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Sobre o direito a envelhecer

Envelhecemos do primeiro ao último dia de vida, envelhecemos todos e cada um da sua forma. Tido mediaticamente como algo obsceno e digno de vergonha, o envelhecimento carrega uma mensagem que predominantemente parece ridicularizar qualquer tentativa de reivindicação de amor, cuidado ou desejo entre rugas, mamas caídas ou cabelos brancos.

Crónica 74
28 Dezembro 2023

Envelhecemos na coincidência de todos os sistemas simbólicos – linguagem, crenças, mitos, teorias da vida e da morte… – e materiais – a natureza das forças de produção, a abundância ou escassez de bens, o acesso à ciência e à tecnologia... – de uma cultura. Qualquer alteração que afete um destes fatores, afeta a nossa experiência de envelhecimento, como construção social que é.

Envelhecemos do primeiro ao último dia de vida, envelhecemos todos e cada um da sua forma. O envelhecimento é um processo tão único e complexo que até cada um dos nossos órgãos envelhece ao seu ritmo, numa dança articulada entre o que é biológico e o que a experiência nos traz.

O idadismo, enquanto preconceito com base na idade, informa a nossa experiência social de uma série de fatalismos e condições negativas sobre o que é isto de avançar no tempo, entre as quais se destaca a estagnação e o declínio. Nesta lógica discriminatória, a abordagem capitalista do trabalho assume uma responsabilidade central. Longe de servir o progresso humano, o trabalho perde, aqui, o seu sentido emancipatório e de criação, para se transformar tão somente no único bem que a maioria de nós possui e, por isso, pode vender. A comercialização da força de trabalho torna-se, neste sentido, incompatível com a valorização da história de vida, da experiência ou da transmissão de cultura que associamos a quem envelhece. Nesta mercantilização que alimenta as relações sociais, a velhice sai desvalorizada, ao não constituir a fase de produtividade do trabalhador.

Tido mediaticamente como algo obsceno e digno de vergonha, o envelhecimento – no mais alto grau para as mulheres, em particular – carrega uma mensagem que predominantemente parece ridicularizar qualquer tentativa de reivindicação de amor, cuidado ou desejo entre rugas, mamas caídas ou cabelos brancos. Percorre-se um caminho das mais variadas formas e graus de desrespeito. No fundo, de maus-tratos.

O reparo de uma aparência mais jovem tornou-se num dos maiores elogios quando, em paralelo, se publicam capas de revista que enaltecem a versão ideal da velhice desta ou determinada figura pública. Numa perspetiva do corpo como capital individual, investir no mesmo torna-se condição indispensável à autoestima, à qualidade de vida e ao envelhecimento bem-sucedido. A promessa do rejuvenescimento chega-nos por meio de tudo quanto seja possível comercializar: séruns, implantes, antioxidantes e todas as demais intervenções que caibam na “ciência anti-idade”. Enquanto o sucesso social depende da imagem do corpo, qualquer sinal de velhice é indicador de desinvestimento neste que é o nosso património próprio.

É no encontro entre a suposta saúde e a beleza que as dinâmicas de consumo fundamentam a noção de bem-estar, impondo um modo de ser e viver assente no individualismo, no ideário de autonomia e produtividade, e, concludentemente, na juventude. Acontece que reduzir o sucesso do envelhecimento à tonificação do corpo ou à ausência de comprometimentos na sua funcionalidade minimiza a importância da capacidade de adaptação de cada um de nós, deixando igualmente de parte a capacidade de julgamento, as visões e as crenças daquilo que é para cada pessoa o sentimento de bem-estar.

Assim, a era dos tratamentos anti age compromete-se, também, com a reivindicação do direito à flacidez e, ainda assim, à vida na sua plenitude. Não deixa de ser curioso que, num tempo em que investimos tanto em estender a nossa existência (ou, quando menos, a dos mais privilegiados), o “corpo velho” se tenha tornado no maior inimigo. Afinal, não existe outro caminho para viver mais tempo senão esse mesmo: o de envelhecer.

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