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Viver numa tenda até pode ser divertido

Talvez seja aborrecido que tantos jovens adultos, independentemente de terem o ensino secundário ou um doutoramento, tenham de pegar nos seus filhos e ir viver para a casa dos pais. 

Crónica 74
12 Janeiro 2023

Acompanho com deleite os regulares artigos que transmitem boas energias e pensamento positivo, seja qual for o assunto. Aqueles artigos mesmo “boa vibe”, sabem? Por exemplo, o facto a relatar é a inflação dos preços dos bens alimentares, e o artigo roça isso por alto, mas foca-se nos benefícios do jejum intermitente (mesmo que forçado). Ou o facto é o aquecimento global, e o artigo destaca uma seleção de praias para onde ir aproveitar os dias de calor extremo antes de morrer desidratado. Ou, como naquele que li não faz muito tempo, em que o facto era os jovens adultos não terem dinheiro para pagar uma renda sozinhos, e o artigo elogiava grandemente o apetite destes mesmos jovens em viver em comunidades de 10 ou 12 num t2.

Por isso, é mesmo com um robusto agrado que vou lendo todo este sortido de opiniões por versarem uma visão tão optimista da sociedade.

Claro que quem os escreve não faz ideia do que é passar fome para além do “estar com um ratinho” entre o lanche e o jantar, nem nenhuma vez na vida, - nem sequer a viajar pelo sudoeste asiático -, dormiu numa camarata de hostel para saber como é. Mas não podem ser estas minudências da experiência de vida do autor que o podem impedir de espalhar (às vezes parece impingir, mas não é, porque é tudo bem intencionado) este optimismo tão neoliberal.

Daí que queira também entrar nesta onda das “boas vibes” porque se olharmos para as tragédias de forma trágica, e para as catástrofes de forma catastrófica, não vamos a lado nenhum. Por isso, em relação ao que muitos estão histericamente a chamar de profunda e dramática crise na habitação, gostava que conseguissem também ver o seu lado bom.

Reparem, há cada vez menos casas para pessoas que não são ricas, seja para arrendar ou comprar, e isto pode provocar um pouco de revolta. Mas se soubermos que 20 casas, no centro de Lisboa ou do Porto, foram compradas por um americano que ficou milionário com uma start-up de sapatos feitos com penugem de cu de andorinha, isso não nos deixa felizes por sabermos que até é um animal tão estimado no nosso país? Creio que sim.

É esta a postura que têm tido governantes como António Costa e Carlos Moedas, bem como de todos os partidos à direita que são contra o fim dos vistos gold, contra tectos máximos das rendas e a favor de todos os benefícios fiscais para nómadas digitais ou fundos de investimento imobiliário.

O pensamento é: talvez seja aborrecido que tantos jovens adultos, independentemente de terem o ensino secundário ou um doutoramento, tenham de pegar nos seus filhos e ir viver para a casa dos pais. Mas a parte boa é que, não só podem ver os tik toks que os nómadas digitais fazem a mostrar como 4000€/mês até chegam razoavelmente para viver em Portugal, como de vez em quando podem cometer a loucura de pagar 3€ (ida e volta, se já tiverem Navegante), e irem à Baixa, à Graça, Príncipe Real, Arroios, Alvalade, bem, a quase toda a Lisboa, ver a sua felicidade ao vivo.

E que raio de portugueses seríamos nós, se não ficássemos orgulhosos da felicidade deles?Quem diz deles, diz de americanos, franceses, chineses ou até mesmo portugueses que precisam de comprar várias casas, onde nunca vão habitar, para poderem investir seguramente os seus milhõezitos.

Com isto, é normal que cada vez mais de nós, portugueses e estrangeiros não ricos a viver em Portugal, tenhamos que fazer alguns sacrifícios. Mas, lá está, se olharmos para as coisas com otimismo fica tudo mais bonito e mais fácil.

Vai-se a ver, e viver numa tenda debaixo da ponte até é bem divertido.

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