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A quem pertencem os Domingos?

Os horários dos estabelecimentos comerciais alargados, a supressão do dia de encerramento obrigatório e o fosso entre pequenos comerciantes e grandes estabelecimentos comerciais têm vindo a ser reforçados ao longo das últimas décadas. Enquanto a disputa se vai configurando entre as instituições e os espaços de opinião, as greves vão acontecendo, mas o que reivindicam deixou de ser convocado para o costumeiro argumentário.

Crónica 74
4 Janeiro 2024

O encerramento do comércio aos Domingos e feriados, e a restrição do horário de encerramento para as 22 horas é uma reivindicação que não é nova no sector. A época natalícia deste ano exacerbou esta disputa por ter feito coincidir o Domingo com a véspera de Natal. Neste, como nos últimos dois anos, o CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços convocou greve. As reivindicações são de longa data e já acumulam inúmeras greves, discussões políticas e, mais recentemente, uma iniciativa legislativa de cidadãos lançada por aquele sindicato.

Mas o alargamento dos horários de funcionamento dos estabelecimentos comerciais, a supressão do dia de encerramento obrigatório e o fosso entre pequenos comerciantes e grandes estabelecimentos comerciais têm vindo a ser, pelo contrário, reforçados por decreto ao longo das últimas décadas através do regime jurídico dos horários de funcionamento dos estabelecimentos comerciais, em vigor desde 1996 e revisto em 2010 e 2015.

Este é, por isso, um percurso inversamente proporcional entre a realidade de quem trabalha com parcos direitos neste sector (salários baixos, precariedade, impossibilidade de conciliar o trabalho com a vida familiar,…) e a de quem, por convicção ou conveniência, tem legislado e engrossado o coro da desregulação do direito à regulação laboral de quem lhe embrulha mais uma prenda de última hora ao mesmo tempo que defende a semana de quatro dias para os seus pares. Enquanto a disputa se vai configurando entre as instituições e os espaços de opinião, as greves vão acontecendo sem que o que nestas é reivindicado seja convocado para o costumeiro argumentário.

(Por exemplo, como a manutenção dos baixos também salários promove, entre os resultados evidentes, este regime jurídico altamente lucrativo, estando o trabalhador a contar com o diferencial de Domingo para compensar o que não ganha nos dias úteis.)

De um lado deste costumeiro argumentário prega-se o pretenso direito intrínseco desse sujeito que é o consumidor, chora-se a queda dos lucros das grandes cadeias de distribuição e antecipa-se o flagelo do desemprego. Três aspectos que, aparentemente, têm uma identidade nacional muito própria, já que Portugal é dos países da Europa onde os horários praticados pelo comércio são dos mais liberalizados. Esta é, então, uma daquelas matérias em que vale a pena ver como lá fora não é necessariamente bom mas é um bocadinho melhor, ou, como a divisão internacional do trabalho também nos diz tanto.

Recorramos à Alemanha, o bastião da produtividade do mundo ocidental e tantas vezes usada como exemplo pelos arautos do “lá fora é que é bom.” Por lá, prevalece a Ladenschlussgesetz (de tradução literal: lei do fecho das lojas), que estabelece o encerramento do comércio aos Domingos, feriados e até às 14 horas do dia 24 de Dezembro. Um enquadramento que remonta a 1956, na então República Federal Alemã, e que serviu de modelo para a legislação na Alemanha unificada. 

Apesar da revisão de 2003, que transformou a lei federal em lei estadual com consequências para a desregulamentação dos horários, muito dificilmente se encontrará um supermercado ou um centro comercial aberto em Berlim aos Domingos e feriados ou depois das 22 horas nos dias úteis. Aqueles abertos, estão-no ao abrigo das exceções anuais, que não ultrapassam alguns Domingos por ano. Pasme-se ainda que é feriado também no dia 26 de Dezembro e que, por isso, os saldos esperam anualmente mais um dia, para grande prejuízo dos lucros milionários dos últimos trimestres. 

Por cá, do outro lado do costumeiro argumentário, disputam-se os chavões do primeiro, contrapondo-lhes a derradeira condescendência (a que chamarão altruísmo). É deste lado que estão os que anunciam publicamente que não fazem compras no Domingo, dia 24, como o último reduto da caridade (a que chamarão solidariedade) perante quem trabalha neste sector. Por vezes, dá-se o caso de os dois lados serem o mesmo.

Num mês com tantas semanas de quatro dias e em que os resultados preliminares do projeto-piloto foram anunciados, muito se tem falado das maravilhas para a produtividade e para o bem-estar que esta medida trará, como se de um mundo laboral à margem do acima discutido se tratasse. Sem surpresa, já que é também na distinção do suposto trabalhador moderno que opera a construção pública da solidariedade e se decide a quem pertencem os Domingos.

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