Eterno é este instante
A Ana Luísa era superior. Cruzarmo-nos com ela era ficarmos mais ricos. Uma hora a seu lado no café e a possibilidade da porta do seu espírito imenso se abrir para nós, comentasse ela o cão que ia a passar ou a notícia do dia.
É assim que começa um dos seus poemas: “eterno é este instante / o dia claro” e continua mais à frente “Sonhei contigo, acordei a pensar / que ainda eras, como é esta janela / como o corpo obedece a este vento quente e é ágil / mas tudo: tão confuso como são os sonhos”. E mais perto do fim: “a memória limpíssima é de ti / e cobriu tudo”.
Assim me têm acordado os dias, desde que Ana Luísa Amaral partiu. “A memória limpíssima é de ti e cobriu tudo”. Se fecho os olhos, vem-me à memória a sua voz, a sua forma tão única de ler, arrastando levemente o fim dos versos, as últimas palavras penduradas acima - degrau quase imperceptível - das outras.
Há ausências (ou devo dizer presenças?) que vêm pôr tudo em perspectiva, que nos servem de medida para todas as outras coisas: arrumam-nas por grau de importância. A sua força é tal que, uma vez esbatidos os limites do seu corpo, se apoderam de tudo. Talvez por isso, por a sentir tão aqui, a sensação seja a de poder ainda voltar atrás, reescrever esta parte da história, pedir à própria Ana Luísa que a componha de outro modo: um verso que fique em suspenso - como era seu hábito - ao invés de um final.
A Ana Luísa não era só uma poeta extraordinária, era uma pensadora como poucas houve.
O seu olhar sobre as coisas era atravessado pela sua enorme sensibilidade e bondade, o que a fazia estacar, com indignação, perante os desacertos do mundo. Isso já é de si raro, mas o que a tornava realmente única era aliar esse espanto, esse inconformismo à imensa capacidade de transformar o apelo do mundo em amparo para o Outro ou interjeição.
Na sua poesia está tudo, a paleta inteira da vida, das coisas breves e quotidianas que achamos que não cabem no poema, às grandes interrogações que nos acompanham até ao fim.
Nas suas palavras encontramos a paixão nunca dita, o Amor em desfiladeiro, a beleza da tigela nas mãos de uma filha, a companhia da empregada doméstica a quem nunca soubemos agradecer, a solidariedade entre mulheres, a questão do corpo, da procura por se ser inteira.
Está o abismo, a confusão interna, o desespero do abandono.
Está a perda e a promessa do reencontro quando os planos se esbaterem e a vida for, afinal, o que vem depois desse breve sono que é a morte.
Nas suas páginas estão as desigualdades sociais, os preconceitos de classe, as questões da Mulher, a Sexualidade, a Mãe a sós, a violência, a reflexão sobre as História do nosso país e o seu humor, sempre o seu humor: uma pedra desnivelada que nos faz tropeçar num passeio que julgávamos a direito.
Vivemos estes tempos a dizer que as pessoas são todas únicas e irrepetíveis, mas a verdade é que umas são-no mais do que outras.
Essa é a verdade.
A Ana Luísa era superior. Cruzarmo-nos com ela - perdoem-me o lugar comum - era ficarmos mais ricos. Era mesmo. Uma hora a seu lado no café e a possibilidade da porta do seu espírito imenso se abrir para nós, comentasse ela o cão que ia a passar ou a notícia do dia. Essa possibilidade era o que nos fazia gravitar à volta dela, de sorriso rasgado, à espera de ouvir aquela voz espessa e grave dizer um poema de cor ou rir-se de si própria.
Como chegou a dizer, a poesia substituiu-se à vida a dada altura, tê-la-á salvo inclusive, mas acredito que só foi assim porque viveu muito e intensamente e, nessa constante negociação entre crueza e ficção, elevava os dois mundos. À vida tornava-a profunda, comovente, sob uma lente que ansiávamos partilhar porque nos ensinava sobre as possibilidades, os ângulos que nunca teríamos tentado, a beleza por desenterrar, silenciosamente à espera em cada momento vivido. Na poesia, do quotidiano fez épico, do Amor o dia-a-dia.
Há dias, apareceu na grande entrevista da RTP, delicada, generosa e forte - a estender o tapete da sua benevolência e inteligência ao entrevistador - a proporcionar-nos mais uma hora de maravilhamento; palavra escolhida por ela no final do programa.
Que inteireza, que dignidade. Quando lhe pergunta o entrevistador - e o programa foi gravado há três semanas - se pensa na morte, se pensa no que deixará à filha e ao mundo, a Ana Luísa desvia o olhar, enche a voz, diz que não pensa nisso, que não quer saber disso para nada. Não é tentada por nada daquilo, nada. Pairam acima daquele cenário de televisão, daquelas cores baças, o seu espírito luminoso, a sua inteligência e a sua certeza de ser o maior legado, como a própria disse tantas vezes, aquilo que é simples e humano.
“Eterno é esse instante”.
Íntegra, profunda, superior, deixa-nos a sua voz límpida, sem concessões.
A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.