Até já, Setenta e Quatro! Lemo-nos por aí...
Mais de dois anos e 24 textos depois, agradeço a confiança no meu trabalho, e partilho o orgulho de ter a minha assinatura associada a esta missão fundamental de defesa da liberdade. Hoje assino aqui a minha última crónica, mas continuarei a fazer da escrita uma arma.
Ter ou não ter fotografia, essa era para mim a grande questão. Aos meus olhos, uma imagem colada à assinatura de um texto de jornal aumentava a importância da sua autoria. Por isso, se nada mais fosse, pelo menos a opinião eu tinha de ler.
Lembro-me, por exemplo, da coluna de Duda Guennes, n'A Bola, o jornal com o qual cresci, numa altura de broadsheet e em que ainda não havia diários desportivos. Naqueles tempos, não me parecia possível que um comum mortal pudesse publicar opinião num órgão de comunicação social. A tarefa estava ao nível dos deuses (a deusa Leonor Pinhão chegou-me bem depois).
Hoje, em teoria, qualquer pessoa pode fazê-lo, propondo os seus textos a um ou vários meios da praça.
Ainda assim, continua a existir uma linha que separa quem o faz pontualmente – sobretudo a partir de iniciativa própria – de quem ocupa um espaço regular, por convite – sinal de um certo reconhecimento. Entre um e outro lugar tem sempre de haver alguém que decide quem tem autoridade e legitimidade para assinar.
Logo no início do meu percurso no jornalismo, propuseram-me escrever umas linhas sobre o Mundial de Futebol de 2006, que aconteceu na Alemanha, destino de uma viagem há muito sonhada.
Seria uma boa oportunidade, explicaram-me, mas tudo o que consegui ver ali foi uma tentativa descarada de aproveitamento, porque a minha ida resultava de um investimento pessoal. Não só tinha comprado os bilhetes para a fase de grupos, como tinha poupado para os voos. Nada disso seria comparticipado, enquanto outros estariam a gozar do privilégio de viajar como “enviados especiais”.
Obviamente recusei, satisfeita por ter tido a coragem de o fazer – além do trabalho de escrever, teria a preocupação de encontrar um cibercafé que me permitisse enviar os textos. Também pesou em mim, para ser completamente honesta, a crença de que não estava à altura da missão.
Anos mais tarde, já tarimbada na profissão e completamente segura do meu valor, percebi que nem toda a autoconfiança, capacidade, legitimidade e autoridade seriam suficientes para ultrapassar velhas construções coloniais e raciais.
Da liberdade à libertação
Apesar da minha condição de “nascida em liberdade” na então República Popular de Moçambique, e embora seja herdeira de lutas independentistas contra a ocupação portuguesa, a determinada altura ficou evidente que ainda teria de me libertar das barreiras históricas. Foi aí que iniciei o meu processo de libertação.
Aconteceu há cerca de 10 anos, em Angola, com o desaparecimento de um espaço de opinião numa revista que, por inerência das funções que desempenhava, teria de exibir a minha assinatura e a minha imagem. Alguém em Lisboa, onde a publicação era “pensada” e “controlada” por portugueses brancos com zero noção da realidade angolana, mas total presunção da sua superior autoridade, entendeu que eu, a primeira pessoa negra a ocupar aquele lugar de coordenação, não estava ao nível dos meus antecessores brancos, esses, sim, avalizados para emitir opinião. E foi dessa forma, sem uma palavra de consideração, que fui silenciada.
Hoje não deixaria passar o apagamento sem exigir explicações, mas, naquela altura, “só” consegui engolir a revolta de mais uma exclusão racista.
Aliás, à distância de quase uma década, tenho a firme convicção de que um confronto resultaria num chorrilho de justificações mal-amanhadas, sobre como tudo foi decidido em defesa dos meus interesses. Aqueles que eu, ser desprovido de autodeterminação aos olhos de Lisboa, seria incapaz de identificar.
Viver a dor dessa violência, num momento que deveria ser apenas de celebração do novo cargo, e num país africano, tornou evidente que por mais que fizesse e acontecesse haveria sempre um travão à minha progressão.
A minha libertação avançou a partir dessa consciência: decidi que se o sistema faz de tudo para me excluir, eu farei de tudo para construir o meu próprio sistema.
O Afrolink nasceu dessa convicção. Se não fosse a plataforma que criei, dificilmente estaria aqui. Dificilmente o Ricardo Cabral Fernandes me teria convidado para assinar opinião no Setenta e Quatro, numa altura em que o projecto se preparava para ganhar vida.
Este foi o primeiro espaço jornalístico a reconhecer não apenas o meu direito a ter opinião, como o direito a publicá-la.
Mais de dois anos e 24 textos depois, agradeço a confiança no meu trabalho, e partilho o orgulho de ter a minha assinatura associada a esta missão fundamental de defesa da liberdade.
Hoje assino aqui a minha última crónica, mas continuarei a fazer da escrita uma arma. Espero ter-vos por perto. Até já, Setenta e Quatro! Lemo-nos por aí…
A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.