Índice

Lutar pelo clima não é crime

Em vez de criarem espaços seguros de discussão sobre a crise climática, as direções das faculdades chamaram a polícia. Estas reações antidemocráticas são o resultado da neoliberalização da universidade: o diretor passou a ser um autêntico patrão. Não podemos ficar indiferentes às tentativas de silenciamento e intimidação.

Crónica 74
23 Novembro 2023

No dia 13 de novembro, a Greve Climática Estudantil iniciou uma onda de ações nas faculdades de Letras, Psicologia e Belas-Artes da Universidade de Lisboa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Coimbra. Tal como na “Primavera das Ocupas” de abril, reivindicaram o fim da utilização de combustíveis fósseis até 2030 e 100% de eletricidade renovável e acessível até 2025. Os protestos pacíficos foram recebidos com repressão e a polícia voltou a entrar na Universidade.

Ao início da tarde do dia 13, a direção da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa (FPUL) chamou a polícia para retirar estudantes que estavam a bloquear a entrada do auditório. Em apenas dois dias, a polícia apareceu cinco vezes na FPUL. E quais as armas dos subversivos? Perigosas faixas e cartazes onde se podia ler: “sem futuro não há paz”, “a vida acima do lucro”, “o futuro começa hoje” e “transição justa já!”.

Na mesma noite, a direção da FCSH, a mesma que durante todo o dia não falou com os estudantes que se manifestavam pacificamente (a comunicação foi realizada através de um mediador), chamou a polícia para impedir que estes pernoitassem nas instalações. Foram detidas seis alunas matriculadas naquela faculdade, que passaram a madrugada na esquadra. Estão acusadas de crime de desobediência e vão a julgamento no dia 4 de dezembro.

As estudantes acusaram a polícia de uso da violência e insultos durante as detenções: entorses de braços e pulsos, estrangulamento contra a parede, puxões de cabelo e pressão nos olhos de uma aluna. Durante a viagem até à esquadra, o carro da polícia, que circulava em excesso de velocidade e passou um sinal vermelho, chocou contra o carro de um civil. A estudante que estava a ser transportada nesse carro sofreu uma lesão no braço e teve de ser assistida no Hospital de Santa Maria.

Em reposta às detenções injustas, foi convocada, para o dia seguinte à tarde, uma manifestação contra a repressão estudantil, na FCSH. Em comunicado nas redes sociais, o núcleo de estudantes pelo fim ao fóssil da FCSH afirmou: “é inaceitável que a instituição, que deveria celebrar o espírito de liberdade e luta, escolha retaliar de maneira tão violenta a revolução atual, enquanto renova um mural referente ao 25 de abril” (aludem ao recente mural de homenagem à Revolução de Abril e a Salgueiro Maia).

Embora não tenha participado na ação, a Associação de Estudantes da FCSH divulgou um comunicado em que condena a atuação da direção da faculdade, denunciando os “crescentes ataques ao direito à Faculdade e ao seu espaço, consubstanciados num conjunto de marcos legais nos quais se inclui o RJIES [Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior]”. Com efeito, as reações antidemocráticas das direções destas faculdades são o corolário de uma trajetória de afastamento dos estudantes da participação na vida das instituições de ensino superior e da neoliberalização da Universidade. Entre outros aspetos, esta neoliberalização traduz-se na transformação do diretor num autêntico patrão.

No terceiro dia de ações, 15 de novembro, três estudantes foram detidas na Faculdade de Psicologia e Instituto de Educação, durante uma palestra sobre ação climática a que assistiam cerca de 70 pessoas. As imagens da equipa de intervenção rápida da PSP, composta por dezenas de polícias, a algemar e a arrastar três alunas, duas porque falavam e uma porque ouvia – sublinho, falavam e ouviam – são absolutamente chocantes e inadmissíveis num Estado de direito democrático.

Na quinta-feira, dia 16 de novembro, estava agendada uma concentração pelo fim aos combustíveis fósseis e contra a repressão do movimento estudantil, novamente na FSCH. Numa descarada tentativa de provocação, elementos da Juventude Chega, acompanhados pela deputada Rita Matias, foram à faculdade distribuir panfletos que satirizavam o movimento climático. Foram vaiados pelos estudantes, que exigiam a sua saída. Sempre oportunistas, tentaram vitimizar-se: citada no Público, Rita Matias alegou que foram rodeados pelos ativistas e alvo de “empurrões, pontapés, cuspidelas” e que, por isso, receavam não ter segurança para sair. A deputada chamou a polícia, que, pela segunda vez numa semana, entrou no recinto da faculdade.

As testemunhas e as imagens captadas durante as horas em que os 12 membros do Chega estiveram na FCSH refutam totalmente esta intrujice: a comitiva esteve na esplanada (certamente à espera de ser interpelada), escutou conversas de docentes e alunos, filmou estudantes sem autorização, proferiu insultos xenófobos e um deles tentou agredir uma estudante imigrante. Seguindo o exemplo dos seus congéneres europeus, a extrema-direita portuguesa começa a cavalgar a onda do negacionismo climático e, na ausência de uma transição energética justa – revindicada pela Greve Climática Estudantil –, não se coibirá de aproveitar politicamente o descontentamento de quem seja prejudicado no processo. Este foi apenas um vislumbre da ameaça que o Chega coloca à democracia. Nas vésperas da celebração dos 50 anos do 25 de abril, temos de permanecer vigilantes.

Nesse dia, a direção da FCSH decidiu encerrar a instituição às 20h30 (quando a hora de fecho é às 23h), impedindo assim o acesso dos estudantes ao edifício. Temendo pela segurança dos manifestantes, que ficariam vulneráveis e isolados, uma docente e os alunos que saíam das aulas às 21h15 decidiram não abandonar a faculdade.

Na tarde de sexta-feira, alguns estudantes manifestaram-se na Alameda da Universidade contra os combustíveis fósseis e contra os ataques à liberdade de expressão. O reitor da Universidade de Lisboa chamou a PSP, depois de cerca de uma dezena de estudantes ter entrado no edifício da Reitoria, sentando-se no átrio. Sete foram detidos.

Já esta segunda-feira, dia 20 de novembro, a PSP retirou e identificou cinco estudantes que bloqueavam a entrada do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra – o mesmo local onde, em abril de 1969, Alberto Martins, à época presidente da Associação Académica de Coimbra e, mais tarde, ministro da Justiça, pediu a palavra ao Presidente da República, Américo Tomaz. Recordando esse feito, os estudantes exigem ação. Lembram um princípio que parece ter sido esquecido: “as faculdades, universidades e instituições de ensino têm de ser um espaço em que os estudantes possam expressar a sua voz livremente”, não um espaço de repressão.

Não podemos ficar indiferentes às tentativas de silenciamento e intimidação e aos atropelos ao direito de manifestação a que assistimos recentemente dentro da Universidade. Os paralelos com a repressão policial do movimento estudantil durante o Estado Novo, particularmente durante as crises académicas, são invetiváveis. Felizmente, ainda há quem tenha memória – vários coletivos solidarizaram-se publicamente com os estudantes.

Também a Frente Grisalha pelo Clima lançou uma carta aberta, subscrita por mais de 300 pessoas, na qual sublinha que a Universidade é um local de debate, conflito, liberdade, proposta, ação e reinvenção e não de formatação, obediência e resignação.

Ao invés de criarem espaços seguros de discussão sobre a crise climática, as direções destas faculdades optaram por chamar a polícia. Não se responde ao pensamento crítico e ao protesto pacífico com força bruta. Tal como clamam os estudantes, através do lema que dá título a esta crónica, lutar pelo clima não é crime.

Os acontecimentos da última semana revelam que a crise climática e a crise da democracia são indissociáveis, a luta por justiça climática é também uma luta pela democracia, dentro e fora da Universidade.

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt