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O BCE causa dor na economia

O BCE quer mesmo causar dor aumentando o desemprego e os economistas do cortejo fúnebre esforçam-se por defender a sua lógica antidemocrática. Mas o diagnóstico é óbvio: o Euro foi, é e será uma iniciativa neoliberal, causadora de estagnação económica e polarização social. Terá de acabar por iniciativas políticas democráticas vindas de baixo.

Crónica 74
21 Setembro 2023

Chama-se Tim Gurner e é um dos maiores capitalistas australianos do imobiliário. Recentemente, adquiriu fama mundial ao expor, de forma tão brutal quanto clara, a economia política de todas as iniciativas liberais: “O desemprego tem de aumentar (...) Tem de haver dor na economia. Devemos lembrar as pessoas que trabalham para os empregadores e não o contrário (...) Temos de eliminar a atitude de arrogância dos empregados, o que passa por agredir a economia. E é isso que os poderes públicos têm feito, por forma a restaurar uma certa normalidade”.

Pouco tempo depois, a presidente do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde, anunciou a décima subida consecutiva da taxa de juro, o preço mais diretamente político no capitalismo, atingindo 4%, o valor nominal mais elevado da história do euro, num ciclo que nem sequer tem paralelo na história do antecessor do BCE, o Bundesbank alemão, desde 1948, como se assinalava no Financial Times.

Na sua conferência de imprensa, Lagarde teve os cuidados ideológicos que faltaram a Gurner e que aliás já o obrigaram a um ofuscador pedido de desculpas: “As condições de financiamento tornaram‑se mais restritivas e estão a refrear cada vez mais a procura, o que constitui um importante fator para fazer a inflação regressar ao objetivo”. A tradução de classe, com todo o realismo capitalista, é óbvia.

O BCE reconhece explicitamente que é o preço da energia a afastar a taxa de inflação do objetivo, perigosamente deflacionário, dos 2%, em que continua a insistir de forma dogmática e, implicitamente, que a subida da taxa de juro só bloqueia o investimento também nesta área. O BCE quer mesmo causar a tal dor na economia, refreando o consumo e o investimento (procura), ou seja, aumentando o desemprego. Este, por sua vez, refreará as veleidades de proteção do poder de compra que os trabalhadores possam ter, mesmo que o contexto seja reconhecidamente de queda dos salários reais e de aumento das margens reais de lucro, numa transferência do trabalho para o capital.

Entretanto, os economistas do cortejo fúnebre da endividada economia portuguesa esforçam-se por defender e ao mesmo tempo ofuscar, sob a capa de suposta neutralidade técnica e de reais insultos, a lógica do BCE, indissociável da sua natureza antidemocrática. A política monetária é, vejam lá, sempre política, intervindo inevitavelmente, por ação ou omissão, no conflito distributivo, seja entre patrões e trabalhadores, seja entre credores e devedores.

É sabido que a elevação das taxas de juro incrementa as desigualdades, favorecendo os elos mais fortes das relações de poder. Como o euro é uma moeda supranacional, a subida da taxa de juro penaliza mais as periferias enfraquecidas e endividadas no, e pelo, euro. Aí, as famílias trabalhadoras endividadas são das mais prejudicadas, com aumentos brutais das prestações ao banco e com o espectro do desemprego.

Perante as subidas da taxa de juro, os Estados sem soberania são compelidos a regressar à austeridade empobrecedora. Por contraste, e graças a esta política monetária, os bancos que operam na zona euro têm as suas reservas no BCE automaticamente remuneradas em muitos milhares de milhões de euros adicionais. Numa economia monetária de produção, as coisas são como são institucionalmente feitas e o BCE foi feito para ajudar nas lutas de classes e nas lutas geopolíticas.

Não vale a pena protestar e acusar o BCE de “terrorismo financeiro”, se não se quiser tirar as consequências do diagnóstico óbvio: o Euro foi, é e será uma iniciativa neoliberal, causadora de estagnação económica e de polarização social. Esta experiência monetária terá de acabar por iniciativas políticas democráticas e antiliberais vindas de baixo, esperamos que mais cedo do que tarde.

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