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Israel-Palestina não é complicado

Se queremos paz, se queremos o fim do terrorismo, se somos contra a ocupação ilegal, contra a limpeza étnica, contra o apartheid, contra o genocídio então não é complicado. Não interessa quantos vídeos de propaganda israelita mostrem, quantos argumentos históricos, religiosos ou de conveniência geopolítica. 

Crónica 74
30 Novembro 2023

“Então, não é uma situação complexa. Isso é o importante a reter. É super simples. Há um grupo que tem um poder enorme, é o país mais poderoso do Médio Oriente, apoiado pelos Estados Unidos da América. Age sobre outra população com total impunidade, sem nunca ser responsabilizado por nada.
Portanto, não há simetria nenhuma na relação.”

- Michael Brooks, Lafayette College, 27/02/2020


Comecei com esta citação de Michael Brooks porque sinto que é o argumento mais simples contra o encolher de ombros centrista de quem “simpatiza com os palestinianos” mas acha a situação “muito complexa”. Há um lado com o poder todo e um lado com poder nenhum. 

Estranhamente a responsabilidade põe-se toda do lado de quem não tem poder de “parar a guerra”, como se disséssemos à Palestina que é responsável pelo seu próprio sofrimento e que deve sofrer sucessivas anexações, humilhações, miséria, apartheid, limpeza étnica, mortes, ferimentos em silêncio e “protesto pacífico”. 

Nunca se pede a Israel que pare a guerra. 

Mas Israel de facto tem o poder de parar com tudo. Pode parar os bombardeamentos, parar de matar civis, parar os colonatos, com as prisões arbitrárias, com as execuções a palestinianos. Tudo isto são escolhas políticas do estado de Israel. Ninguém os obriga.

Ao opressor permite-se toda a violência, ao oprimido nenhuma.

Se dependermos do nosso comentariado para uma análise do que tem sido a atuação do estado de Israel desde o ataque terrorista de 7 de Outubro de 2023, há um apanhado de declarações aterradoras. Desde propagar desinformação israelita acriticamente a fazer argumentos que, se aplicados a Israel, justificariam o racional dos atentados do Hamas. Por exemplo, se aceitamos, como se disse muitas vezes, que “a maior parte da população de Gaza apoia o Hamas” e isso é justificação para civis serem bombardeados, então os israelitas que elegeram o Likud e partidos de extrema-direita são alvos legítimos? Sendo que existe recruta obrigatória em Israel, há sequer alvos civis em Israel? 

Esta lógica é obviamente obscena e repelente quando aplicada a Israel, porque não obviamente abjeta é quando aplicada a palestinianos? É, e isto não deve surpreender muito, a lógica nojenta de culpa colectiva que Osama Bin Laden usou para justificar o 11 de Setembro. Segundo Bin Laden, como os eleitores americanos tinham eleito líderes e partidos que apoiavam a política externa imperialista dos EUA, eram moralmente responsáveis pelos bombardeamentos, sanções, golpes de Estado feitos pelos EUA pelo mundo.

Como se não chegasse, é mentira. 50% da população de Gaza não tinha nascido quando foram as últimas eleições em Gaza. Se juntarmos quem não tinha idade para votar em 2006 são 76%. Se contarmos quantas pessoas de facto votaram no Hamas em Gaza e assumirmos que ainda estão vivas são 8.12%.

Criou-se um cúpula de ferro retórica à volta de Israel, seja acusando quem condena os seus crimes de anti-semita, seja de apoiante do Hamas. Muitas das pessoas são as mesmas que há uns meses acusavam quem não seguia a linha da NATO ou tinha qualquer crítica ao autoritarismo crescente e corrupção de Zelensky de “Putinista”. Quem pediu paz e negociação para evitar mais mortes estava claramente do lado de Putin. Hoje aparentemente os EUA são “putinistas” ao pressionar Zelensky a negociar, agora que a atenção e recursos do ocidente se viram para defender Israel.

Houve uma grande clareza inicial e fortes argumentos morais para estar do lado da Ucrânia contra a invasão. Por muito que se falasse de batalhões Azov, do Euromaidan, de corrupção, de expansionismo da NATO, como Daniel Oliveira sintetizou: “Tudo é complicado mas uma coisa é simples, há um ocupante e um ocupado”.

O lado pró-Israelita utilizará todo o tipo de argumentos, falar do Hamas, dos mortos, das crianças, das guerras com outros países árabes, das intifadas, das recusas de negociação de parte a parte e chegar à conclusão que tudo se justifica do lado de Israel.

Depois há os “moderados”, que, também baseados nos mesmos argumentos, lavam as mãos dizendo que “não há bons nem maus” e que no fim é “muito complicado”.

Como disse Michael Brooks, no fim não é. É simples. Há um ocupante, Israel e o ocupado, a Palestina.

Não podem dizer que são a favor da solução de dois Estados enquanto apoiam Israel que sabota orgulhosamente a mesma. Uma lista de exemplos:

  1. O apoio, financeiro e político à legitimação e ascensão do Hamas como forma de dividir a resistência palestiniana. Um inimigo extremista com o qual não se pode negociar é o bicho-papão perfeito para se justificar não avançar com o processo de paz.
  2. O apoio descarado aos colonatos ilegais existentes e à sua expansão. É cínico dizer que são os palestinianos a impedir o processo de paz quando o governo Israelita continua a agredir palestinianos, a anexar o seu território em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia. Quem deixa isto acontecer não é a favor da solução de dois estados.
  3. Netanyahu e o Likud afirmaram múltiplas vezes que não só são contra a solução de dois estados como se gabam de a ter sabotado. A carta fundadora do Likud defende a anexação da Palestina. Ainda agora, argumentou aos deputados do Likud: “Eu sou o único que vai impedir a formação de um estado palestiniano em Gaza e (Cisjordânia) depois da Guerra.” 

Não nos cabe interferir na política interna de Israel. Se por acaso algum eleitor israelita me lê, peço que não vote nos partidos que estão a impedir a paz na Palestina. “Mas e o Hamas? Como se derrota o Hamas?”

Não é bombardeando. Israel já deslocou 74% da população de Gaza, matando mais de vinte mil incluindo oito mil crianças, para, segundo os seus próprios dados, matar 3% do Hamas. Incluindo os reféns que Israel diz querer salvar. O Hamas quer provocar reações violentas de Israel porque confirmam a sua narrativa: que apenas a violência é solução. As respostas violentas e desproporcionais de Israel ajudam o Hamas a crescer, a recrutar e a receber mais apoios do mundo árabe e não só. São o espelho um do outro. Israel também quer que o Hamas seja violento para justificar matar milhares, deslocar milhões e anexar território.

Como se enfraquece o Hamas? Provando que o seu caminho não trará uma vida melhor. Que a paz e a negociação sejam viáveis. E isso não se pode fazer apoiando o atual caminho de sabotagem da paz de Israel. Aí, Portugal tem um papel e nós, como eleitores portugueses, temos também um papel. Podemos exigir que um governo Português faça como o Espanhol promete e o Sueco já pôs em prática e reconheça o Estado da Palestina. Podemos boicotar Israel até Israel aceitar um processo de paz. Portugal pode juntar-se a um número crescente de vozes no mundo para isolar Israel e obrigar Israel a sair da ilegalidade.

Perguntam-me muitas vezes: qual a tua solução então? E digo:

  1. Os EUA e UE têm de apoiar as alternativas democráticas ao Hamas, como a Fatah.
  2. Os EUA e UE têm de tornar qualquer apoio a Israel condicional a:
    1. Reconhecer a Palestina, 
    2. Sair completamente de Gaza, Jerusalém Oriental e Cisjordânia, 
    3. Forçar a retirada dos colonatos ilegais,
    4. Parar qualquer bloqueio comercial à Palestina,
    5. Permitir o direito de regresso de palestinianos à Palestina.
  3. Os EUA, UE e Israel devem apoiar financeiramente e com meios humanos a reconstrução da Palestina, a criação de infraestrutura e sustentabilidade económica.

Neste último exemplo, posso dar uma sugestão ambiciosa. Porque não tornar o Canal Ben Gurion (uma alternativa ao Canal do Suez) realidade e dar o controlo e benefícios ao novo Estado Palestiniano? O Canal do Suez rende 9.4 milhares de milhões de dólares por ano ao Estado Egípcio. Era um bom começo para uma paz duradoura no Médio Oriente.

Um fenómeno que tenho reparado é quanto os governantes têm estado desalinhados com os governados em relação a Israel. Enquanto governos - como o governo PS - têm excessivas dificuldades em pedir sequer um cessar-fogo, quando não se opõem abertamente a um cessar-fogo, há sondagens que revelam maiorias nos EUA, Reino Unido e Canadá a favor do mesmo. Um governo deve respeitar a vontade dos eleitores. Estão a contar que as pessoas se esqueçam da Palestina antes das eleições. Mas a propaganda israelita tem falhado, especialmente com as novas gerações que não recebem apenas o enquadramento dado pelos OCS - alguns dos quais propagam argumentos negacionistas do genocídio de que vários académicos e peritos da ONU nos tenta avisar.

Se queremos paz, se queremos o fim do terrorismo, se somos contra a ocupação ilegal, anexações, contra a limpeza étnica, contra o apartheid, contra o genocídio então não é complicado. Não interessa quantos vídeos de propaganda israelita mostrem, quantos argumentos históricos, religiosos ou de conveniência geopolítica, só há três coisas a defender, sempre:

Fim dos bombardeamentos e agressão israelita. 

Fim da ocupação ilegal da Palestina. 

Um estado palestiniano livre, democrático e secular.
 

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”. 

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