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Watergate, 50 anos depois

O jornalista de investigação – e este caso, até nisso, é um excelente exemplo de estudo - tem, de facto, uma personalidade específica, que o impele, sempre que fareja história, a continuar.

Crónica 74
13 Julho 2022

A literatura descreve-nos um caso de sonho jornalístico. A esse sonho muitas gerações de futuros jornalistas se atrelaram. Quando queremos valorizar o jornalismo e explicar aos mais céticos para que serve a profissão, de imediato nos lembramos da enorme epopeia da dupla Bob Woodward e Carl Bernstein.

Não podiam ter personalidades mais avessas. Na redação do Washington Post, Bob era o certinho, disciplinado, cumpridor; Carl o desalinhado, boémio, desregrado. Um e outro, todavia, completaram-se na diferença e conseguiram, alinhados,  investigar o assalto ao edifício Watergate, a sede do Partido Democrata; partido que o Republicado Richard Nixon pela segunda vez derrotou.

A história é de todos nós conhecida. Vimo-la em filme, lemo-la em livros, ouvimo-la contar na escola e na redação.

Há, todavia, uma parte da história menos famosa que tem servido de alimento a algumas das minhas aulas de jornalismo. E é por aí que agora também vou.

A 17 de junho de 1972, depois de se saber que um conjunto de indivíduos tinha assaltado a sede do Partido Democrata em plena campanha eleitoral, o editor de turno do Washington Post mandou para o local o repórter especializado em polícias, Eugene Bachinski. Bachinski usou a influência junto da polícia para chegar às provas obtidas no local do assalto, entre elas duas agendas pessoais, onde despontavam as iniciais HH e um número de telefone da Casa Branca. O repórter especializado em polícias rapidamente percebeu que o assalto tinha o dedo da Casa Branca. Alguns dos operacionais envolvidos seriam - e  isso tornou-se verdade absoluta na  cabeça de Bachinski – polícias, as fontes principais do repórter especializado.

Na noite a seguir ao assalto, já com as provas todas recolhidas e analisadas, Eugene Bachinski encontrou-se com Bob Woodward. Woodward sabia que o camarada de ofício tinha sido dos primeiros a chegar ao local depois do ato e perguntou-lhe o que sabia do caso. A resposta de Bachinski foi absolutamente clara – “sei tudo” - e mostrou as provas a Woodward.

Esta história é-nos relatada ao detalhe por Alicia Shepard, no livro Woodward and Bernstein, life in the shadow of Watergate, que a autora publicou em 2007. Shepard conclui o episódio com a tal frase que alimenta as minhas aulas: “Se tivesse sido mais ambicioso, Bachinski poderia ter usado o seu conhecimento e assumido um papel mais relevante no caso... Como qualquer repórter calejado, se pudesse escrever alguma coisa simpática para as suas fontes e que não o comprometesse, Bachinski escreveria”.

Uma frase simples que abre o fosso entre o repórter que escreve para encantar as fontes, como se essa escrita encantatória fosse pagamento pela informação fornecida, e o repórter descomprometido, que não cede, nem faz favores. O jornalista de investigação – e este caso, até nisso, é um excelente exemplo de estudo - tem, de facto, uma personalidade específica, que o impele, sempre que fareja história, a continuar.

Bob Woodward e Carl Bernstein publicaram um primeiro artigo com a informação recolhida por Bachinski. E depois disso escavaram, até à demissão do Presidente. Não cederam a pressões, nem a ameaças, muitas vezes acreditaram em quem não deviam, chegando a publicar informações falsas, mas a tudo resistiram. Também por isso, pela resistência, este é o exemplo que tão apaixonadamente nos concilia com o jornalismo.

Mas não só por isso.

Digamos que a cadeia hierárquica foi determinante para que estes dois homens nunca vacilassem. Ben Bradlee, o editor do Post que supervisionou a investigação, amparando, discutindo (bastante), forçando a revisão da prova… E Katharine Graham, a administradora executiva, que nunca cedeu aos apelos da Casa Branca, vociferados pelo próprio Presidente, para que a investigação parasse.       

Antes de Watergate, o Washington Post era um jornal de Washington. Depois de Watergate entrou diretamente na lista dos grandes jornais nacionais, tornando-se incontornável.

Até por isso, pelo impacto das grandes histórias, talvez mereça a pena não ceder, confiar e publicar. Bem sei que há um oceano de distância a separar-nos desse sonho.

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