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Também não sentiste o crescimento da economia?

A economia está a ter “bons resultados”, mas a vida da maioria das pessoas nem por isso. A dependência do turismo fortaleceu o modelo assente em baixos salários e precaridade e aumentou os preços da habitação para valores incomportáveis. Como o crescimento não é um fim em si mesmo, convém olharmos mais para a sua distribuição.

Crónica 74
1 Junho 2023

Nas últimas semanas, os números da economia portuguesa foram amplamente destacados e elogiados. Depois de, em 2022, o Produto Interno Bruto (PIB) ter crescido 6,7%, o que corresponde ao maior crescimento anual registado neste século, a economia portuguesa voltou a surpreender no arranque de 2023 e registou um crescimento homólogo de 2,5% nos primeiros três meses do ano. A Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional, que estimavam um crescimento de 1% até ao final do ano, já reviram as suas previsões em alta e apontam agora para 2,4% e 2,6%, respetivamente.

Estes números têm sido elogiados pelo governo. António Costa congratulou-se com as “boas notícias na economia” e o ministro das Finanças, Fernando Medina, disse que os números revelaram “a capacidade de compensar o abrandamento da procura interna por um crescimento robusto das exportações e, por isso, [são] bons resultados”. No entanto, o ministro da Economia, António Costa Silva, acabou por reconhecer que “a melhoria significativa da economia […] ainda não chegou ao bolso dos portugueses”, o que parece mais próximo da experiência da maioria das pessoas.

É importante perceber porque é que isso está a acontecer. Primeiro, é preciso ter em conta que o crescimento mais expressivo se dá depois da enorme quebra registada no primeiro ano da pandemia. Portugal teve a quarta maior queda do PIB em 2020 (-8,3%) na Europa e uma parte do crescimento dos anos seguintes reflete apenas o ritmo da reabertura das atividades depois dos períodos de confinamento. Depois, a revisão das previsões em alta prende-se com o desempenho mais positivo do turismo, que tem sido o principal motor da economia portuguesa. Os dados do INE mostram que o crescimento do PIB tem sido alavancado pelas exportações, nomeadamente de serviços (onde se inclui o turismo), ao passo que o consumo privado e o investimento tiveram reduções nos últimos meses.

Tão ou mais importante do que os números do crescimento é a forma como esses ganhos são distribuídos. No ano passado, enquanto algumas empresas registavam lucros extraordinários, o salário médio real caiu mais de 5% e a grande maioria dos trabalhadores perdeu, aproximadamente, o equivalente a um mês de salário. Apesar de os salários começarem a recuperar uma parte da perda em alguns setores, está longe de ser suficiente. O peso dos salários no PIB – ou seja, a fatia do rendimento gerado que é entregue ao trabalho – reduziu-se, o que mostra que, apesar de a economia crescer, os ganhos não estão a ser para todos. E o último inquérito ao emprego do INE dá conta de que, com o desemprego a aumentar nos últimos meses, a criação de postos de trabalho se tem concentrado sobretudo em profissões menos qualificadas, com salários mais baixos e vínculos precários.

A quebra da procura interna, desvalorizada por Medina, é um reflexo das dificuldades das famílias face ao aumento generalizado dos preços, sobretudo em bens que representam uma fatia significativa dos gastos normais de todas as pessoas (eletricidade, gás, combustíveis e bens alimentares), e à enorme subida dos custos com a habitação, tanto pelo aumento das taxas de juro e das prestações dos empréstimos como pelo aumento das rendas para valores recorde.

Os números aparentemente contraditórios são o resultado do modelo de crescimento da economia portuguesa nos últimos anos: face à enorme quebra da produção industrial nas últimas duas décadas – a maior entre os países da União Europeia –, o país encontra-se cada vez mais dependente do turismo e de serviços associados, que, além de serem tipicamente atividades de baixo valor acrescentado, estão entre as que pagam salários mais baixos e onde a precariedade é maior.

A excessiva dependência do turismo tem efeitos perversos para as condições de vida, seja pela consolidação de um modelo de baixos salários e precariedade, seja pelo aumento dos preços da habitação para valores incomportáveis para os salários nacionais. A isso, junta-se a política salarial do governo, que atrasou a recuperação salarial ao aprovar aumentos bem abaixo da inflação para a função pública e ao definir uma meta muito reduzida para os aumentos no setor privado. É isso que explica a diferença entre os “bons resultados da economia” e a vida da maioria das pessoas que vive e trabalha no país. Como o crescimento não é um fim em si mesmo, convém que olhemos mais para a sua distribuição.

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