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As casas aumentaram porque se construiu pouco na última década?

A ideia de escassez de oferta permite à direita continuar a defender investimentos que encaram a habitação essencialmente como um mero ativo financeiro, ou um Alojamento Local sem limites. Mas é importante tentar dar nota de «todos os factos» relevantes, não os mobilizando seletivamente, com o fito de sustentar narrativas tão politicamente convenientes quanto enviesadas.

Crónica 74
9 Março 2023

Desde que se tomou consciência plena da gravidade da crise habitacional que Portugal hoje atravessa – tal como muitos países europeus – a nossa direita política apressou-se a construir a sua narrativa sobre as causas dessa crise, argumentando que o problema é basicamente de oferta. Isto é, apenas «faltam casas» para responder à procura existente, bastando, por isso, «construir mais».

Esta é uma narrativa muito conveniente para a direita. Desde logo, porque lhe permite ofuscar a evidência do fracasso do mercado na resolução da questão da habitação, incapaz que é, por natureza, de assegurar casas a preços acessíveis para as famílias.

Em segundo lugar, porque a ideia de escassez de oferta permite à direita continuar a defender investimentos (nacionais e estrangeiros), que encaram a habitação essencialmente como um mero ativo financeiro, ou um Alojamento Local sem limites.

Por último, porque esta tese da «falta de casas» permite reivindicar o aumento de apoios públicos ao setor privado, ao mesmo tempo que se rejeita a adoção de mecanismos de regulação do mercado que defendam os interesses dos que necessitam de casa para viver a preços comportáveis.

Para sustentar a narrativa da «falta de casas», o Instituto +Liberdade, por exemplo, produziu uma infografia (à esquerda, na imagem), que ilustra a queda da construção de alojamentos desde o início do século, passando-se de uma média anual de 104 mil fogos concluídos, entre 2000 e 2004, para cerca de 12 mil, entre 2015 e 2021.

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Ora, se é certo que se registou, de facto, um abrandamento da construção na última década, a verdade é que a relação entre a procura (famílias) e a oferta (alojamentos), pouco se alterou neste período. Com efeito, se em 2005/09 havia um excedente de 1,906 milhões de casas face ao número de famílias, esse superavit apenas se reduz para 1,847 milhões em 2015/20 (à direita, na imagem). O que ajuda a explicar, aliás, que o rácio de alojamentos por família se tenha mantido em torno dos 1,5 (uma casa e meia por família), na última década.

Faz, portanto, pouco sentido interpretar a subida vertiginosa dos preços e a atual crise de habitação como um simples problema de «falta de casas», devendo antes tentar perceber-se o que mudou na procura de alojamentos ao longo dos últimos anos. É neste âmbito, de facto, que deve ser avaliada a pressão, sobre a oferta, de processos como os associados à financeirização e internacionalização dos investimentos imobiliários, em muitos casos especulativos, a par da intensificação do turismo. Fatores que não podem ser dispensados na explicação do aumento vertiginoso dos preços da habitação, num país que, de resto – e tal como na Europa –, assiste a uma persistente estagnação dos rendimentos das famílias.

Os «factos» são realmente muito importantes. Mas mais importante ainda é tentar dar nota de «todos os factos» relevantes, não os mobilizando seletivamente, com o fito de sustentar narrativas tão politicamente convenientes quanto enviesadas, como sucede na «falta de casas» enquanto fator explicativo da atual crise de habitação.

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