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Pyrex - como o capitalismo mata bons produtos

Um fundo abutre comprou a Pyrex por 100 milhões emprestados e depois pagou-os endividando a empresa, aproveitando para pagar a si mesmo 245 milhões. Quando as vendas abrandaram, a empresa ficou em sarilhos e declarou falência. Foi mais um caso de irracionalidade do capitalismo financeirizado: milhares de empregos foram destruídos para uns tipos ricos ficarem ainda mais ricos.

Crónica 74
29 Junho 2023

Eu tenho um conjunto de Pyrex, a minha mãe tem um conjunto Pyrex, já a minha bisavó tinha um conjunto Pyrex. Mesmo quando não era estritamente Pyrex, nós chamávamos-lhe piréxes. É assim que se sabe que uma marca atingiu realmente o sucesso, tal como os Post-its, o Tupperware (Tamparuére em português) ou uma Gilette, o nome da marca torna-se o nome da coisa.

Pyrex é um material e uma linha de produtos de cozinha, geralmente recipientes de vidro borosilicato resistentes ao calor e, por isso, perfeitos para o forno. Houve recentemente um ressurgimento de popularidade da marca na pandemia - talvez as pessoas estivessem a cozinhar mais em casa - e não é difícil encontrar grupos no Facebook de coleccionadores de Pyrex clássico. Um modelo particular que apareceu na série Marvelous Mrs. Maisel (recomendo!) criou um pequeno furor em 2019 e uma caça ao modelo vintage. 

Não é incomum conjuntos de Pyrex passarem de pais para filhos. Esta reputação de produtos de alta qualidade, longevidade e resistência foi construída durante os mais de cem anos da sua existência, mas recentemente foi usada como argumento para a falência anunciada da empresa que a produz: seria o Pyrex um produto tão bom que foi vítima do seu próprio sucesso? Se alguém pode comprar um Pyrex para a vida, não estaria a comprometer futuras vendas de Pyrex? Não teria sido mais inteligente terem pensado numa subscrição de Pyrex, ou Pyrex que se partem passado quatro anos ou até Pyrex que ficam obsoletos com uma atualização de sistema operativo?

A empresa que hoje produz produtos Pyrex, a Instant Products, também vendia panelas de pressão Instant Pot, que aparentemente sofriam do mesmo problema: como não se estragavam, não havia grande motivo para comprar novas. Ao juntar-se a isto o fim dos confinamentos e da pandemia, houve uma quebra de vendas nestes produtos de cozinha à medida que as pessoas passaram menos tempo em casa. Esta foi pelo menos a narrativa em alguns jornais para falar das causas da falência.

O que estas notícias tendem a não mencionar é que a empresa foi adquirida por um fundo abutre. Os fundos abutre não são novidade. Não é um termo técnico, mas pejorativo contra fundos de investimento predatórios, particularmente de dívida de países em risco ou de empresas em risco de falência.  Uma empresa de Private Equity chamada Cornell Capital LLC, dona da Instant Brands, aproveitou as taxas de juro baixas em 2019 para comprar a Pyrex (CorningWare) com dinheiro emprestado. Em 2020 e 2021 beneficiaram da pandemia. As pessoas terem de ficar em casa a cozinhar aumentou a procura pelos seus produtos.  Em Abril de 2021, a Instant Brands pediu um empréstimo de 450 milhões de dólares. O empréstimo servia para refinanciar 294 milhões de dívida existente, incluindo os 100 milhões usados para comprar a Pyrex. Serviu também para garantir uma distribuição de dividendos de 245 milhões de dólares aos accionistas. 

Essencialmente, o fundo abutre comprou a Pyrex por 100 milhões emprestados e depois pagou o empréstimo endividando a empresa, aproveitando para se pagar a si mesmo 245 milhões em dividendos. Quando as vendas abrandaram, a empresa ficou em sarilhos. Agora, com o fardo de uma dívida enorme, com taxas de juro crescentes e uma série de decisões infelizes para tentar cortar custos, a empresa teve de declarar falência.

Mas, ao conhecer-se a história toda, fica claro que a culpa não é de terem um bom produto. A marca Pyrex tinha altos e baixos, mas sobreviveu mais de 100 anos. Não conseguiu sobreviver ao canibalismo corporativo, não conseguiu sobreviver à Private Equity a devorar as suas entranhas como Saturno a devorar um filho. E depois culpar o filho por não conseguir sobreviver sem entranhas.

Quando passámos a achar normal comprar o cão com o pêlo do cão?  Talvez com a TAP? Mas a prática é comum dos fundos abutre. Já a Toys R’ Us também teve uma história parecida nos Estados Unidos. Estas empresas não arriscam nada do que é seu. Compram - com dinheiro emprestado - empresas com modelos sustentáveis, esventram-na para pagar o empréstimo e pagar-se a si e, depois de violentas restruturações e despedimentos que põem em causa a qualidade do serviço e produtos, culpam a falência da empresa com factores externos. E os media reproduzem acriticamente os press releases dos fundos abutre.

Esta história é só mais um caso de irracionalidade do capitalismo, especialmente do capitalismo financeirizado. Um produto é considerado mau por ser bom. Uma empresa sustentável é destruída, juntamente com milhares de empregos. E isto para uns tipos já ricos, que não adicionam nada ao negócio, ficarem ainda mais ricos.

Penso no caso da funcionária despedida de um hipermercado - despedimento esse felizmente revertido em tribunal - por comer um croissant que ia para o lixo. O croissant não ia ser vendido. Ia para o lixo. Penso nos contentores do lixo guardados por polícia nos EUA, não vá alguém com fome “roubar” comida desperdiçada.

Penso no que eu acharia que faria sentido: se produzirmos eletrodomésticos e material de cozinha que durem muito, menos eletrodomésticos com conserto iriam parar a aterros, logo menos teriam de ser reciclados, logo menos teriam de ser produzidos. 

Se houver uma distribuição mais racional de comida, há menos desperdício, menos pessoas passam fome, menos energia se gasta a produzir comida que vai acabar no lixo. 

Percebo por que é que isso não acontece. E não é porque a vida das pessoas seria pior. Seria objectivamente melhor haver menos fome e desperdício. Seria melhor gastar menos dinheiro a substituir produtos que se estragam facilmente ou que atingem a sua obsolescência programada. Num sistema racional, ter de produzir menos até significa termos de trabalhar menos ou mais no que gostamos. Mas isto significa fazer menos dinheiro para algumas empresas. A vida das pessoas melhoraria, mas a economia podia até contrair. O tal assustador “decrescimento” que alguns ecologistas pedem.

Se medirmos o sucesso de uma civilização por uma linha arbitrária como o PIB subir, percebo o pavor. Mas se a medida de uma boa civilização for que ninguém passe fome, que não haja tanto desperdício e não permitir que se destruam empregos para o proveito de um punhado de abutres… isso parece-me uma civilização mais resistente, mais duradoura, mais transparente. Como Pyrex. 

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”. Não é patrocinado pela Pyrex.

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