Frequentar espaços culturais e assistir a uma mediação, espetáculo ou exposição revela-se uma experiência cada vez mais diversa. Mas continua a haver desigualdades no acesso à Cultura quando se é uma pessoa com mobilidade reduzida, deficiência intelectual ou visual em Portugal.
O átrio do Cinema São Jorge estava em azáfama quando Boris Nepelo deixou claro que a Cultura é algo que nos une. O crítico e programador russo falava no Festival Internacional de Cinema DocLisboa, em Lisboa, e as suas palavras ressoaram o que já se tinha ouvido no MEXE, encontro internacional artístico: o crescimento das desigualdades limita as nossas liberdades de ação. Como pode a Cultura e os espaços em que a mesma reside ultrapassar esta barreira?
Os números que nos acompanharam nos últimos dez anos nunca se revelaram tão importantes. Em Portugal, há mais de 1 milhão e 700 mil pessoas com pelo menos uma incapacidade, de acordo com dados dos censos de 2011. Esta representatividade tende a ser um conceito determinante na sociedade portuguesa, onde os diversos sectores dão sintomas de desigualdade na acessibilidade.
A Cultura vive numa luta constante pelo conceito de liberdade. Hoje, são diversas as vozes do público e trabalhadores da Cultura que se fazem ouvir e que afirmam não existir condições totais de acessibilidade em grande parte dos espaços culturais. Acessibilidade que está, desde 2006, consagrada como direito na Constituição (artigo 163º) como “meio imprescindível para o exercício dos direitos que são conferidos a qualquer membro de uma sociedade democrática”.
A palavra acessibilidade já não era desconhecida em documentos universais desde 1948. Garantia-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 27.º) que “toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade”. No entanto, foi em 2005 que Tiago Fortuna sofreu a primeira “má experiência”.
Na adolescência começou a perceber que havia tratamento diferenciado entre pessoas com e sem deficiência. Foi diagnosticado com osteogénese imperfeita, também conhecida como a doença dos ossos de vidro. Confrontando-se com a atualidade, o aficionado pelas artes performativas e pela música reconhece que em pleno 2021 a lei de acessibilidade continua a não ser cumprida.
“Tinha 14 anos e decorria uma entrega de prémios internacional de música, em Lisboa. Lembro-me que queria muito ir, mas foi dito aos meus pais que não haveria lugares para mobilidade condicionada”, recordou. Foi a primeira vez que Tiago Fortuna se sentiu discriminado. O espaço não o aceitava.
Autor do podcast Nuclear trabalha em áreas de acessibilidade cultural e direitos de pessoas com deficiência. Em 2020, optou por deixar o campo da comunicação estratégica musical e ingressou num projeto de mentory para criar um plano de acessibilidade numa sala de espetáculos que durou o ano inteiro, juntamente com a associação Acesso Cultura.
Em 2021 criou dois projetos de acessibilidade para espaços culturais: um novamente com a Acesso Cultura, no qual aguarda resposta do financiamento europeu, e outro em desenvolvimento com a organização It's About Impact, denominado de Acess Lab.
É através deste último projeto que pretendem dialogar com entidades culturais, políticas e pessoas com deficiência. Desenhando este “triângulo”, todos contribuem para princípios fundamentais: estimular a participação na cultura tendo por base questões de bilheteiras asseguradas, conforto, acolhimento e um plano de capacitação para os profissionais da cultura.
A partir do momento em que começou a trabalhar no sector cultural, Tiago Fortuna sentiu que estava na hora de fazer as coisas de forma diferente: “quero muito mudar o nosso sector, mas quero fazer parte dessa mudança de forma construtiva e, para isso, precisamos de trabalhar ao lado dos profissionais da cultura”, reconhece.
Recordando algumas das suas experiências, refere que em Portugal existem muitos festivais, mais precisamente em Lisboa e no Porto, onde as pessoas são colocadas a uma distância “desumana”. Houve um festival a que deixou de ir porque não só ficava entre cinco a seis metros das últimas pessoas na plateia numa noite esgotada, como não conseguia focar os grandes ecrãs. “O que via mais próximo de mim eram homens a urinar em arbustos a noite inteira, no palco principal. Não é aceitável pagar um bilhete para entrar no festival e ser isto que me apresentam”, critica.
A reflexão a que se assiste sem que se esconda nos bastidores é a de que as estruturas não estão preparadas para acolher as pessoas no seu todo, seja enquanto público ou trabalhador. Aliás, Tiago Fortuna reconhece que se nos debruçarmos sobre a visão dos trabalhadores torna-se ainda mais “desesperante”.
É também sobre o olhar da cultura convite que a situação se revela preocupante. Em Portugal, o assistente pessoal ou acompanhante de uma pessoa com incapacidade precisa de comprar um bilhete individual. Ou seja, para que uma pessoa com deficiência possa assistir a um espetáculo, concerto, exposição entre muitas outras atividades culturais, não só precisa de comprar o seu bilhete como o do acompanhante.
É nesta medida que surge a questão: se a um cão guia não é cobrada a entrada porque é que, atualmente, é cobrada a mesma a um assistente pessoal ou a um acompanhante?
“Posso dizer que o meu assistente pessoal ou acompanhante é muitas vezes uma pessoa da minha confiança que, provavelmente, vai desfrutar do espetáculo, mas também vai carregar-me, levar-me à casa de banho, garantir que tenho segurança, conduzir-me porque não conduzo”, explica Tiago Fortuna. “Não vai ser a organização que vai fazer isso. E é uma tremenda injustiça pedires a uma pessoa com deficiência que pague 300 euros para um festival em vez de 150."
Há em Portugal mais de um milhão e 700 mil pessoas com pelo menos uma incapacidade, de acordo com dados dos censos de 2011.
Comparando com o Reino Unido, esta é uma das medidas implementadas desde 2010, através do The Equality Act 2010. Assim como nestes casos, Tiago Fortuna acredita que podemos criar um sistema de verificação e atribuir bilhetes que não obriguem as pessoas a comprarem dois bilhetes para assistirem a uma mediação ou atividade cultural, comprovando a sua veracidade.
Ainda assim, esta perspetiva não é suficiente. Segundo o comunicador, é também necessário ter uma oferta de espaços de mobilidade condicionada nas diferentes salas de espetáculos. “Não basta criar oportunidades de bilheteira”, acrescenta. A designação de uma zona para pessoas com incapacidades é essencial. Diversas salas já o têm, no entanto, o mesmo nem sempre se verifica nos espaços ao ar livre que, por sua vez, não fazem distinção nos bilhetes em específico.
Tendo em conta que se cria uma lotação, quando um evento começa sabe-se quantas pessoas é que se esperam, não havendo uma plataforma de mobilidade condicionada com um limite de pessoas, a organização tende a retirar os acompanhantes. Coloca-os atrás ou na plateia, o que vai contra a lei de acessibilidade.
Num festival de música, depois de tirarem os acompanhantes, Tiago Fortuna tentou abordar um voluntário sobre a situação para lhe explicar a injustiça. A resposta que recebeu foi “que tinha sorte por ter ali aquele espaço para mim, como se fosse um favor que me estava a fazer”. E admite que estas palavras não foram ditas há muito tempo. “Se eu comprei um bilhete que vale cerca de 100 euros e que é igual ao das outras pessoas, tenho direito a ter o mesmo conforto e a mesma segurança que elas”, acrescenta.
A cultura é pouco valorizada economicamente para aquilo que é capaz de gerar socialmente e intelectualmente? Tiago Fortuna responde que sim. Nestes casos, as pessoas com deficiência “sofrem da mesma forma que o tecido cultural sofre”. No caso do sector cultural, “como ele por si só já é frágil, as pessoas com deficiência também são mais fragilizadas, porque já partem atrás nesta corrida”.
No caso das lotações de sala, há uma capacidade fixada pela Inspeção Geral das Atividades Culturais (IGAC) que reserva a pessoas com deficiência lugares adequados às suas necessidades, o que não se verifica em grande número de salas portuguesas.
“Se estivesse de acordo com a lei, tínhamos pessoas suficientes para esses lugares? Talvez não, mas elas não vão porque há um trabalho de base que não é feito. Se não são bem acolhidas, não voltam ou nem chegam a sair de casa”, explica-nos Tiago Fortuna.
As estruturas que identifica não se incluem na escassa franja que agrega o Teatro Nacional D. Maria II, Teatro São Luiz, Teatro do Bairro Alto (TBA), o LU.CA, o Boom e o Bons Sons. O grosso tecido cultural, sobretudo localizado no sector privado, não está a acolher as pessoas com deficiência. Acredita que querem fazer melhor, “mas isso só acontecerá trabalhando diretamente com os mesmos, mudando paradigmas e mentalidades”.
Conscientes da desigualdade de direitos entre pessoas com e sem deficiência, muitas são as instituições e espaços culturais que começam a caminhar rumo à acessibilidade. Nota-se um aprofundar da reflexão sobre o assunto. A Acesso Cultura é uma das associações que se destaca no campo da promoção do acesso físico, social e intelectual, em todo o sector cultural.
Fundada em 2013, é composta maioritariamente por pessoas que trabalham no sector e em entidades culturais, como teatros, companhias de dança, entre outros. A Acesso Cultura publicou há cerca de um ano o manual A participação cultural de pessoas com deficiência ou incapacidade: Como criar um plano de acessibilidade com o objetivo de partilhar orientações e regras gerais que dizem respeito a qualquer tipo de espaço cultural (teatros, salas de concertos, cinemas, museus, galerias, bibliotecas, arquivos).
Em conversa com o Setenta e Quatro, Maria Vlachou, membro fundador e diretora da Acesso Cultura, afirma que nos últimos oito anos sente que a questão do acesso está muito mais presente no pensamento do sector. Ainda assim, esta evolução mostra também algumas reticências.
“A estratégia do país tem sido institucionalizar as pessoas ao invés de trabalhar para a empregabilidade com as empresas e, quando trabalha, são coisas muito esporádicas”, disse Marco Paiva, ator e encenador
“Aquilo que a mim me preocupa é que apesar de agora termos mais conhecimento sobre estas matérias, a verdade é que não atuamos muitas vezes sobre elas. Parece ser uma opção. Existe uma mentalidade de que estamos a fazer um favor às pessoas. Isto, sim, é preocupante”, completa. É ao perpetuar a questão da desigualdade e da exclusão que todos os esforços caem por terra. E o mesmo se identifica em zonas descentralizadas.
Em 2019, de acordo com o PORDATA, registavam-se cerca de 388 recintos culturais dedicados ao espetáculo ao vivo. Porém, não foi possível identificar os locais que cumpriam todas as regras da lei da acessibilidade.
No que toca aos museus e outros monumentos, a publicação Guia Prático – Os Direitos das Pessoas com Deficiência em Portugal, também do mesmo ano, revela que as regiões entre Bragança e Lisboa, que detêm cerca de quinze museus de domínio público, tinham visitas acessíveis a pessoas cegas e surdas, sendo que apenas sete desse total reuniam publicações em Braille – dois audiolivros, três audioguias e um videoguias em língua gestual.
Mais recente é a Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, definida em novembro de 2020 pelo Instituto Nacional para a Reabilitação. No que toca ao sector cultural, o objetivo geral define-se com o intuito de “promover o acesso à cultura e a programas culturais inclusivos”.
Analisando a estratégia com mais detalhe, é possível observar que os objetivos que se seguem na sua aplicação reúnem na sua maioria metas para 2024. Entre estas incluem-se a promoção de programas culturais inclusivos, a criação de normas técnicas que visem permitir o acesso autónomo das pessoas com deficiência ou com incapacidade aos conteúdos televisivos e de cinema, que conta com diploma já publicado.
Questionados sobre a estratégia, os entrevistados chegaram a uma conclusão praticamente unânime: dentro deste plano, a maior preocupação não é o período que pode levar a que estas metas sejam concluídas, mas o facto de não ser uma estratégia e apenas algumas medidas concretas e específicas cuja contribuição não está bem definida.
Vlachou salienta que “isto é mais preocupante, até porque o documento esteve em consulta pública e nós reforçamos que era necessário pensar na capacitação das pessoas que trabalham no sector. Primeiro têm de reconhecer qual é o problema e quais são as questões que se colocam aqui”.
No que toca ao período de tempo a alcançar, Marco Paiva, ator e encenador, refere ao Setenta e Quatro que esta estratégia também se traduz no facto de a maior parte das pessoas, muitas das quais com deficiências intelectuais, estarem institucionalizadas. Não tendo resposta no mercado de trabalho, não têm autonomia e dependem das instituições para fazer quase o seu dia-a-dia, o que se traduz no desconhecimento social das características e capacidades destas pessoas, porque elas existem dentro da sociedade.
O artista reconhece que esta situação acontece porque “a estratégia do país tem sido institucionalizar as pessoas ao invés de trabalhar para a empregabilidade com as empresas e, quando trabalha, são coisas muito esporádicas, muito à flor da pele onde não há um diálogo profundo com o tecido empresarial ou com o mercado de trabalho para os ajudar”.
Há espaços em algumas zonas do país que tendem a debruçar-se sobre esta questão em termos de equipamento. O avanço é nítido. O Teatro do Bairro Alto (TBA), assim como o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia - MAAT refletem alguns desses sintomas.
Passam dos formatos já disponíveis ao desejo de promover sessões de teatro descontraídas que se intitulam de sessões de teatro, dança, cinema ou outro tipo de oferta cultural. Decorrem numa atmosfera mais descontraída e acolhedora, com regras mais tolerantes no que diz respeito ao movimento e ao barulho na sala.
No caso do TBA, Maria Ana Freitas, adjunta da direção executiva, explica que a ideia é tentar incluir, cada vez mais, quem tiver vontade de os receber como equipamento cultural. “Já tínhamos algumas preocupações com a possibilidade de criar uma estrutura nova, apesar de o edifício não ser novo. A renovação permitiu-nos pensar nesta premissa, enquanto parte física do espaço”, explica, referindo que tornar o teatro um espaço mais inclusivo é uma premissa que parte desde a altura do Teatro Maria Matos
O teatro reúne vários tipos de acessibilidade e de inclusão. Alguns dos exemplos são as casas de banho sem género, a acessibilidade ao público com mobilidade condicionada (há um elevador e acessos à sala principal e uma plataforma elevatória), a bilheteira situar-se no piso 0, ao mesmo nível da porta principal. E, por fim, a existência de uma sinalética podotáctil da entrada até à bilheteira e na escadaria principal.
No que toca à programação, tem frequentemente sessões com audiodescrição, interpretação em Língua Gestual Portuguesa e disponibiliza ainda duas brochuras impressas em braille com toda a informação do programa.
Sobre as sessões descontraídas, também uma prioridade do TBA, “ainda não as estamos a fazer, mas queremos muito que aconteça. Creio que é um bocadinho mais difícil de preparar essa oferta do que a interpretação em Língua Gestual, parece algo que já está mais claro”, salienta Maria Ana Freitas.
A adjunta da direção executiva afirma que, apesar de não haver muitos fornecedores na Interpretação de Língua Gestual, ainda há uma oferta consideravelmente assídua para teatros com mais oferta e público, algo que o TBA ainda se encontra a enriquecer.
“Esse é o problema. Nós disponibilizamos a oferta o máximo que conseguimos, mas sendo realista, com o orçamento que dispomos não é possível. Claro que tentamos diversificar, mas não conseguimos oferecer a todos”, afirma.
O TBA foi fundado há dois anos e ainda vive um processo de crescimento, degrau a degrau, o que também o distingue aos olhos de quem ‘consome’ teatro experimental e outras perspetivas culturais. O MAAT, um edifício contemporâneo, e a Central Tejo, um espaço histórico, percorrem um caminho conjunto no combate às desigualdades na acessibilidade.
No caso do MAAT, resultante de um projeto público, mas financiado por uma instituição privada, as condições arquitetónicas do espaço já tinham como base a questão de um equipamento cultural mais acessível. Já a Central Tejo foi-se adaptando de acordo com as suas valências, preservando o património já existente. As plataformas elevatórias permitem às pessoas deslocarem-se: podem fazê-lo de forma autónoma ou com a ajuda do assistente de sala, respeitando todas as medidas impostas na lei da acessibilidade.
No MAAT, os desenhos do espaço de exposição tentam corresponder e estar disponíveis a todos os públicos, e têm por base as recomendações de design apresentadas atualmente. Joana Simões Henriques, membro do Serviço Educativo e Programas Públicos do museu, explica que “uma característica bastante importante para trabalhar com alguns públicos com mobilidade reduzida foi a construção da ponte pedonal que dá acesso à Rua da Junqueira, por cima do edifício”.
A linha de comboio foi sempre um fator impeditivo de acesso, por mais que outros transportes públicos se deslocassem até às proximidades do museu, mas o que Simões Henriques salienta é que esta é mais uma premissa de proximidade e inclusão para com os públicos a que se dirigem. Ultrapassam-se, assim, barreiras de arquitetura que se vão anunciando.
No que toca à programação, Simões Henriques assume ser um trabalho em progresso constante. “Este é um tema que muitas vezes tem que ser a própria instituição a refletir. Ainda é um número de público muito reduzido”, analisa. “Existe também uma grande pressão das instituições, ou seja, porque é que estamos a gastar parte do orçamento para um público que nem sempre vem? Isto porque é preciso investir em modelagem 3D, em Intérprete de Língua Gestual Portuguesa para visitas e tudo isso implica dobrar o orçamento”, justifica
O desafio de trabalhar com exposições maioritariamente temporárias permite criar um espaço de pensamento e melhoria no que toca à oferta formativa e cultural, ainda que distante em algumas das realidades. Uma das características que distingue o MAAT de outros museus, em conjunto com o da Central, é o projeto online Maat Extended ao apresentar um conteúdo editorial diverso: tem diálogos, sessões tácteis, conversas e outras iniciativas que de alguma forma contribuem para a inclusão.
De norte a sul do país, o número de salas de Cinema que integram os espaços culturais portugueses, de carácter privado ou público, realçam-se na atividade do sector. O Setenta e Quatro entrou em contacto via e-mail e telefone com diversas salas de cinema, como o Cinemas NOS, do qual não obteve resposta, e a UCI Cinemas, que mencionou não ser possível responder ao solicitado de momento.
Já a equipa dos Cinema City apresentou outra posição. Questionados sobre a logística das salas e formatos, reconhecem que todas as salas Cinema City estão preparadas para receber público com incapacidade motora. Existem lugares reservados para cadeiras de rodas nas salas de cinema, casas de banho específicas e acessos facilitados a estas áreas.
“Pontualmente, recebemos marcações de grupos de clientes com incapacidades motoras. Conseguimos fazer uma preparação prévia da sala de cinema, alargando o número de lugares para cadeiras de rodas. Disponibilizamos também staff para dar apoio a estes clientes e assim ajudar à promoção do convívio entre eles”, explicam.
Ainda assim, as adaptações nos diferentes formatos de tradução não acontecem com tanta regularidade. Em 2017, o filme Uma vontade Cega, de Marc Rothemund, foi apresentado no Cinema City do Campo Pequeno. Teve uma versão inclusiva tradaptada, ou seja, traduzida em Língua Gestual e com audiodescrição. Foi uma realidade que aconteceu também em outros cinemas do alcance privado.
O espaço não voltou a fazê-lo desde então em exibições comerciais, ainda que tenha registado mais duas experiências no âmbito de Festivais e antestreias. Porque não o fizeram mais? “Essencialmente porque não existe este tipo de oferta no mercado – os distribuidores não têm filmes preparados com estas características. Acreditamos que é porque estas sessões são para nichos e é muito difícil ter clientes em número suficiente para suportar os custos”, justificou por e-mail o Cinema City.
Além dos locais de exibição, a organização reforça que seria difícil manter estes filmes em cartaz. É que exibir estas versões implica fazê-lo como versões extra, ou seja, é necessário ter uma cópia convencional para o público geral e outra adaptada. “Considerando que as salas de cinemas são limitadas, é muito difícil manter em exibição comercial um filme que não terá procura suficiente para se pagar”, acrescentam.
Sobre o contexto de inclusão no Cinema, a empresa considera que “é bastante inclusivo, não só pela acessibilidade para pessoas com deficiências motoras, que referimos atrás, mas também pela diversidade da própria oferta”.
“Não gosto de cemitérios de palavras.” Foi Marco Paiva quem o disse do outro lado do ecrã, enquanto conversava connosco por videochamada. O ator e encenador que em 2018 fundou Terra Amarela, plataforma que desenvolve o seu trabalho em torno da cultura acessível e práticas artísticas, tem mostrado um trabalho assíduo no campo da inclusão, da diversidade e da liberdade.
Um exemplo perfeito desse trabalho é a peça de teatro Calígula morreu. Eu não. Eu não é o exemplo perfeito. É encenada pelo artista, decorreu além-fronteiras e contou com a participação de diversos artistas com e sem qualquer tipo de deficiência, provenientes de linguagens e identidades distintas.
Inclusão não é sinónimo de igualdade. Estas palavras (ou termos) percorrem o mundo e tendem a confundir-se mutuamente. Marco Paiva traz à conversa um sinónimo que está mais perto de inclusão do que igualdade. “Inclusão é um exercício de troca. Estamos constantemente a incluir e a ser incluídos.”
Apesar de reconhecer que a palavra não se associa a um conceito paternalista de superioridade, o que não acontece em outras leituras, o encenador acredita que as palavras não devem morrer. E, por isso, lê-las sem preconceito é também um caminho de inclusão.
É de equidade que se fala quando se reflete a evolução. O Teatrão, em Coimbra, é outro exemplo disso. “Tivemos agora uma experiência muito boa com o Teatrão em Coimbra, que graças a um financiamento da Direção-Geral das Artes e da Acesso Cultura, permitiu ao teatro adquirir uma cabine de audiodescrição”, refere Marco Paiva. Assinalou-se, assim, a estreia de uma sessão em audiodescrição no teatro.
Além de proporcionar aos públicos e aos diversos artistas o contacto com as artes, desafiar as linguagens artísticas e repensar outros caminhos para existirem, pode ser também um passo distante da acessibilidade?
Adotar aqueles que seriam só serviços como mecanismos próprios das estruturas cenográficas pode ser uma das respostas. Na peça Calígula morreu. Eu não, o encenador identifica-o a partir dos painéis de legendagem que faziam parte da cenografia dando-lhes uma identidade própria.
“Olá. Eu sou a Renata, tenho 23 anos, cabelo curto e estou vestida com umas calças rosa e uma camisa branca, mas a minha personagem vestirá ainda uma saia preta, camisa e um lenço vermelho, que estará na zona do pescoço.” A intérprete interrompe. “Passamos agora para o lado direito da sala”. Os atores continuam a descrever a sua aparência. Foi assim que se iniciou o reconhecimento do palco e do elenco da peça Juventude Inquieta, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, no passado dia 31 de outubro.
Cerca de 45 minutos antes de o espetáculo começar e a Sala Garrett abrir portas, os espectadores cegos ou com baixa visão caminhavam em direção aos seus lugares, lado a lado com os seus acompanhantes. A eles também se juntavam pessoas com mobilidade reduzida. A distribuição dos equipamentos de audiodescrição começou pouco depois.
Do outro lado estava uma voz que descrevia cada detalhe da sala, do Teatro e das pessoas que a ela chegavam posteriormente. A descrição do cenário também se fez acompanhar. O espetáculo começou quando do lado esquerdo uma voz disse “este áudio vem de si? Coloque mais baixo, por favor, se não vou ter que mudar de lugar". O equipamento assinalava um valor de 210 no volume, no qual o mínimo era 200.
O Setenta e Quatro acompanhou a sessão de audiodescrição e todo o procedimento desde o primeiro momento. É esta a mudança de paradigma que tanto mencionam? Marco Paiva respondeu que sim, “tem que existir uma mudança de paradigma do próprio entendimento do que é o espaço de fruição cultural”.
É certo que o Teatro Nacional D. Maria II apresenta todas as condições para receber o público na sua diversidade. No entanto, “a incoerência social é a base primordial a ser questionada”.
Um dia após o espetáculo ouve-se Diogo Rodrigues do outro lado da chamada. O jovem licenciado em Jornalismo conversou connosco a partir de Gondomar. É um amante da socialização e da Cultura, a qual vê através de texturas e sons. “O acesso à Cultura é-nos vedado de uma forma ou de outra, nomeadamente, a pessoas com este tipo de patologias.”
Uma das experiências que ainda guarda na memória tinha como pano de fundo o Museu de Serralves. “Na altura, fui ver uma exposição e, a senhora de sala, ao mostrar-me as obras parecia que o estava a fazer como se eu fosse uma criança. Isso deixou-me muito desconfortável”, recorda.
Desde o início da pandemia que Diogo Rodrigues não voltou a frequentar espaços culturais. Pouco antes da mesma se declarar, o Teatro Nacional de São João desmarcou uma sessão de audiodescrição sem o avisar. O Museu de Imprensa, no Porto, também não foi exceção. O local que o jovem tanto gosta de frequentar não está preparado para o receber.
“Gosto muito de lá ir, mas tenho de ir sempre com os meus pais, senão não me deixam tocar nos objetos das exposições nem me explicam as maquetes, isto porque o Museu, além da exposição permanente, também tem exposições temporárias.” Diogo Paiva admite que ou se tenta perceber tudo pela raiz, ou a determinada altura o ideal é ir embora.
O jovem refere ainda que, por vezes, a audiodescrição cria uma confusão nos espaços. “Chega uma certa altura em que ou estás atento à descrição ou às falas ditas em palco. Acho que na possibilidade de melhor, era criar uma aplicação, mesmo que fosse preciso um dispositivo, que nos facilitasse, até mesmo na audição.”
Os conteúdos televisivos, assim como o streaming, estão a caminho de adotar a audiodescrição, tal como a língua gestual, ainda que seja mais distante do que o público desejaria. O jovem formado em Jornalismo partilha que a RTP já reúne alguns conteúdos com audiodescrição. Já a plataforma Netflix em Portugal também, mas apenas o faz em língua inglesa.
Os diferentes testemunhos reconhecem que a pandemia obrigou o sector cultura a adotar o digital a tempo inteiro, o que permitiu um maior desenvolvimento na linguagem. Mas a crise pandémica veio trazer também ao de cima questões de precaridade, além de se terem erguido barreiras muito difíceis de derrubar. A conclusão é unânime: é altura de olhar para os públicos e artistas com diferentes necessidades e refletir quem está presente neste “todo(s)” que tantas vezes se faz ouvir nas palavras da democratização cultural.
Foram cerca de sete vozes de uma história em processo de construção que escreveram e alinhavaram um sector ainda longe de se eternizar como totalmente acessível. É de equidade e empatia que se continua a alimentar. Quanto ao conforto e à confiança, são palcos que aguardam ser pisados.