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Um concurso de bolsas de doutoramento e o virar da página de Abril na ciência

Há décadas que há um estrangulamento do carácter público do sector do ensino superior e da ciência. A precariedade ronda os 90% nos investigadores doutorados, as bolsas de investigação sem os mais básicos direitos laborais e o  subfinanciamento e a privatização das instituições de ensino superior e de ciência são reflexo disso.

Crónica 74
2 Novembro 2023

De há décadas para cá que o estrangulamento do carácter público do sector do ensino superior e da ciência vem sendo concretizado de forma mais ou menos declarada. A precariedade a rondar os 90% nos investigadores doutorados, as bolsas de investigação sem os mais básicos direitos laborais como forma de contratação generalizada, ou o subfinanciamento e a privatização das instituições de ensino superior e de ciência são apenas alguns indicadores desse estrangulamento.

A lista é longa e merecia maior detalhe mas, apesar de tudo, trata-se de um sector sobre o qual artigos de opinião e comunicados de associações e sindicatos têm sido publicados em quantidade suficiente para que uma rápida pesquisa nos permita confirmar que a privatização, directa ou indirecta, da criação de conhecimento e da ciência é um projecto político que só pode ser refutado como tal. Adiante.

Este ano, o concurso para bolsas de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) contou com uma novidade que confirma este projecto: das 1450 bolsas disponíveis, o painel de doutoramentos em ambiente não académico, estreado no ano passado, teria um reforço significativo e passaria a contar com até 400 bolsas à partida. A meta, segundo a ministra Elvira Fortunato, é de que 50% do total das bolsas atribuídas até 2027 sejam realizadas neste modelo, ou seja, em parceria com empresas, administração pública e sector social. Com isto, as investigações de doutoramento tornam-se desproporcionalmente articuladas com as exigências do tecido empresarial e social, sendo esta uma medida que o Ministério pretende alargar aos concursos para investigadores doutorados.  

Um parêntesis: o concurso anual para bolsas de doutoramento em todos os domínios científicos é distribuído por áreas científicas pré-definidas. Com as devidas críticas que possamos fazer a essa subdivisão, é útil destacar que o número de bolsas atribuída por cada painel é determinado a posteriori em função do número de candidaturas, o que tem garantido uma equidade no financiamento. Atribuir à partida um número máximo de bolsas a um painel é, por isso, inédito e potencialmente causador de distúrbios na distribuição de fundos escassos não só entre as dimensões fundamental e aplicada da ciência como, no segundo caso, na distribuição pelas diferentes áreas científicas.

Havendo muito por dizer sobre o investimento abrupto nos doutoramentos em ambiente não académico - do alargamento da precariedade à primazia da criação de valor económico - vale a pena analisar os resultados do concurso de 2023.

Feitas as contas, salta à vista uma reviravolta quando comparamos as distribuições por áreas científicas entre os painéis em contexto académico e o painel em contexto não académico. Nos primeiros, os tais em que as bolsas são atribuídas em função do número de candidaturas, a distribuição é de cerca de 34% para as Ciências da Engenharia e Ciências Exactas, de 24% para as Ciências Naturais e Ciências da Vida, e de 42% para as Ciências Sociais e Humanas. Quando olhamos para o painel em ambiente não académico, os números variam ao ponto de termos cerca de 42%, 38% e 20% das bolsas atribuídas, respectivamente.

Assim, a aposta na investigação doutoral em parceria com empresas, administração pública e sector social não vem apenas materializar a valorização desmesurada da ciência aplicada em detrimento da ciência fundamental, como traz um novo paradigma de redistribuição do financiamento por áreas científicas. Deste modo, o Ministério expia a culpa do reajuste por si implementado, inversamente proporcional à tendência sistemática do elevado número de candidaturas em Ciências Sociais, Artes e Humanidades por comparação com as restantes áreas científicas sob a falácia de uma pretensa selecção natural do mundo real [itálico meu].

Por fim, esta não é (para já) a denúncia de uma qualquer morte anunciada do financiamento para estas áreas mas antes uma simples constatação de como, disfarçada de novilíngua neoliberal (a inovação e as sinergias que para tudo servem), passa pelos pingos da chuva da maioria absoluta mais uma machadada num entendimento do ensino superior e da ciência como bem público, onde todos os saberes deveriam poder encontrar o seu espaço. A nota explicativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e do Ensino Superior sobre o Orçamento do Estado, publicada ontem, abre com a frase “No ano em que se assinalam os 50 anos do 25 de abril queremos fazer história e virar mais uma página no ensino superior e ciência.” Neste, como em todos os outros sectores, talvez valesse mais a pena procurar cumprir Abril do que ultrapassá-lo. 

A autora é dirigente da Associação dos Bolseiros de Investigação Científica. As opiniões veiculadas nesta crónica não reflectem necessariamente a opinião da ABIC.

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