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Novas regras ou velhos resgates?

A Comissão Europeia apresentou uma nova proposta de regras orçamentais. As novas regras arriscam-se a ser mais do mesmo, até pior do mesmo: mais austeridade com ainda mais arbitrariedade.

Crónica 74
28 Setembro 2023

Após décadas de resultados que oscilaram entre o medíocre e o catastrófico, as regras de governação económica assentes naquilo a que Romano Prodi chamou o “pacto estúpido” vão finalmente ser revistas. Ao longo dos últimos anos, as críticas às regras ainda em vigor foram-se intensificando e generalizando.

Quando o Conselho Fiscal Europeu publicou um relatório altamente crítico das regras europeias, retomou críticas que eram feitas há muitos anos: as regras são procíclicas (reforçam recessões em vez de as suavizar), não protegem o investimento, são complexas e assentam em variáveis não-observáveis. O balanço das troikas também colocou a nu a total ausência de legitimidade democrática e soberana dos programas que foram impostos aos países.

Talvez por isso, a Comissão apresentou a proposta afirmando que ela permitiria acomodar os volumes massivos de investimento público que irão ser necessários para o combate às alterações climáticas, para os objetivos sociais, para a transição digital. Garantiu também que a proposta permitiria aos Estados-membros desenhar as suas próprias trajetórias, orçamentais, em função dos ciclos políticos. Trata-se da famosa apropriação nacional, ownership como se diz em Bruxelas.

A primeira perplexidade que nos assalta quando fazemos a primeira análise desta proposta é que a mesma faz exatamente o contrário. Vamos por partes:

1. A trajetória orçamental é definida em função de um novo indicador central: a despesa primária líquida. Note-se que não é a despesa corrente, ou seja, a despesa de investimento está incluída na evolução do indicador. O facto de a sustentabilidade das contas públicas ser avaliada em função da despesa cria um enviesamento para promover ajustamento do lado da despesa, tendencialmente da despesa de investimento, que é sempre a primeira a cair. Qualquer compatibilidade entre estas trajetórias e os desafios que a própria Comissão vai colocando aos Estados é pura ilusão.

2. A apropriação nacional é, pura e simplesmente, um embuste. A primeira proposta de trajetória orçamental é feita pela Comissão. Depois das negociações entre Governo e Comissão, se não houver acordo, vale a proposta da... Comissão. A apropriação nacional consiste, na realidade, numa espécie de poder colonial da Comissão cujo único paralelo na história da União são os programas da Troika. Quanto ao respeito pelos ciclos políticos democráticos, um novo Governo pode alterar o programa do Governo anterior, mas apenas se for para agravar a austeridade.

3. O saldo estrutural desaparece, felizmente, da equação, embora não se saiba bem o que acontecerá ao Tratado orçamental, mas as variáveis não-observáveis continuam a aparecer nas regras. Mais grave ainda são as variáveis que a Comissão quer esconder. De acordo com a proposta, a trajetória orçamental será definida em função de análises de sustentabilidade da dívida (ASD). Só que a ASD depende crucialmente dos parâmetros com que trabalham os técnicos que a realizam.

Por exemplo, se ao fazer uma ASD, mexermos ligeiramente no multiplicador orçamental, teremos resultados completamente diferentes. Sobre isto, a Comissão não diz nada, e não quer dizer nunca. Os Estados só teriam direito a saber (e aceitar) o resultado final. Estes parâmetros transformar-se-iam em autênticas regras não escritas que poderiam, por exemplo, servir para discriminar ou benefíciar países em função do seu musculo político ou da orientação política do seu Governo. Opacidade total.

Com a procissão ainda no adro, estes são os temas mais graves em cima da mesa. Não são os únicos. Se estas propostas vingarem, as novas regras arriscam-se a não ser mais do mesmo. Arriscam-se a ser pior do mesmo. Mais austeridade com ainda mais arbitrariedade.

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