Índice

Cinema e Propaganda

Como uma fábula ou conto infantil, progressistas e conservadores parecem achar que é a moral da história que determina se uma obra de arte é positiva ou negativa para a sociedade. Arte demasiado prescritiva, moralista, torna-se aborrecida e transparente, como propaganda.

Crónica 74
7 Setembro 2023

O verão foi marcado pelos sucessos cinemáticos "Barbie" (Greta Gerwig) e "Oppenheimer" (Christopher Nolan), uma parelha improvável, criada pela mesquinhez da Warner Bros. que tentou enterrar o filme de Christopher Nolan estreando o seu blockbuster na mesma data.

O tiro saiu pela culatra, o estranho duo tornando-se inspiração para uma lista infindável de memes e arte ao ponto da promoção monumental para o filme inspirado na boneca da Mattel (pelo menos 150$ milhões em marketing) acabar por promover também o drama sobre a criação da bomba atómica.

Os filmes são incontornáveis sucessos comerciais e - na humilde opinião de quem vos escreve - excelentes filmes que valem a pena o nosso tempo e atenção longe do telemóvel. A não ser que estejam a ler o Setenta e Quatro no cinema, claro. Mas o que me interessa hoje é mais o discurso à volta dos filmes e como parece haver uma crescente atrofia na capacidade de analisar filmes pelo que são e uma tentação de os julgar pelo que queremos que eles sejam.

Vi críticas que o "Oppenheimer" não apontava que lançar bombas atómicas sobre civis em Hiroshima e Nagasaki era um crime de guerra, logo estava a fazer apologia das mesmas. Vi pessoas a dizer que o filme sobre bonecas da Mattel não tinha uma perspectiva feminista marxista o suficiente e outras a dizer que era demasiado marxista e feminista.

Pode ser simplesmente a ascensão das redes sociais que nos pôs em contacto com falta de literacia mediática, pode ser a crescente politização da cultura pop pós-eleições americanas de 2016. A celebridade e presença pop do apresentador de TV Donald Trump na política parece ter levado a uma contaminação mútua entre cultura pop e política, com programas de late night a passarem a dedicar os seus monólogos quase inteiramente aos dramas do governo e eleições. Podemos traçar isto à magistratura Obama, ele próprio tornado uma celebridade pela sua coolness ou antes até a Jon Stewart e os seus muitos sucessores, cujo Daily Show acordou muita gente para a política, até em Portugal.

Mas atribuo este tipo de análise a uma espécie de democratização - e mal-entendido - de análises críticas a arte como cinema e videojogos. Embora ache bom que a crítica a blockbusters e videojogos tenha permitido estender a análise de arte a um público muito maior, a transformação destas críticas na sua própria indústria, principalmente no Youtube, privilegiou um tipo de comentário por um lado mais cáustico e negativo e também o sensacionalismo das meta-narrativas sobre o seu lançamento.

Para envolver o público criaram-se complexas narrativas - algo que sempre existiu em revistas como a Variety, onde relações públicas de estúdios e artistas se digladiavam - com heróis e vilões. Marvel vs. DC. Barbie vs. "Oppenheimer". Já não interessa se os filmes são bons ou maus. 

Como reflexo de um certo tipo de análise feminista de videojogos, que levantou um olhar crítico a estereótipos misóginos do meio, mais uma análise sociológica que artística da “qualidade” dos jogos criticados, começou a haver também análises que apenas viam se os jogos eram anti-progressistas (e por isso “apolíticos”).

Com a saturação da palavra “woke”, que inicialmente servia para denominar pessoas socialmente conscientes e politicamente activas e agora serve como insulto para associar a todos os males, naturalmente o problema dos filmes e jogos passou a ser serem “woke”.

Tal como as utilizações políticas do termo, “woke” não é menos nebuloso quando aplicado a filmes e jogos. Geralmente basta ter uma protagonista mulher ou não-branca para ganhar o selo. No jogo Starfield, poder escolher os pronomes da personagem causou uma revolta nalguns youtubers. O mantra da guerra cultural passou a ser “Go Woke, Go Broke”, ou seja, se forem progressistas, vão falhar na bilheteira. Não interessa se um filme é bom, se é pertinente, se está bem feito. Woke = mau.

Voltando à Barbie, uma das vozes mais populares da direita, Ben Shapiro, criticou duramente os temas feministas do filme, prevendo o falhanço catastrófico das vendas da Barbie. O filme já ultrapassou os mil milhões de dólares de bilheteira tornando-se um dos maiores sucessos de sempre, apesar da sua suposta qualidade “woke”.

Não estou a dizer com isto que os filmes têm uma qualidade intrínseca que é suposto apreciarmos apesar de discordarmos violentamente dos seus temas. Filmes de propaganda nazi como “O Triunfo da Vontade” (Leni Riefenstahl, 1935) ou racistas como “O Nascimento de Uma Nação” (D.W. Griffith, 1915) até podem ter os seus méritos artísticos e visuais marcantes, mas são indissociáveis dos contextos odiosos que os geraram. Mas claramente não precisamos concordar com um filme para gostar dele. 

Estranhamente algo que poderia ser um processo de “adultificação” da arte - ou pelo menos erudição - a análise crítica política parece ter infantilizado a discussão à sua volta. E não estou a falar da aversão a cenas de sexo, porque não avançam a história ou lá o que é.

Como uma fábula ou conto infantil progressistas e conservadores parecem achar que é a moral da história que determina se uma obra de arte é positiva ou negativa para a sociedade. Isto vem de uma ideia que a arte muda o mundo, que ela é prescritiva. E é verdade de certa maneira. Sem o sucesso do romance "Corcunda de Notre Dame" (Vítor Hugo, 1831), não teríamos tido a restauração da Catedral de Notre Dame. O filme "Sideways" (Alexander Payne, 2004) popularizou o vinho Pinot Noir e o turismo enólogo. O filme “O Nascimento de Uma Nação” (1915) que mencionei antes revitalizou e re-popularizou um KKK praticamente defunto. 

Image
crónica_guilhermetrindade

A ideia que as pessoas vão mudar de ideias completamente porque vêem um filme e vão passar a viver vidas boas e corretas acho que é pedir demais. Começamos a ver uma certa tentação em jogos, livros, séries e filmes de autores conscientemente incluírem “lições” explícitas, ditas pelas personagens, para saciar esta sede moral - e talvez também para se escudar de críticas.

Em tempos havia um nome mais óbvio para uma peça com um pendor mais ideologicamente didático: propaganda. Mas a propaganda não funciona quando sabemos que é propaganda. Torna-se transparente, um símbolo cultural ao qual se apega quem já concorda e contra a qual se revolta quem já discorda. E por isso estéril como ponto de discussão.

Kim Jong-Il era um amante de cinema. A história do cinema na Coreia do Norte é fascinante, com raptos a realizadores sul-coreanos e desertores americanos a servirem de actores para representar os vilões em filmes. Mas muitos dos filme norte-coreanos, para quem os viu, parecem quase naïf na sua literalidade e moralidade maniqueísta. Kim Jong-Il escreveu um livro - A Arte do Cinema - em que delineia várias teorias sobre cinema, entre elas que o cinema como arte humana deve ser moralista e propagandístico e apresentar modelos para o cidadão imitar.  

Lendo algumas análises fico a pensar se é isto que as pessoas querem. Se o cinema é mais que junk food, também é mais que um prato de vegetais que comemos para nos sentirmos saudáveis. Arte demasiado prescritiva, moralista, torna-se aborrecida e transparente, como propaganda.

No fim, é fácil conseguir uma reação por um qualquer hot take sobre cinema - O "Pátio das Cantigas" é uma metáfora para a luta de classes! O "Parasitas" é sobre Alojamento Local! A "Patrulha Pata" apaga vozes queer! - e são divertidas. Afinal, falar sobre filmes é quase tão divertido como vê-los.

O autor escreve consoante o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

Jornalismo independente e de confiança. É isso que o Setenta e Quatro quer levar até ao teu e-mail. Inscreve-te já! 

O Setenta e Quatro assegura a total confidencialidade e segurança dos teus dados, em estrito cumprimento do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Garantimos que os mesmos não serão transmitidos a terceiros e que só serão mantidos enquanto o desejares. Podes solicitar a alteração dos teus dados ou a sua remoção integral a qualquer momento através do email geral@setentaequatro.pt