Índice

A violência pode ser justificada?

A maioria das pessoas é a favor da ação climática e de reduzir a poluição. O que se faz quando um governo eleito promete, não cumpre e é eleito outra vez? É chato o ministro levar com tinta, mas quem lavar a sua roupa sobreviverá. Estes ativistas corajosos são acusados de radicais e extremistas, mas são os mais racionais e moderados neste debate.

Crónica 74
5 Outubro 2023

Cada vez que há um caso de protestos, manifestações ou “confrontos” com a polícia, surge sempre o debate sobre o que é violência e se ela é justificada.

Violência terá muitas definições. O exemplo mais óbvio seria uma agressão física, aí dificilmente terão dúvidas. Mas podemos falar de discurso violento, de violência psicológica, ambiental. Claramente a violência não se cinge a sopapos e bombas.

Quando um jornalista iraquiano, Muntadhar al-Zaidi, atirou um sapato a George W. Bush podemos dizer que foi uma tentativa de violência. Quando George W. Bush e os seus antecessores destruíram a infraestrutura do Iraque e mataram mais de um milhão de iraquianos certamente foi violência. Quando em 1963 os Estados Unidos e o Reino Unido instalaram e armaram o ditador Saddam Hussein porque a democracia iraquiana se tinha tornado inconveniente aos interesses económicos americanos e britânicos foi violência de uma escala incomparavelmente maior. O sapato é que choca?

Quando activistas da Greve Climática Estudantil atiraram tinta verde ao ministro do Ambiente (e da acção climática), Duarte Cordeiro, numa conferência paga pela EDP e GALP (duas das maiores poluidoras em Portugal) houve várias reações interessantes.

Comecemos pelas falácias. Houve muitas bolas de neve (“foi tinta, mas a tinta podia ter entrado pelo olho e cegado o ministro” ou “e se fosse uma arma?”). Quando é preciso recorrer a um exagero, é porque de facto o acto original não choca muito. Levar com tinta é chato, mas quem lavar a roupa do ministro viverá. Não é um tiro. Duarte Cordeiro não é Shinzo Abe.

Depois as falsas equivalências. Como com a Kayla Brasil - que, se prova alguma coisa, é que só quando se recorre ao protesto é que os sem voz são ouvidos. Meses de contactos pacíficos e só depois do protesto é que substituíram um actor por  uma atriz trans. 

Também compararam com os proto-fachos imberbes que tentaram interromper o lançamento de um livro infantil inclusivo e que acabaram por o promover (podem encontrá-lo online).

Como é óbvio, a brigada do costume da liberdade de expressão, que tanto rasga as vestes pelos cancelamentos e tentativas de silenciamento, não se pronunciou sobre este caso.

Este exemplo irritou-me particularmente porque não há nenhuma equivalência entre os casos. Só na cabeça do centrista confortável, mais amante da ordem que da justiça, é que lutar pela sobrevivência de um planeta habitável tem equivalência moral a lutar pela repressão de pessoas LGBTQ+.

Por essa lógica não se podia fazer o 25 de Abril porque era contra a lei revoltarem-se contra a ditadura. E sei que à direita há quem ainda hoje se revolte com o 25 de Abril.

Ah, mas, argumentará o sagaz leitor, que nessa altura não havia democracia. E agora há. Portanto, há outras maneiras - através de votos e petições e manifestações pacíficas - de conseguir o que a maioria das pessoas quer.

E acredito que a maioria das pessoas é a favor da ação climática e de reduzir a poluição. Então o que se faz quando um governo eleito promete, não cumpre e é eleito outra vez? Vota-se no principal partido da oposição que é ainda mais tímido senão contra as medidas pedidas pelos ambientalistas? Vota-se nos outros partidos que prometem essas medidas mas dificilmente ganharão eleições? Certamente válido (é o que eu faço). E a democracia acaba aí? Quando temos já tão pouco tempo para evitar o pior?

Estes activistas corajosos - que fazem bem mais do que eu e muitos dos que me lêem - são acusados de radicais e extremistas. Acho que são os mais racionais e moderados neste debate.

Radical é manter os fósseis e o gás que nos mantêm dependentes de ditaduras, o carro que entope as cidades e os pulmões, a indústria papeleira, o desperdício de toneladas de plástico descartável e sobreprodução de lixo que nunca será reciclado e acabará a encher um qualquer aterro ou oceano.

Racional é lutar contra à emergência climática com tudo o que temos. É Racional  perante os fenómenos climáticos extremos cada vez mais frequentes, desde incêndios a cheias, à perda massiva de vida animal, espécies que se extinguem todos os dias, à perda de terra arável, à acidificação dos oceanos exigir mais e melhor, dos governantes, das empresas, de todos nós.

Não é coincidência serem jovens. Muitos adultos já confortáveis na vida convencem-se que já se está a fazer imenso, que podemos confiar na GALP e EDP, que a crise climática é uma fraude, que quem polui mais é que é mais verde, que os outros países poluem mais, qualquer mentira confortável para que a sua vida não seja afectada e poderem fingir que não lhes toca. Mas vai tocar nos seus filhos. E são esses filhos que lutam para que os seus filhos tenham um planeta  onde viver.

Se a humanidade lá chegar, olhará com a mesma vergonha os que, face a uma catástrofe, criticaram quem a tentou evitar como olhou para os “moderados” que sendo contra a escravatura não a podiam abolir, os “moderados” que achavam que a mulher ainda não podia ser confiada com o voto. Se há coisa que a história nos ensina é que tanto os escravos como as mulheres conseguiram a liberdade e o voto também com violência política.

O PS faria bem em engolir o orgulho e mostrar trabalho, mostrar que está tão empenhado no clima como a fazer brilharetes no défice. Nem que seja porque o clima afeta o adorado turismo.

Não quero menorizar os progressos feitos pelos últimos governos. Com uma ajuda da pandemia e do aumento do custo de vida, as emissões têm de facto reduzido. Fecharam-se centrais a carvão, aumentou-se o investimento na ferrovia (embora depois se tenha reduzido outra vez). Mas estamos perto dos objectivos a que nos comprometemos para 2030? Estamos a caminho de reduzir as nossas emissões em 50% ou para net zero? Para 2030 e não empurrando com a barriga para 2050 quando será tarde demais?

A partidos de centro-esquerda como o PS irrita-lhes muito o activismo e os partidos à sua esquerda. É fácil fazer boa figura face ao negacionismo climático dos partidos à sua direita como a IL ou CH. Mas rapidamente reproduzem os argumentos da direita quando confrontados por activistas climáticos ou partidos de esquerda.

O fundo ambiental é excessivamente burocrático e privilegia quem tem dinheiro para adiantar ao Estado. Pouco se fez para reduzir o consumo de fósseis nos transportes ou reduzir os voos de curta distância e jatos privados. Continuamos altamente dependentes de gás. Temos cruzeiros parados a poluir nas nossas cidades. Faltam espaços verdes e não deixar a gestão da floresta à indústria papeleira, das mais poluentes de Portugal.

Os governantes estão mal habituados à falta de consequências da má liderança do país. Quantos saíram “em desgraça” apenas para arranjar um sem número de consultorias ou diretorias não executivas como recompensa.

Dirão: se houver consequências não eleitorais, ninguém vai querer ir para a política porque simplesmente há circunstâncias fora do controlo dos políticos, especialmente com a abdicação constante de soberania para o privado e para instituições não democráticas como o BCE. É verdade. E eu digo que o risco moral de recompensar governantes por desrespeitarem as suas promessas e os interesses do eleitorado é a fórmula perfeita para apenas atrair os piores oportunistas para a política.

Desta vez foi tinta. Quando o legado do PS e do PSD for vender o planeta em troca de um futuro tacho na GALP e na EDP, a mancha no nome será bem maior que na roupa.

PS: No período entre escrever este texto e revê-lo, um grupo de jovens activistas da Climáximo bloqueou a segunda circular em protesto contra a inação climática dos governos e foi atacado por motoristas. Foi interessante ver os mesmos que acham que tinta é violência achar que bloquear uma estrada justifica violência sobre manifestantes.

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt