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Podemos ser patrióticos e de esquerda?

Do que nos podemos orgulhar na nossa história? De guerras de conquista, de perseguir judeus, de sermos piratas glorificados, esclavagistas? De uma ditadura decrépita a agarrar-se às colónias com as suas garras ósseas, sacrificando gerações de portugueses à guerra, quando em Portugal os portugueses passavam fome descalços? 

Crónica 74
25 Janeiro 2024

A educação pública doutrina, a bem ou a mal, o patriotismo. Aprendi, como muitos de vocês que me lêem, os nossos símbolos, o nosso hino, a bandeira, a nossa história, ou pelo menos uma versão com um filtro de Instagram lisonjeante em que temos sempre o consolo que os espanhóis, ingleses, franceses e holandeses “eram piores”.

Nunca achei que tivéssemos o fervor doentio que os americanos aparentam ter nos filmes e nos debates republicanos - afinal é normal países recentes como os EUA tentarem compensar em intensidade o que lhes falta em história - mas não deixava de aproveitar as oportunidades de manifestar o meu próprio patriotismo. Em coisas divertidas como jogos da seleção, jogos olímpicos mas também nas datas formadoras da nossa identidade nacional. O 10 de Junho, o 5 de Outubro, o 25 de Abril. E talvez principalmente nunca me senti tão patriótico como quando voto. Um sentimento de orgulho, de gratidão por poder participar num acto negado a tantos antes de mim em Portugal e a ainda a tantos pelo mundo. De poder dizer eu vivo num país democrático.

À medida que cresci e fui questionando e fui vendo questionar os nossos símbolos nacionais, a nossa história e até os limites da nossa democracia, questionei a própria ideia de orgulho nacional, de patriotismo. Para além do nosso investimento emocional, o que são os nossos símbolos? Um hino sobre defender as colónias dos ingleses na altura do mapa cor-de-rosa; uma bandeira com uma esfera armilar, criada por uma república que lutou para manter as colónias e negou o direito de voto a grande parte da população que governava - notavelmente mulheres. 

Do que nos podemos orgulhar na nossa história? De guerras de conquista, de perseguir judeus, de sermos piratas glorificados, esclavagistas? De uma ditadura decrépita a agarrar-se às colónias com as suas garras ósseas, sacrificando gerações de portugueses à guerra, quando em Portugal os portugueses passavam fome descalços? 

Fiz as pazes com poder orgulhar-me do 25 de Abril. Com o fim da ditadura, com a promessa da democracia, da liberdade, da igualdade. Com as conquistas que se fizeram desde então, como o SNS ou a luta pela independência de Timor.

Este é o meu último artigo antes das eleições de 10 de Março. E à medida que essas eleições se aproximam e com elas uma avalanche de programas, debates, escândalos, soundbites, comecei a pensar no que quero para este país. 

Não acredito no patriotismo da subserviência cega, da obediência à bandeira. Não acredito no patriotismo da exclusão de outros povos, do ódio a outros povos, da competição com outros povos. Posso acreditar então no meu vizinho? No meu compatriota? Posso acreditar num futuro construído em conjunto para beneficiar todos aqueles que aqui nasceram e escolheram viver?

A minha pátria são os portugueses e todos os imigrantes que escolheram Portugal. Quero que sejamos todos livres. Livres da ignorância com uma educação para todos. Livres da doença com saúde para todos. Livres da exploração para ter tempo para nós, para as nossas famílias e amigos, para a cultura, para o desporto, para os nossos projectos. Livres porque não gastamos tudo o que ganhamos em habitação, em rendas excessivas ou empréstimos predatórios.

E como podem os nossos interesses nacionais estarem a ser defendidos se muitas vezes não nos pertencem? Como é que a discussão de um novo aeroporto, adiado há mais de cinco décadas, está refém de uma empresa estrangeira como a VINCI? Como é que a infraestrutura de eletricidade da REN não é da posse dos portugueses? Por que é que os CTT estão reféns de uma empresa que tem piorado constantemente o serviço?

O meu patriotismo é querer vidas melhores para todos os que aqui vivem: mais salários, mais lazer, um futuro sustentável enquanto construímos o que precisamos: mais renováveis, a ferrovia de alta velocidade a unir o país e o país ao mundo, um aeroporto novo para tirar o Humberto Delgado do meio de uma cidade onde inferniza os lisboetas, habitação pública abundante em todo o Portugal, para todos, não só “social” e estigmatizada.

O meu patriotismo é um futuro comum em espaços comuns: não termos escolas segregadas, nem hospitais segregados, nem cidades segregadas entre ricos e pobres, nem entre turistas e trabalhadores.

Pensando tudo isto, não vejo soluções à direita. Não há patriotismo na direita liberal, apenas um niilismo aliado ao populismo fiscal. Para o liberal não interessa construir nada, é cada um por si. Para um liberal mais vale pagar menos cinquenta euros no IRS que ter um SNS que funcione. 

A AD e o Chega competem para herdeiros do Passismo, do Portugal submisso, com medo, vergado pela austeridade. O meu patriotismo não tem medo de outras pessoas, sejam imigrantes ou não.

Os argumentos são risíveis, a ideia de que estão preocupados com os salários dos portugueses ou preços das casas cai por terra quando percebemos que não defendem nem fiscalização e punição das empresas que contratam ilegalmente, dos senhorios que alugam ilegalmente, nem o regular de plataformas como a Uber. São igualmente contra o aumento a sério do Salário Mínimo Nacional, o que eliminaria qualquer suposta “vantagem” em contratar imigrantes.

Já o PS provou não estar à altura da maioria absoluta. Obcecado com as contas certas, e tímido a confrontar o mercado, deixou a habitação entrar numa espiral descontrolada, a saúde e a educação degradar-se e o trabalho enfraquecido.

A Geringonça foi, apesar de tudo, um período de conquistas, bem visto pelos portugueses, em que se reverteu muita da austeridade da Troika e se recuperaram rendimentos. Fizeram-se medidas populares como os manuais escolares gratuitos, a uniformização do passe de transportes públicos e aumentar o acesso gratuito a creches.

Mas os partidos da esquerda foram prejudicados eleitoralmente pela associação com o PS. O PCP, Os Verdes e Bloco de Esquerda, sem poder realmente guiar os destinos do país, viram o PS apropriar-se das suas boas propostas e culpá-los por instabilidade e intransigência quando tentaram bater o pé pelo SNS em 2021. Mas aos olhos de muitos deixaram de os ver como alternativa ao PS. Percebo essa frustração.

Tal como percebo a frustração de muitas pessoas com o eleitoralismo em si. Face a uma catástrofe ambiental iminente, um genocídio em Gaza e o piorar das condições de vida da esmagadora maioria das pessoas, pedir às pessoas para votar num mal menor ou legitimar um sistema em que já não acreditam é demais.

Não podemos deixar que nos limitem a democracia a actos eleitorais, mas ao mesmo tempo eu sinto um dever para com todos os portugueses e os que escolheram Portugal de não deixar que uma direita sedenta de poder atrase o país mais quatro anos.

A curto prazo, enquanto não se construírem outras estruturas paralelas que consigam afetar o destino do país, um governo de esquerda, com um forte peso e influência - senão participação - de partidos como PCP, Os Verdes, Bloco de Esquerda e o LIVRE parecem-me o melhor garante de que os interesses de todos estão representados.

Apelo então, descaradamente, não só ao voto na esquerda, como à campanha pela mesma. Falar com amigos, colegas, vizinhos, família, convencer todos a votar o mais possível. Discutam programas, vejam debates, vão a comícios e arruadas. Envolvam-se.

A escolha é entre acordarmos dia 11 de Março com esperança neste país ou nas mãos dos que sempre nos venderam por pouco.

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”

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