenção e distribuição de gás natural para a Europa, significa que, além das aprovações, é necessário um grande investimento para aumentar a capacidade de fazer transitar o GNL. Em princípio serão vários anos de estudos e de construção. Ou seja, como explica o ambientalista, “quem os fizer agora, vai querer rentabilizar mais tarde com a continuação do gás natural ou mudando para o hidrogénio, considerado ‘verde’, mas que por enquanto é produzido a partir de gás fóssil”.
Um dos projetos que também já esteve na senda da REN (Redes Energéticas Nacionais) foi igualmente impedido de avançar. O objetivo era a construção de um gasoduto que ligasse Portugal a Espanha através de Trás-os-Montes. A ERSE (regulador de energia) não aprovou o projeto, tendo em conta que ainda não estavam reunidas as condições técnicas. No entanto, a estratégia de estabelecer uma rede independente entre Portugal, Espanha e França continua em cima da mesa - Paris tem apresentado ao longo dos anos uma série de entraves.
“O meu receio é que haja uma quantidade enorme de maus investimentos que vão ter de ser justificados à posteriori”, diz Pedro Martins Barata.
Segundo o presidente executivo da Galp, não há por enquanto reservas ou fontes de GNL suficientes para substituir o gás russo. Para Andy Brown, “se houver uma interrupção de abastecimento da Rússia, isso virá a agravar o que já é uma má situação em termos de de preços do gás e da electricidade”, disse numa entrevista ao Público um dia antes da invasão da Ucrânia. Os fornecimentos de GNL de diferentes origens através de navios metaneiros têm crescido nos últimos anos, mas “a atual situação leva muito tempo para construir nova capacidade de GNL”, explica o executivo.
“Estamos numa altura muito crítica”, acrescenta Francisco Ferreira. “Que se rentabilize no imediato o porto de Sines para injectar na rede europeia gás natural faz sentido, porque realmente não se consegue mudar o perfil de consumo de uma série de consumidores que assentam no uso de gás natural.” No entanto, daí a “começar-se a construir infraestruturas que vão provavelmente ficar ociosas, e confiar em determinadas valências, como estes pipelines servirem para transportar 100% de hidrogénio verde, levanta muitas dúvidas”.
E reforça a ideia de que “a administração Biden rompeu com aquilo que era a visão do presidente Trump em relação ao uso de combustíveis fósseis, mas agora, à custa da guerra da Ucrânia, está a reativar a exploração de combustíveis fósseis, nomeadamente o gás natural”.
Para Pedro Martins Barata, especialista em políticas climáticas e coordenador do Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, Espanha já tem uma enorme capacidade para receber GNL, e por isso “não faz sentido” Portugal colocar-se numa posição competitiva só “porque estamos na ponta da Europa”. Segundo este economista, os países que neste momento precisam de GNL para baixar a sua dependência do gás russo são os países na outra ponta da Europa, como a Hungria, a Polónia ou a Alemanha.
“Esses países muito mais rapidamente vão munir-se de infra-estruturas como os terminais flutuantes de GNL no Mar Báltico”, explica ao Setenta e Quatro. “A ideia de que nos caiu do céu uma oportunidade do negócio dourado é uma falsa ideia, porque muito mais rapidamente essa capacidade de importação chega via Mar do Norte, via França, via outros países, do que a partir de Portugal e Espanha”. Pelo contrário, “a ligação elétrica, como aliás sempre foi a prioridade na diplomacia ibérica, essa sim, é cada vez mais interessante. Faz todo o sentido aumentar as linhas elétricas de alta tensão e fazer cruzar os Pirinéus”.
“Os Estados Unidos aproveitaram-se do ponto de vista estratégico”, refere ainda Martins Barata. “Têm internamente um excesso de gás de xisto, [explorado] por pequenas e médias empresas, que estavam no limiar da sobrevivência. Do ponto de vista norte-americano houve uma ideia de subsidiar a exportação. Há dez ou quinze anos era proibido exportar produtos energéticos, tal era a obsessão com a independência energética dos Estados Unidos.”
Nas últimas décadas, um dos principais focos da política externa tem sido o Médio Oriente. No entanto, e garantida a independência energética, Washington pôde deixar de privilegiar a região para se concentrar na Ásia Pacífico, numa tentativa de conter a China, por si considerado como o principal rival no sistema internacional.
Apesar do enorme investimento, o Nord Stream 2 pode transformar-se num ativo perdido, sem utilidade.
O excesso de capacidade de produção energética foi admitido pelo presidente norte-americano no início de março ao deixar claro que há nove mil licenças de exploração petrolíferas autorizadas, sem que os produtores as tenham ainda usado. “Nos Estados Unidos, 90% da produção de petróleo em solo acontece em terras que não são propriedade do governo federal. E dos 10% restantes que ocorrem em terras federais, a indústria petrolífera e de gás tem milhões de hectares arrendados”, disse Biden. “Eles têm 9000 licenças para perfurar. Podem fazê-lo agora, ontem, na semana passada, no ano passado. Têm 9000 para perfurar em terras que já estão aprovadas.”
Internamente, a mudança nos Estados Unidos está a ser radical, tendo em vista a independência energética da Europa. Só que o gás vindo deste país é muito mais caro que o da Rússia. Para Martins Barata, a política “vai esbarrar na economia”, porque há prioridades muito mais rápidas do que construir gasodutos que atravessam os Pirinéus.
“O meu receio é que haja uma quantidade enorme de maus investimentos que vão ter de ser justificados à posteriori”, diz, referindo-se ao que ainda é defendido pelos “adeptos do gás”. Estes afirmam “ser absolutamente necessário, e que se devia ter investido mais no gás natural como [combustível] de transição”. Com os preços atuais, reitera o especialista, “há muito mais perigo que todos esses investimentos venham a ser grandes elefantes brancos”.
É o que pode acontecer, por exemplo, com o Nord Stream 2. Apesar do enorme investimento, o economista acredita que se transforme num “ativo perdido, ou abandonado”. Ou seja, sem utilidade. “Se for provado com esta crise que se consegue diminuir em 30% o consumo de gás natural, é muito provável que se desista de comprar à Rússia o gás natural.”
Nos últimos anos, os EUA transformaram-se num grande fornecedor de gás obtido através de fracking, um processo de perfuração do solo. Com o aumento da procura (que é também do mercado asiático), as reservas atualmente exploradas naquele país serão mais exploradas. Com esta perspectiva, os investidores norte-americanos já estão a projetar novas áreas de exploração (consideram até perfurar no Ártico), construir novos gasodutos e criar mais infra-estruturas para enviar gás para a Europa através de navios metaneiros.
Um dos pontos mais críticos em território norte-americano é a região de Permiano, uma enorme bacia onde a exploração de petróleo e gás quadruplicou na última década. A instituição Center for International Environmental Law (CIEL) divulgou o ano passado um estudo no qual se avaliou o impacto ambiental e a consequência da extração intensiva.
Além das análises métricas, são vários os relatos da população que vive sob constante nevoeiro de poeiras e com pequenos sismos que tornam as casas inabitáveis. Do Novo México à Costa do Golfo, toda a região está em risco de se transformar numa bomba relógio vulnerável à poluição, à emissão de metano e a tremores de terra.
Apesar de todos os alertas, já há muitas vozes que se levantam a favor da Europa voltar ao fracking e aumentar a produção de energia nuclear.
O método conhecido como fracking já teve várias fases ao longo das últimas décadas. Não faltam exemplos de que as consequências assustaram as populações. O impacto destas perfurações é ambiental (com a ocorrência de poluição das águas subterrâneas, por exemplo), mas é também de segurança. Envolve o fraturamento hidráulico de rocha com água (onde várias toneladas são usadas), areia e uma mistura de componentes químicos que libertam o gás retido nas rochas. Pequenas explosões ocorrem nas profundezas e, não poucas vezes, a consequência foram sismos.
Na Europa, um dos casos mais graves aconteceu na Holanda, na região de Groningen, onde se encontra a maior reserva de gás natural deste continente. Desde que se iniciaram os processos de extração, em 1963 (com a Exxon Mobil e a Shell), já se sucederam mais de mil tremores de terra. Dezenas de casas tornaram-se habitações vulneráveis. A população revoltou-se e o governo recuou, mas desde a invasão da Ucrânia que o assunto voltou à mesa de decisões daquele país, apontando esta solução como uma das hipóteses de fornecimento de gás para a Europa. A data de suspensão total de fracking naquela região está sempre a ser adiada. O governo diz agora que será provavelmente em 2023, o ano passado dizia que seria em 2022.
Mesmo quando as extrações param, os tremores de terra podem continuar durante anos nas regiões onde ocorreram produções intensivas. Não é por acaso que foi banido em países como Reino Unido, Alemanha e França.
Apesar de todos os alertas, já há muitas vozes que se levantam a favor da Europa voltar ao fracking e aumentar a produção de energia nuclear, como é o caso do diretor do EPICENTER – Centro de Informações de Política Europeia, citado pelo Expresso em março. No parlamento britânico há quem defenda o regresso do fracking e a importação de mais gás vindo dos EUA. Na Alemanha, o ministro das Finanças também já fala em se reconsiderar a implementação de fracking e prevê a contratação de duas plataformas flutuantes para importação de GNL. É um gás que veio para ficar.
Caso se venha a posicionar o porto de Sines como o grande receptor de GNL, pode haver a necessidade de aumentar a sua capacidade de recepção de navios metaneiros, como a estrutura de armazenamento e de re-exportação. Seremos um dos pontos de ligação para o resto da Europa.
O terminal gerido pela REN será provavelmente ampliado. Por enquanto, não se sabe qual será o impacto ambiental desta obra - ainda mais quando Sines já é o concelho mais poluente do país -, nem quantos milhões serão necessários. Sabe-se apenas que está nos planos de quem aposta no gás natural como combustível de transição.
Por outro lado, numa Comissão Parlamentar no dia 12 de maio, o Ministro da Economia e do Mar, António Costa e Silva, levantou a possibilidade de exploração de petróleo e gás no Algarve e na Costa Vicentina. “Se o país tivesse avançado com esse projeto hoje estava a produzir gás e tinha um hub de exportação de gás", disse, citado pelo esquerda.net.
Costa e Silva referia-se à onda de contestação que impediu, entre 2015 e 2018, o avanço de 15 contratos de exploração offshore. Retomar esses projetos seria voltar atrás na Lei de Bases do Clima, que demorou meses até ser concluída pelo governo e que significou, ainda que sobretudo no papel, um avanço no processo de descarbonização.
Se anteriormente já era difícil acreditar que as metas de descarbonização seriam cumpridas, num cenário de guerra muito mais difícil se torna. Na próxima COP(27), que será em novembro no Egipto, os números serão o oposto do expectável. Fará sentido reunir dezenas de Estados para debater as reduções de emissões quando grande parte está a aumentá-las?
Mais do que tudo, o grande perigo pode vir da polarização dos blocos. A Rússia, a China, a Índia e a Indonésia ficariam de um lado do mundo, fora das negociações e sem limites para a produção e exportação de carvão, o mais poluente dos combustíveis fósseis. Do outro lado, países que apostam nas energias renováveis numa perspetiva de expansão e sempre aliadas a combustíveis fósseis, como é o caso do hidrogénio “verde”. Estados Unidos e Europa ficariam deste lado.
Mudar a estratégia de obtenção e distribuição de gás natural para a Europa, significa que, além das aprovações, é necessário um grande investimento para aumentar a capacidade de fazer transitar o GNL.
No contexto de guerra, a Rússia vai continuar a exportar para a Índia e para a China, e talvez não sofra quebras de receita tão grandes como inicialmente se pensou. Já a Europa verá os seus custos de importação aumentar com a subida dos preços do petróleo e do gás natural, principalmente do que vem dos EUA. Mas, sobretudo, substituirá uma dependência por outra.
A divisão do mundo em dois blocos antagónicos poderá dar origem no curto prazo a uma crise de segurança energética na Europa e a uma crise climática planetária a longo prazo. Mais minas de carvão, mais energia nuclear, mais extração de petróleo e de gás natural e mais fracking. Os dois blocos continuarão a ter justificações geoestratégicas para aprofundarem a produção de combustíveis fósseis.
Para Pedro Martins Barata, o caminho não será esse. “A melhor forma de dependermos menos de gás é simplesmente não ter de o consumir. Nem da Rússia, nem de qualquer outro sítio”. E há quem já esteja a fazer isso, como é o caso da Alemanha, que além de estar a desenvolver uma campanha de redução de consumo de gás, pretende acelerar a transição para a eletrificação. Não será imediata, até porque há quedas nas cadeias de produção e não existe disponibilidade de bombas de calor ou painéis fotovoltaicos, mas tudo indica que o mercado vai tornar-se competitivo também neste aspecto.
O Reino Unido está neste momento a fechar um acordo com Marrocos para estabelecer um cabo marítimo de alta tensão para a venda de energia obtida através do potencial fotovoltaico marroquino. Esse projecto poderia ser estabelecido com Portugal ou Espanha, como explica Martins Barata.
“Tirando a Grécia”, explica o economista, “somos aqueles que já têm entre a [energia] eólica e a solar uma capacidade tal que poderia facilmente ser exportada para os países do centro da Europa, assim houvesse essa ligação”.
As prioridades estão a mudar muito rapidamente, e a forma como a Europa vai usar e importar as suas fontes de energia será determinante. Tudo isto acontece quando sai a terceira parte do 6.º relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas. O documento alerta ser este o momento para se evitar o aumento da temperatura global acima dos 1,5ºC. Para isso, todos os Estados terão de estar concertados para diminuir as emissões de gases com efeito de estufa e a dependência de combustíveis fósseis.
Os últimos dados das Nações Unidas mostram que mesmo que haja um corte para metade das emissões, projeta-se um aumento de cerca de 15% até ao final da década. Se já estávamos a ir no sentido contrário, o atual contexto abre portas a mais exploração e transação de combustíveis fósseis, GNL incluído.