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Radical é a era da ebulição global

Nas vésperas do início da COP28, os prognósticos não são animadores. A ONU afirma que estamos muito longe de alcançar os objetivos do Acordo de Paris e que seria necessária uma atuação muito mais robusta para limitar o aquecimento global. E até o Papa abençoa os protestos "radicais" dos jovens.

Crónica 74
13 Outubro 2023

A 9 de outubro de 2023, quando escrevo esta crónica, a previsão do Instituto Português do Mar e da Atmosfera para Leiria e Santarém, as capitais de distrito com a temperatura máxima mais elevada, é de 36°C; para Coimbra, onde vivo, é de 34°C. Foi com uma frase semelhante que iniciei a minha crónica publicada a 20 de abril deste ano, depois de Portugal ter sido atravessado por uma onda de calor. Só mudam os valores da temperatura e a estação do ano (está ainda mais calor neste início de outono).

Após um verão de extremos – vivemos o julho e o agosto mais quentes desde que há registos –, setembro seguiu a mesma tendência, com uma temperatura média do ar à superfície de 16,38°C (mais 0,93 °C do que a média das temperaturas deste mês entre 1991 e 2020). Tudo aponta para que 2023 venha a ser o ano mais quente alguma vez registado, com cerca de 1,4°C acima das temperaturas médias pré-industriais, batendo assim o recorde de 2016.

Em agosto, o jornal britânico The Guardian perguntou a 45 reputados cientistas climáticos de todo o mundo se as implacáveis emissões de dióxido de carbono teriam finalmente empurrado a crise climática para uma nova e acelerada fase de destruição. Estes afirmaram que, apesar de se ter a sensação de que os acontecimentos tinham tomado um rumo alarmante, a tendência geral de aquecimento global registada até à data estava inteiramente de acordo com três décadas de projeções científicas.

Declararam ainda que os acontecimentos excecionais de 2023 poderiam tornar-se normais em apenas uma década, a menos que haja um reforço acentuado da ação climática. Parece que a “a humanidade abriu as portas do inferno”, como alertou António Guterres no seu discurso de abertura da Conferência da Ambição Climática (a designação do evento não deixa de ser irónica, sobretudo face à ausência de Joe Biden e de Xi Jinping – os líderes dos maiores emissores mundiais de gases com efeito de estufa).

A menos de dois meses do início da Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP28), que se realizará entre 30 de novembro e 12 de dezembro, no petro-Estado dos Emirados Árabes Unidos, os prognósticos não são animadores. O relatório de síntese das Nações Unidas sobre o balanço global (global stocktacke) – um processo previsto no Acordo de Paris que monitoriza os progressos dos signatários no cumprimento das suas metas de redução das emissões de gases com efeito de estufa – concluiu que os países ainda estão muito longe de alcançar os objetivos do tratado e que seria necessária uma atuação muito mais robusta para limitar o aquecimento global a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais.

O mesmo relatório, que servirá de base para as negociações na COP28, refere que a exploração de combustíveis fósseis deve cessar até 2030. No entanto, não existem quaisquer garantias de que esta proposta venha a ser incluída nos resultados da conferência, ou que conste, sequer, da agenda oficial. Convém, aliás, relembrar que o presidente da COP28, Sultan Al Jaber, é o CEO da petrolífera Adnoc, empresa que tem o terceiro maior plano de expansão da produção de petróleo e gás fóssil do mundo (ficando apenas atrás da Arábia Saudita e do Qatar).

A 4 de outubro, o Papa Francisco publicou a Laudate Deum, uma exortação apostólica dirigida “a todas as pessoas de boa vontade sobre a crise climática” (p.1). Este documento é uma atualização e um reforço da mensagem da encíclica Laudato Sí, lançada em 2015, pouco antes da assinatura do Acordo de Paris. Nas vésperas da COP28, Francisco apela à aceleração da transição energética e deixa um aviso inequívoco: “o mundo em que vivemos está a colapsar e pode estar a aproximar-se de um ponto de rutura” (p.1).

Embora não mencione explicitamente o capitalismo fóssil – o motor da crise climática –, o Papa reconhece que, “lamentavelmente, a crise climática não é propriamente um assunto que interesse às grandes potências económicas, cuja preocupação é o maior lucro possível a um custo mínimo e no mais curto espaço de tempo” (p.4). Sublinha ainda a expansão do que designa por “paradigma tecnocrático”, que tem como consequência a facilidade em “aceitar a ideia de um crescimento infinito ou ilimitado” (p.5).

O Papa visibiliza, igualmente, “as ações de grupos negativamente retratados como «radicalizados»”, uma vez que, “na realidade, estão a preencher um espaço deixado vazio pela sociedade no seu conjunto”, já que “cada família deveria perceber que o futuro dos seus filhos está em jogo” (p.12). Perante as ações recentes do movimento pela justiça climática em Portugal, as palavras de Francisco não poderiam ser mais oportunas. Radical é mesmo o capitalismo fóssil e a era da ebulição global que desencadeou.

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