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Contra factos, há 2456 argumentos

A indústria fóssil mantém a capacidade de influenciar as escolhas políticas e os incentivos para pagar a viagem e estadia a 2456 lobistas na COP28. Um exército de pressão e desinformação. Aquilo a que assistimos foi a indústria fóssil a dar tudo para combater mesmo os pressupostos mais básicos da ciência das alterações climáticas e da transição energética.

Crónica 74
21 Dezembro 2023

A Conferência do Clima recentemente realizada (COP28) foi marcado por um novo passo na captura deste processo pelos interesses da indústria fóssil. Para além de se ter realizado num dos países que mais têm combatido o combate às alterações climáticas e de ter sido presidida por Ahmed Al Jaber, diretor executivo da empresa petrolífera estatal, esta Conferência bateu todos os recordes de lobista fóssil por metro quadrado. 2456 ao todo. Um exército de pressão e desinformação. Aquilo a que assistimos durante esses dias foi a indústria fóssil a dar tudo para combater mesmo os pressupostos mais básicos da ciência das alterações climáticas e da transição energética. Foi assim que depois de dias de impasse entre “eliminação gradual” e “redução gradual” dos combustíveis fósseis, acabámos com uma “transição”. Não é muito claro, pois não? Bem, não é suposto.

A verdade é que mesmo nos países e territórios aparentemente mais comprometidos com a eliminação gradual dos combustíveis fósseis, a realidade fica muito aquém da propaganda. Por isso, temos de nos entender sobre o que quer dizer transição. A transição energética, para o ser, não pode significar apenas um aumento da produção de energia renovável, que é hoje uma medida incontroversa. Significa, o que não é a mesma coisa, o abandono dos combustíveis fósseis ao ritmo mais rápido possível, através da transição para energias renováveis e através da redução do consumo energético, por exemplo através das políticas de mobilidade ou da eficiência energética. E é aí que a porca torce o rabo.

A indústria fóssil continua em grande forma, mantém a sua capacidade de influenciar as escolhas políticas e os incentivos para pagar a viagem e estadia a 2456 lobistas. As grandes multinacionais detêm milhões de milhões em ativos fósseis. Qualquer interpretação séria de qualquer das expressões que estiveram em cima da mesa, “eliminação”, “transição” e até “redução”, significa que esses ativos terão de ficar debaixo do solo. O que se passou na COP28 não foi, portanto, uma guerra entre países com maior ou menor empenho no combate nas alterações climáticas, empenho esse que está mais virado para as opiniões públicas desses países do que propriamente para ações concretas. A COP28 foi uma guerra entre o fóssil e os factos. O fóssil jogou em casa e veio com reforços.

Não quer dizer que os factos sejam fraquinhos. É preciso perceber que não estamos a discutir se as emissões estão a diminuir suficientemente depressa. As emissões continuam a aumentar. 40900 milhões de toneladas de co2 em 2022. Um novo recorde. As contribuições nacionalmente determinadas, se cumpridas reduziriam as emissões em 2% até 2030. Precisariam de reduzir 43%. Jean-Pascal van Ypersele (investigador que foi vice-presidente do IPCC na quinta ronda de avaliações) escreveu no twitter: "Parece haver uma desconexão total entre o diagnóstico e o tratamento. O diagnóstico é de um cancro potencialmente mortal, devido ao abuso de combustíveis fósseis. O tratamento prescrito é uma mistura de wishful thinking e magia". Os efeitos já se sentem e são mensuráveis, desde os fenómenos climáticos extremos à degradação de vários indicadores de saúde pública. Vão ser precisos muitos lobistas para continuar a atirar areia para os olhos das pessoas.

Como é cada vez mais evidente, este conflito tem uma dimensão de exploração social e internacional, quer do ponto de vista das causas, quer do ponto de vista das consequências. É no norte global que se continuam a concentrar as emissões per capita. E são os mais ricos que mais poluem. Em contrapartida, é também o norte global e são também os mais ricos que têm melhores condições para se resguardar de quase todas as consequências das alterações climáticas. Pelo menos, por enquanto. É por isso que na COP28 se festeja com fogo de artifício a criação de um fundo de perdas e danos para apoiar os países que sofrem com as alterações climáticas que tem até agora contribuições de 726 milhões de Euros. O valor estimado como necessário é de 400 mil milhões, 550 vezes mais… por ano.

Este conflito é um conflito entre ricos e pobres. E, sem surpresa, é cada vez mais um conflito entre esquerda e direita, como têm mostrado todas as votações sobre dossiers ambientais e energéticos no Parlamento Europeu. Direita e liberais saíram de vez do que já era um frágil e insuficiente consenso climático para se enturmarem de armas e bagagens com a extrema-direita negacionista. Os mesmos que olham embevecidos para o ultraliberalismo e a terapia de choque de um Bolsonaro ou de um Milei ou suspiram por um Passos Coelho, na versão nacional, mostram-se extremamente inquietos com os impactos do combate às alterações climáticas no emprego e nas condições de vida do cidadão comum. Pouco importam os estudos que mostram que há milhões de empregos a criar na transição. Pouco importa a evidência de que os pobres (países e pessoas) serão os primeiros a pagar a catástrofe ambiental.

Boa sorte a quem quiser encontrar consciência ou vergonha naquele campo. O combate às alterações climáticas começa por um combate pelo combate às alterações climáticas. E para isso teremos de chegar e falar a toda a gente, a todas as pessoas a quem é dito quotidianamente que os ambientalistas querem acabar com os seus empregos. Não basta ter razão. Não basta ter os factos. A COP mostra-nos isso.

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