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Todo o país é composto de mudança

Enfrentar a crise climática obriga à superação do capitalismo fóssil à escala nacional e coordenada internacionalmente. Portugal deve incorporar fontes 100% renováveis na geração de eletricidade até 2030, criar uma empresa pública de energia, ampliar a oferta pública de transportes coletivos e implementar um programa de reabilitação do parque habitacional.

Crónica 74
7 Setembro 2023

O verão de 2023 ficou marcado pelo desenrolar em direto da crise climática. Os recordes nefastos somam-se: julho foi o mês mais quente dos últimos 174 anos, com a temperatura média à superfície da Terra a atingir os 16,95 graus Celsius; as ilhas de Maui, no Havai, e de Rodes, na Grécia, foram assoladas por incêndios devastadores; o Canadá continua a enfrentar a pior época de incêndios florestais de sempre (as chamas já destruíram uma área equivalente a um Portugal e meio); a Eslovénia registou as piores inundações da sua história – e mais fenómenos extremos haveria a acrescentar a esta lista.

Na “era da ebulição global” (nas palavras de António Guterres), o livro Sobre a mudança. Justiça climática e transição ecológica no século XXI, escrito por Luís Fazendeiro, oferece-nos uma mensagem de esperança e insta-nos a lutar pelo “mundo melhor que sabemos ser possível” (p. 207). Numa síntese primorosa, que conjuga divulgação científica e análise crítica, Fazendeiro identifica os contornos socioeconómicos e políticos da transição ecológica, centrando-se no caso português. Rejeitando quaisquer fatalismos – “o futuro não está escrito!” (p. 271), como faz questão de relembrar –, o autor não nos deixa sucumbir à paralisia e ao medo (embora a crise climática seja, de facto, um motivo legítimo para temer pelo futuro) e oferece-nos um vislumbre de alternativas políticas mais democráticas e ecológicas.

A obra desenvolve-se em três partes. A primeira parte, de diagnóstico, expõe a magnitude da crise climática e a urgência em contê-la. Clarifica com rigor alguns dos principais conceitos da ciência climática (“efeito de estufa”, “pontos de não retorno” e “fronteiras planetárias”), sumariza o essencial das negociações internacionais sobre o clima e explicita a ideia de justiça climática. Desmonta, ainda, os mitos mais insidiosos do capitalismo verde, por exemplo, o de que os mercados podem resolver a crise climática. Explicita alguns dos obstáculos a uma mudança sistémica, destacando o imperativo do crescimento infinito – um legado da Economia neoclássica –, a ilusão do crescimento verde – veiculada pelas principais organizações internacionais –, ou a fé inabalável no progresso científico e tecnológico como solução milagrosa para a crise climática.

Na segunda parte, o autor ancora geograficamente a análise, debruçando-se sobre Portugal. Começa por esclarecer as principais metas para a ação climática definidas pelo Governo e prossegue com a indicação de setores prioritários para a transição ecológica, nomeadamente, a energia, a pobreza energética e o parque habitacional, a mobilidade, a indústria, as florestas e o ordenamento do território.

Denuncia, ainda, projetos e práticas que sabotam o combate às alterações climáticas e aumentam a vulnerabilidade do território nacional, designadamente, os planos de expansão energética, que encontram no hidrogénio verde e na mineração de lítio os seus principais veículos, ou ainda atividades económicas danosas para os ecossistemas e a biodiversidade, como a agricultura intensiva e a colonização de áreas protegidas pelo turismo de luxo. Face às investidas do capitalismo verde, são justamente visibilizadas expressões de resistência – desde dispositivos legais, como o regime de avaliação ambiental, à organização coletiva, esfera em que a Greve Climática Estudantil assume especial protagonismo.

Na última parte do livro, de olhos postos no futuro, Fazendeiro aponta algumas das condições necessárias para uma transição ecológica justa – sublinha, desde logo, a centralidade do Estado-Nação. Dada a magnitude do desafio, só um Estado forte pode encabeçar uma resposta consequente às alterações climáticas e desencadear uma transição célere e em larga escala. Por esse motivo, o controlo público e democrático de setores estratégicos como a energia, a água, a maioria dos transportes coletivos e as florestas, sem esquecer parte dos setores da banca e da finança, é imprescindível, pois “apenas no setor público, por definição, pode a transição ecológica ser decidida de forma democrática e de modo a não deixar ninguém para trás” (p. 232).

Deste modo, a transição justa, cada vez mais um slogan esvaziado de significado, exige a criação de empregos com direitos e socialmente úteis, maioritariamente no setor público, que contribuam, simultaneamente, para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa e para a justiça social.

Enfrentar a crise climática obriga à superação do capitalismo fóssil, encetada à escala nacional e coordenada internacionalmente – Portugal deve, como recomenda o autor, “forjar um caminho único rumo à sustentabilidade” (p. 268), uma trajetória adaptada ao contexto social, cultural, ambiental e geográfico do país. Fazendeiro avança, assim, um possível plano de ação para romper a dependência em relação aos combustíveis fósseis: a incorporação de fontes 100% renováveis na geração de eletricidade até 2030, a criação de uma empresa pública de energia, a ampliação da oferta pública de transportes coletivos e a implementação de um programa de reabilitação do parque habitacional, de modo a melhorar a eficiência energética dos edifícios.

Trata-se, no fundo, de um guia indispensável para uma transição energética democrática num país que não prima pela abundância de análises críticas.

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